segunda-feira, 30 de julho de 2012

Pantanal Sul – de 09 a 19 de julho de 2012


Pode-se dispender o tempo de uma vida inteira tentando conhecer algo e, mesmo com muito esforço, fracassar. Há indivíduos que, conscientes desse risco, usufruem de todo o processo que leva ao conhecimento ao invés de apenas ansiarem pelo resultado final. São pessoas que não esperam pelo fim, em si, e preferem viver naquele faixa compreendida entre o começo e o término de tudo. É dessa forma que os viajantes encaram o imenso Brasil. Com seus inúmeros ecossistemas, zonas climáticas, sotaques e culturas, é em país tão complexo a ponto de tornar impossível que se o explore por completo. O que fazemos – ou pelo menos o que todos deveriam fazer – é tentar desbravar alguns de seus ermos e, durante esse desbravamento, apreciar outros, mesmo que superficialmente. Somente assim dissolvemos aquele sentimento de ignorância quanto ao próprio país, sentimento este que nos faz sabermos menos sobre ele do que qualquer turista estrangeiro de shorts cáqui e câmera nas mãos.
A solitária partida
A ideia de viajar para o Pantanal Sul adveio de uma outra incursão, de julho do ano passado, para o Pantanal Norte, que pode ser conferida no arquivo do blog. Por ter uma área muito extensa, cerca de 210 mil km², é praticamente impossível que se conheça todos os seus recônditos. Mas, como dito no antelóquio, eu almejava voltar, agora para sua porção sul, para visitar algumas microrregiões ainda estranhas a mim. Ninguém me acompanharia. Afinal, seria uma viagem bem longa para quem tem residência nas proximidades da cidade de São Paulo. Tempo, infelizmente, é o que os brasileiros, coagidos social e economicamente a trabalhar em 70% da curta vida, não têm. Sendo um professor de escola pública e ganhando muito pouco, tenho pelo menos o privilégio de gozar de férias duas vezes ao ano. A parte ruim é que dificilmente consigo um companheiro de aventuras quando pretendo ficar mais do que 5 dias vivendo da estrada. Enfim, apesar da relutância de meus familiares, eu estava decidido. Partiria rumo a Corumbá, na divisa do Brasil com a Bolívia, pois é dentro dos limites desta cidade que se encontra a Nhecolândia, uma das oito microrregiões do Pantanal e que de onde é possível visualizar sem esforço sobrenatural parte da fauna pantaneira. Como bônus, pretendia pelo menos visualizar as serras de Maracaju, limite leste do Pantanal Sul, e da Bodoquena, limite sul.
Ponte rodoferroviária
Deixei Americana no dia 09 de julho, às 08:15h, assolado pelo clima congelante do inverno paulista. Em frente a minha casa, o sol raiava entre o pé de cajá-manga e o coqueiro, aquecendo-me um pouco enquanto atrelava minha bagagem à moto. Ganhei as ruas de Americana, buscando uma estrada paralela ao Rio Piracicaba. Nela permaneci até avistar a Anhanguera, acessando-a sentido interior. Avancei rapidamente até que os enormes prédios de Limeira não aparecessem mais nos retrovisores, momento em que adentrei a Rodovia Washington Luiz. Passei por Santa Gertrudes e Rio Claro, subindo a serra de Corumbataí e chegando a São Carlos. Araraquara e outras cidades menores vieram na sequência. Por volta das 11h eu apeava em São José do Rio Preto, cansado pela mesmice cênica proporcionada pelos redundantes canaviais, viadutos e centros urbanos paralelos à estrada. Em Mirassol, com o término da Washington Luiz, embrenhei-me no “velho oeste” paulista pela Euclides da Cunha. Em processo de duplicação e outras melhorias, esta deturpada rodovia me carregou por Tanabi, Votuporanga e Fernandópolis. Foi nesta última que um policial rodoviário, ao julgar que ultrapassei perigosamente outro veículo, decidiu me autuar. Desconcertado, passei por Jales e Santa Fé do Sul. Aproximando-me da divisa de Estados, avistei a ponte rodoferroviária sobre o Rio Paraná. Com 3800 metros de comprimento, esta ponte me levou de São Paulo para o Mato Grosso do Sul. O Rio Paraná, represado para a alimentação das turbinas da Hidrelétrica de Ilha Solteira, “nasce” um pouco ao norte da ponte, da confluência entre os rios Grande e Paranaíba, e durante seu curso separa os dois Estados.

Vista do Rio Paraná a partir de São Paulo
Vista a partir do Mato Grosso do Sul

Emas
Já no Mato Grosso do Sul, atrasei meu relógio em uma hora e me embrenhei pelas fazendas de Aparecida do Taboado, imortalizada pela canção Sessenta Dias Apaixonado, composta por Darci Rossi e Constantino Mendes e gravada por diversas duplas sertanejas. Entrecortei inúmeras fazendas da zona rural visando encontrar o Rio Paranaíba. Augurava obter uma imagem do “nariz” de Minas Gerais (Triângulo Mineiro), formado pela junção dos rios Grande e Paranaíba, que engendram o Paraná, como já citado, mas porteiras fechadas e placas de “não entre se não for convidado” me dissuadiram de tal empreitada. Regressei, então, ao centro de Aparecida do Taboado. Segui por uma rodovia que me distanciou da cidadela de 22 mil habitantes, sobrepassando pontes sobre dois braços da Represa de Ilha Solteira e o Córrego Grande. Os municípios de Selvíria e Véstia, bem como o Rio São Matheus, vieram logo em seguida. Próximo a Três Lagoas, onde pernoitaria, margeei o Rio Sucuriú por uma estrada de terra que me rendeu boas surpresas, como a visualização de emas, seriemas, periquitos e curicacas. Inadvertidamente acabei invadindo um rancho para fotografar o rio. Jair, caseiro, avisou-me que se tratava de uma propriedade particular. Ambos rimos bastante e acabamos conversando um pouco sobre a a rota que eu planejava seguir dali para frente. Safei-me de um segundo contato com a polícia no mesmo dia. Disse-me que a área em que estávamos é conhecida como Praias do Sucuriú. Despedi-me do gentil homem de pele tisnada e regressei ao asfalto, transpassando a ponte em forma de arco sobre o Sucuriú, com o sol se pondo a oeste, e alcançando Três Lagoas poucos minutos depois. Nela eu pernoitaria. Percorri, no primeiro dia, um total de 740km.

Pôr-do-sol nas Praias do Rio Sucuriú

Lagoa Maior, em Três Lagoas

Aeroporto de Campo Grande
A Lagoa Maior, magnanimamente arredondada, é o cartão postal de Três Lagoas, e o sol tórrido o mestre de cerimônias. Por mais que eu desejasse ela deixar, tive que permanecer em seu território por mais um dia. Minha moto, cansada, recebeu uma merecida manutenção. No dia 11, porém, despertamos logo cedo, acelerando para o interior do Estado do Mato Grosso do Sul pