domingo, 23 de setembro de 2012

Barra do Una – de 07 a 09 de setembro de 2012


“Incontáveis caminhos. Nobres destinos. Uma alma que se crê livre. A possibilidade de se locomover velozmente. A decisão, em contrapartida, de retardar os passos para uma detalhada apreciação. Anos e anos de luta – mais pessoal do que social – contra um sistema vigente. Querer soltar as amarras. Afrouxar a submissão presente na perpetuação das “castas”. Emancipar-se. Proclamar independência. Ser trazido de volta à realidade. Trabalhar mercenariamente. Desenvolver-se. Estudar. Ganha a vida. Adoecer. Deprimir-se. Ser diagnosticado com problemas mentais, talvez esquizofrenia. Tratar-se com fármacos. Não. Abandonar os fármacos. Automedicar-se com as pequenas doses de incontáveis caminhos. Nobres destinos. Crer que a alma pode ser livre. Locomover-se. Decidir andar lentamente por ser dono dos próprios passos. Meu nome é Amarildo Sabino. Faço o que quero. Durmo onde quero. Vou para onde quero. Quiçá me concedas o prazer de tirar uma foto contigo até o fim desta conversa que, sinto, até agora tem sido, na verdade, um monólogo que aguarda nada senão ecos de uma breve resposta”. 
Rumo a Juréia
 Essas são as palavras balbuciadas por um intrépido ciclista catarinense. Enquanto repousava minha nuca num dos diversos caules trazidos à orla pelas águas do Atlântico, na praia de Barra do Una, eis que aproximou-se o ser humano que me revelou tais palavras. Realmente há uma esquizofrenia por detrás daquele olhar, mas suas aventuras são verdadeiras e sua filosofia muito rica. Saiu de Florianópolis, há um mês atrás, e se encaminha para Fortaleza, no Ceará, sobre uma bicicleta que muitos diriam não ser adequada para tamanha empreitada. O estranho papo com o estranho homem me estimulou a prosseguir nessa cruzada pelos recônditos brasileiros que ainda guardam aquela beleza alheia ao senso comum. Reafirmou, ademais, minha contumácia em não me render às mazelas do convívio social, muitas vezes baseado em falsos conluios e conchavos onde não há um mínimo de harmonia entre os indivíduos. Enfim, relembrou-me minhas querelas internas de quinta-feira à noite, quando, de supetão, resolvi mudar os planos e não rumar para São Francisco Xavier, no extremo norte de São Paulo, e sim me dirigir a Barra do Una, comunidade caiçara no extremo sul da cidade de Peruíbe, quase em território iguapense. Algo me dizia que a mata atlântica da Juréia me seria mais benéfica do que a mata atlântica da Serra da Mantiqueira. Arrebanhei, então, meu antigo companheiro de jornadas Rodrigo Costa Gil, além de Luana Romero que, duas horas antes da partida, conseguira um “salvo conduto” para se juntar a nós. 
Peruíbe e o Morro do Guaraú
 Luana e eu partimos de Americana ao meio-dia de um 7 de setembro de tráfego conturbado nas imediações do controverso portal em forma de arco. O desfile, popular comemoração de nossa independência, não conseguiu atrasar-nos em demasia, e em pouco mais de meia hora nos agrupávamos a Rodrigo nos acostamentos da caótica Rodovia Dom Pedro, em Campinas. Duas motos e três almas seguiam agora para a Anhanguera e, adiante, para a Bandeirantes, na qual permanecemos até o acesso ao Rodoanel, próximo à capital paulista. Pelo caminho, locais cenicamente interessantes, como a Serra do Japi e o Pico do Jaraguá, ponto culminante da cidade de São Paulo. Do Rodoanel Mário Covas adentramos a Régis Bittencourt, de longe a mais movimentada das que saem da metrópole, ligando-a à região sul do país. O clima era ameno, com algumas nuvens timidamente encobrindo nacos do azul dos céus, e tudo transcorreu tranquilamente pelos territórios de Embu das Artes, Itapecerica da Serra e Juquitiba. Após esta última, contudo, começamos a subir a Serra do Cafezal, que mesclava a beleza de sua relativamente bem preservada mata atlântica com a feiura e a fumaça do excesso de caminhões e veículos que, lado a lado, formavam corredores praticamente impenetráveis por nossas carregadas motocicletas, o que nos retardou por cerca de 90 minutos. No fim do trecho serrano, o fluxo foi aberto. Aproveitando o ensejo, rapidamente localizamos a rodovia Padre Manoel da Nóbrega, na altura de Pedro Barros, e por ela descemos a serra com destino a Peruíbe, passando por Pedro de Campos e Itariri, e contemplando os mares de bananeiras, com sacos azuis enrolados nas fartas pencas do fruto, e plantações de coqueiros. Chegamos a Peruíbe por volta das 16:40h, apenas em tempo de comprarmos víveres para a aventura que teria início a partir daquele momento.

Últimos metros do Rio Preto a caminho do mar
  
Ilhas de Peruíbe e Guaraú
 Rondamos a orla de areia rala, batida e negra e contornamos o Mercado Municipal, com o Atlântico a nossa esquerda, sempre com o Morro do Guaraú sombreando a cidade de 60000 habitantes. Atravessamos uma ponte sobre o Rio Preto, de onde avistamos sua foz e os barcos pesqueiros multicoloridos, as biguatingas e as garças-brancas que se empoleiravam nas armações que serviam de ancoradouro às pequenas embarcações. Do outro lado se principiava a subida da Serra do Guaraú pelo morro homônimo. Uma aguda ascensão, logicamente recompensada pela vista das ilhas de Peruíbe e de Guaraú, a partir de uma mureta acimentada dos acostamentos do sinuoso asfalto. As ilhotas arredondadas me fizeram pensar na Ilha de Queimada Grande, que em algum lugar a leste, 35km horizonte adentro, abriga o maior serpentário natural do mundo, com uma população de cerca de 5 indivíduos por metro quadrado. É o lar da jararaca-ilhoa, arborícola e letal, que evoluiu para caçar aves e não pequenos roedores, como a jararaca comum, visto que não há mamíferos como estes na pequena ilha que, durante a última era glacial, com a consequente elevação do nível dos oceanos, foi apartada do restante do continente. Não temos permissão para desembarcar na ilha. É uma dádiva exclusiva dos pesquisadores do Instituto Butantã e, infelizmente, também dos traficantes de animais exóticos que extraem espécimes para comercialização no mercado negro europeu. Estávamos, portanto, apenas de passagem quando esse devaneio me ocorreu.

Portal da Estação Ecológica Juréia-Itatins
  
Estrada do Una
 Descendo o Morro do Guaraú, alcançamos um bairro homônimo. Daí para frente não há mais asfalto. Os pneus de nossas motos se atritavam agora com a terra irregular da Estrada do Una, levantando a poeira que enrubescia nossos andrajos e ressequia nossas fossas nasais. A estiagem castiga, mesmo que o caminho seja envolto pela umidade da mata atlântica. Por falar nesse tipo de vegetação, fomos barrados para uma pequena entrevista no portal de madeira roliça da Estação Ecológica Juréia-Itatins após dois quilômetros de pilotagem cautelosa por essa via. O guarda, todo em preto, quis saber o nosso destino. Afinal, adentraríamos uma das áreas mais resguardadas do litoral brasileiro, com 80 hectares de área e 216km de perímetro. Com uma permissão verbal concedida, seguimos pela terra ora esburacada ora rachada pela ressequidão provocada pela seca. Mesmo com a falta de chuva enfrentamos dois lamaçais, locais onde as altas árvores impossibilitavam a chegada da luz solar à estrada, dificultando a evaporação do excesso de água que se infiltra, formando o tão temido e escorregadio barro. Passamos sem problemas por ambos. Em uma bifurcação, pendemos para a esquerda. À direita calharíamos na Cachoeira do Paraíso, que pretendíamos visitar no domingo. Por entre casas singelas, bicas d'água e pequenas cantinas fomos perdendo altitude e, poucos metros antes de chegarmos definitivamente à vila caiçara de Barra do Una, avistamos a bela Praia de Caramborê, confinada pelos morros e costões rochosos e banhada pelas agitadas águas do Atlântico. Já eram 18h. Percorrêramos 16km de terra e 320km totais desde a partida de Americana.

Praia de Caramborê vista da Estrada do Una
  
Rua da orla
A noite caia, e o pouco de luminosidade que nos restava não nos permitiu muita coisa. Caminhamos pelas duas ruas interseccionadas – forma de T – que compõem a vila de Barra do Una, contando nos dedos o número de casas. Chegamos a um consenso de que pouco mais de vinte moradias estão ali edificadas. Talvez cem moradores. Há igrejas, escola e posto de saúde, todos com tamanho bem reduzido. Movimento de pessoas praticamente nulo. Dois orelhões sem sinal de vida aumentavam a sensação de isolamento com o restante do mundo. Nos imensos e compridos lotes, nos quais se vê as simples casas bem ao fundo, os campings, única opção de pernoite, haviam poucas barracas montadas. Foi num desses que repousamos. Mais tarde, pouco antes das 21h, munidos de lanternas atravessamos a restinga e pisamos pela primeira vez nas areias da Praia de Barra do Una, topando vez ou outra com os siris que se soterravam na areia assustados com a nossa aproximação. Absolutamente mais ninguém. O vento soprava forte, as águas geladas e irrequietas molhavam nossos pés descalços e oportunistas borrachudos intentavam mudar nossa geografia corporal com suas picadas deformadoras. Teríamos problemas com esse minúsculos vorazes no próximo dia. Logicamente não impediriam que levássemos a cabo uma grande travessia de reconhecimento pelas três praias que compõem a orla de Barra do Una. 


O amanhecer da Praia de Barra do Una

Andorinha-grande-doméstica
 O dia 08, um sábado, amanheceu com nuvens ralas, quase uma bruma, ocupando a primeira faixa do horizonte, logo acima do mar. O sol, ainda uma tímida esfera alaranjada, dava indícios de que luziria, soberano, sobre os morros mais próximos a orla, aquecendo o corpo das andorinhas-grandes-domésticas e das corruíras que cantarolavam serelepes, saltitantes em meio à restinga. A areia compacta, dura, num degradê de preto e branco não tornava a caminhada difícil como em outras praias que eu visitara. Isso nos incentivou a caminhar rumo ao sul, por cerca de 300 metros, acompanhados pelo enérgico cão de um caiçara, que apelidamos de “Pirata” devido a uma característica mancha de pelo preto ao redor de um de seus olhos. Uma aguda curva à direita nos apresentou ao Rio Una do Prelado, ou simplesmente Una, que nasce nas serras da Juréia e finaliza seu percurso ali, no Atlântico, sendo responsável por dar o nome Barra do Una ao local. A disposição de suas águas é incomum. O curso vem como um só, se bifurca cem metros antes do contato e se reencontra novamente na iminência do contato do doce com o salgado, formando uma ilhota de areia que, quando assolada pela maré alta, deve ser tomada pelo oceano. Foi ali que “Pirata” se exercitou ao perseguir gaivotões e quero-queros, não poupando esforços na corrida e na natação. O que mais me impressionava, contudo, era o desenho da serra, semelhante aos desenhos de montanhas feitos por crianças, disposto de uma forma que parecia guarnecer a Praia de Barra do Una.

Rio Una

"Pirata"
  
Praia de Barra do Una
 Do Rio Una partimos, sempre caminhando, sentido norte. Aquela areia mais fofa, comum à maioria das praias, só era presente nas proximidades da restinga, afastada trinta metros do mar. Algumas pessoas desafiavam o causticante sol que, a esta altura, já castigava impiedosamente a epiderme. Vale dizer que muitos vêm a Barra do Una apenas para passar algumas horas, geralmente provenientes de Peruíbe, e regressam para seus locais de origem no fim da tarde. Por não ser uma praia badalada, que tenha quiosques, cadeiras espalhadas por todos os lados e vendedores ambulantes, acredito que seja deixada de lado por aqueles que buscam a agitação das praias mais urbanizadas. Some-se a isso o fato de não existirem hotéis e restaurantes de renome. Resumindo, é uma praia não para poucos, mas para aquela classe de poucos que busca a beleza cênica litorânea sem um excesso de seres humanos “poluindo” o visual e consequentemente as fotografias. Com esse raro privilégio, palmilhamos os 2km da Praia de Barra do Una até um costão rochoso. Era o limite norte. Conhecemos, portanto, toda sua extensão, da foz do Rio Una às pedras com mais de 4 metros de diâmetro que eram violentamente assoladas pelas investidas do Oceano Atlântico. Alguns pescadores se arriscavam sobre elas, vez ou outra sendo agraciados com banhos “surpresa”. Mantiveram bravamente o equilíbrio, diga-se de passagem. 

Vista do alto do costão rochoso

Costão entre as praias de Barra do Una e Caramborê

Praia de Caramborê
 Do costão rochoso obtivemos um amplo visual da Praia de Barra do Una. Seguindo por uma trilha estreita num corredor de mata atlântica calhamos numa segunda parte de imponentes rochas, agora esquadradas, de onde é possível visualizar a praia que vem na sequência: Caramborê. É preciso ter algum cuidado com os cactos murumbeba e seus afiados espinhos, desviar de bananeiras e esgueirar-se pelos espaços entre as enormes e muitas vezes escorregadias pedras. Molhamos os pés no mar nos últimos metros do trajeto, visto que o caminho sobre o costão poderia ser mais perigoso. Nossos primeiros passos em Caramborê, vencidos todos os acidentes geográficos, foram suficientes para constatar que é uma praia assaz mais movimentada do que a de Barra do Una. Sua extensão de apenas 550 metros, bem como uma estrutura mais organizada para campistas, são as responsáveis por isso. No mais, a paisagem é a mesma. Nada de quiosques nem vendedores ambulantes com seus simples produtos vendidos a extorsivos preços. Somente pessoas, a areia, o mar e mais um costão rochoso no extremo norte da ilha. Aliás, esgueiramo-nos por entre o mar e esse costão e encontramos um refúgio natural de pescadores caiçaras. Três deles “molhavam” suas iscas nas salgadas águas do Atlântico. O mais velho se gabava de ter fisgado um dos grandes mas, na iminência de tirar o enorme peixe de seu lar, teve que se contentar unicamente com a disputa, pois o bichano mostrou seu poder rompendo a linha e se desvencilhando da morte. Olhando ao sul, a vista obrigou a boca, que sorria com as desculpas e xingamentos do pescador, a se airar com a seriedade que a vista estonteante dos morros que fortificam a Praia de Caramborê clamavam. Víamos três deles totalmente cobertos pela mata atlântica. 


Praia de Caramborê: vista sul

Praia Desertinha
Pelo costão norte de Caramborê não havia como prosseguir. Regressamos à areia e seguimos o curso de um pequeno riacho que vinha por detrás do costão, entrecortando restinga e mata atlântica. Uma boia sinalizadora, abandonada em seu curso, marcava o início de uma trilha que nos levou mato adentro, primeiramente numa grande ascendente e ulteriormente numa abissal descaída. As árvores eram tão altas que impediam a entrada da luz solar. Umectamos as narinas, que até então penavam com a sequidão instaurada pela estiagem, com a inspiração do gélido oxigênio produzido pelos densos vegetais da Juréia. A caminhada foi curta, e em seu término calhamos na chamada Praia Deserta, ou Desertinha. Indiscutivelmente é a menor de todas as três com não mais que 200 metros de extensão. A paisagem mais uma vez resgatou a feição das anteriores. Contudo, por ser de dimensões reduzidas, a sensação de calor e claustrofobia nela foi marcante, tanto a ponto de ensaiarmos pela primeira vez um banho nas águas azuladas e amarronzadas desta ínfima cria do Atlântico. Luana, cansada pela truncada caminhada de aproximadamente 4km, repousou na areia batida da Desertinha enquanto Rodrigo e eu, ávidos por mais caminhada, escalamos o pequeno costão norte, dispostos a fotografar mais belezas cênicas. Não obstante, constatamos que a caminhada poderia ser longa, muito longa. Não víamos praias. Apenas a costa rochosa a perder de vista. Fazendo o uso da razão, voltamos para a praia, tomando cabeçadas e mais cabeçadas de rígidos e esverdeados gafanhotos que saltavam de uma rocha para outra. 

Daqui a Peruíbe somente um extenso costão sem praias

Indivíduo se afogando
 O nosso palmilhar desbravatório pelas praias de Barra do Una chegara ao fim. Já eram quase 14h. Voltamos pela trilha, volvendo nossas espaldas a Desertinha. Cruzamos, agora do norte ao sul, as praias de Caramborê e Barra do Una. No costão desta última, um ensaio de uma tragédia: um homem desesperadamente gritava por ajuda, preso no bailar das águas nas proximidades de grandes rochas da orla. Não há salva-vidas por não ser uma praia popular. Um homem de meia-idade, nadador exímio e complacente com a situação do infortunado homem que se afogava, saltou das pedras e nadou em sua direção. As ondas, contudo, expulsaram a vítima de vez ao arremessá-lo contra uma rocha. O jovem sentou a alguns metros do mar para recuperar o ritmo de sua respiração. Deve ter engolido muita água. Deve ter avariado boa parte de sua “carcaça”. O mar é impiedoso com os que ousam passar de seus limites. No fim, ele estava vivo, mas a memória desse dia certamente se manterá lúcida por todos os dias de sua vida, traumatizando-o para sempre. Talvez seja melhor assim. Algumas paisagens são passíveis apenas de observação, e não de enfrentamento. Lembrei-me de quando Rodrigo, Luiz Paulo Blanes e eu perecemos na tentativa de vencer a Trilha do Telégrafo, no Ariri. Simplesmente não era para estarmos ali, e pagamos por essa ousadia com escoriações, avarias em nossas motocicletas e, principalmente, cicatrizes em nosso brio. 

O resgate

Curvas do Rio Una
 Restava-nos ainda algumas horas de claridade. Caminhando pela estrada de acesso a Barra do Una, a mesma pela qual aportáramos ali no dia anterior, ganhamos um pouco de altitude e, de uma clareira à beira da via, contemplamos as imensas curvas do Rio Una, abrigando em suas margens manguezais e densa mata atlântica. Como dito anteriormente, o curso do rio se divide em dois para, posteriormente, próximo à foz, se reagrupar. Essa divisão forma uma ilha fluvial chamada Ilha do Ameixal. É classificada como uma ARIE (Área de Relevante Interesse Ecológico), por ser de dimensões reduzidas mas detentora de importantes recursos naturais. Essa classificação preserva o local da ocupação humana e da mudança drástica promovida por ela. Para quem não enxerga a beleza de uma massa verde de mata entrecortada por um diminuto curso de rio é um ermo nem um pouco atrativo e fotograficamente não meritório de grandes vivas. Ver o belo é questão de treino, como diria um professor, companheiro de profissão. Foi com essa noção que descemos de volta para a vila e acompanhamos o pôr-do-sol na foz do Rio Una. O astro-rei se absteve dessa parte do litoral sul de São Paulo ao esconder-se por detrás dos morros do oeste da Juréia. Alguns canoistas ainda se aproveitavam da luz alaranjada do fim do dia para as últimas remadas desse esplêndido 08 de setembro, onde uma nativo mateiro, como eu, se encantou, pela primeira vez em muitos anos, com a primazia do litoral brasileiro.

Pôr-do-sol na foz do Rio Una

Canoístas
  
Parque Estadual do Itinguçu
 Dormimos desconfortavelmente em nossas barracas e despertamos cedo. O regresso principiar-se-ia. Despedimo-nos dos moradores locais e de Amarildo Sabino, o ciclista diagnosticado com esquizofrenia que conhecêramos no dia anterior, e partimos pela única estrada possível, a mesma que nos levara sacolejando até ali. A viagem não estava, contudo, terminada. Doze quilômetros depois localizamos uma bifurcação na estrada e seguimos pela esquerda por mais 4km até o Parque Estadual de Itinguçu. Estacionamos as motos, assistimos a um vídeo na casa-sede do parque e adentramos uma larga e bem sinalizada trilha autoguiada. A mesma se divide em três, após 500 metros de caminhada. A central e a da esquerda calham nos poços do Ribeirão Itinguçu, ladeados por pedras de todos os tamanhos e formatos e preenchidos pela água transparente que desce da serra. A mata atlântica refletida na água a empresta um aspecto esverdeado, dependendo do ângulo de incidência da luz solar. O ponto alto de nossa estadia de apenas uma hora nos domínios do Parque Estadual de Itinguçu, cuja visitação é limitada a 305 pessoas por dia, foi a Cachoeira do Paraíso, acessada pela trilha da direita. Com 17 metros não chega a ser imponente. Não é uma queda livre, vertical. Desce escorregando pelo canto esquerdo de um paredão rochoso. Em épocas de chuva deve tomar conta de todo ele, pois o volume d'água aumenta consideravelmente. Muitas pessoas desciam pelo tobogã natural e eram beijadas pela morte ao se chocarem com as pedras. O parque proibiu, então, tal tipo de diversão. Todos os visitantes, hoje, ficam relegados ao poço natural que se forma com a translúcida água do Ribeirão Itinguçu que desce pela cachoeira. 

Cachoeira do Paraíso

Piscina natural do Ribeirão Itinguçu

Corredeiras do Rio Perequê
Deixamos Itinguçu, retomamos a Estrada do Una, repassamos, agora em sentido contrário ao de dois dias atrás, o portal da Estação Ecológica de Juréia-Itatins e apeamos nas corredeiras do Rio Perequê, de características semelhantes ao Ribeirão Itinguçu no quesito rochas em seu leito, mas consideravelmente mais caudaloso. Muita gente se banhava em suas águas e se alimentava nos restaurantes de seus arredores. Visando nos livrarmos do furdúncio, fomos margeando o rio por uma trilha, serra acima. O leito pedregoso, belo e sereno, afrontado por pouco volume d'água, não nos apresentou nada de novo, exceto pelos martins-pescadores e pela presença marcante do surucuá-de-barriga-amarela, ave exclusiva da mata atlântica bem fechada. Realmente não pesquisei a fundo a situação de alguns barracos erguidos à beira do rio, mas me parecem ser fruto de invasão. Dois dos maiores problemas do Brasil emergem quando se visualiza um cenário desse: de um lado, a necessidade da preservação; do outro, a necessidade da moradia para todos. Chegamos a ver o curso do rio trancado por uma pequena ponte de concreto, facilitando o acesso dos transeuntes de um barraco ao outro, mas impedindo o avanço natural da água. Os órgãos que regem a Juréia, que primam pela sua alta capacidade de mantê-la como um recôndito praticamente inviolável, deveriam olhar com mais carinho para as margens do importante Rio Perequê.

Surucuá-de-barriga-amarela
  
O regresso
 De volta à companhia de nossas motocicletas, seguimos para a parte urbanizada de Peruíbe, dando um adeus definitivo a Estrada do Una. Subimos o Morro do Guaraú, agora pelo asfalto, descendo-o ulteriormente, tendo a vista das ilhas de Guaraú e Peruíbe à direita. No alto da serra, um susto: um ciclista descia velozmente, a nossa frente, e num súbito desequilíbrio foi lançado ao canteiro lateral gramado. Paramos para prestar socorro. O infortunado homem agradeceu a ajuda, mexeu cada segmento do corpo para constatar se havia alguma fratura e, sem encontrar alguma, agradeceu a nossa ajuda e cortesmente nos dispensou. Chegamos à zona urbana de Peruíbe e, margeando o Atlântico, fomos nos despedindo de sua areia batida. O cenário já era bem mais “poluído” do que o de Barra do Una. Muitos quiosques, pessoas, caixas de isopor e aquele cheiro de camarão característico das praias movimentadas. Acessamos, na saída da cidade, a BR101, uma continuação da Padre Manoel da Nóbrega. Numa toada lenta e sonolenta, permeada por momentos de engarrafamento total, atravessamos os perímetros urbanos de Itanhaém, Mongaguá e Praia Grande, alcançando a cidade que já foi considerada a mais poluída do mundo: Cubatão. Daí em diante foi só subir a Serra do Mar pela Rodovia dos Imigrantes, vencer o caótico tráfego de fim de feriado prolongado e localizar o Rodoanel. Sobre a imensidão das represas de Billings e Guarapiranga, uma última vista do nosso poderio hídrico muitas vezes ingratamente judiado. Na Bandeirantes, Rodrigo se despediu de Luana e eu, sumindo entre os arranha-céus de Campinas. Em Americana, eu e minha Luna recordávamos de todas as marcantes estórias que, durante os 650km de viagem, nos serão motivo de riso por muitos sóis. As águas intempestivas do Atlântico nos deram um novo ânimo. Cunha e Paraty nos aguardam. “Meu nome é Amarildo Sabino. Vou para onde quero”. 
 “Tudo o que você vê pela televisão eu vi de perto, com esse olhos que os médicos disseram deturpar tudo ao meu redor. Fui de Florianópolis a Montevidéu, no Uruguai, pedalando. Meu nome é Amarildo Sabino. Vi a pobreza, vi a riqueza. O belo se materializava, e o horrendo o desvanecia. Meu nome é Amarildo Sabino. Tenho 47 anos e sou descendente de alemães. Minha cabeça dói. Preciso ir embora. A foto que te pedi fica para uma outra oportunidade. Preciso me despedir. Meu nome é Amarildo Sabino e aquelas pessoas ali já não confiam umas nas outras. Querem espaço, mas o espaço que reclamam nem é de propriedade delas. É do mundo. Meu nome é Amarildo Sabino. Faço o que quero, e agora preciso ir. Nos vemos por aí, talvez em Fortaleza, que é para onde vou. Amarildo Sabino. Amarildo. Sabino”.


Mais fotos aqui. 

E abaixo, um blues para a Barra do Una.


2 comentários:

  1. I love your recent posts and pictures. Well done!

    Greetings to you and your followers from The Netherlands!

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    1. Thanks for dropping by. It's quite an honour to have viewers and followers from The Netherlands. Thanks indeed.

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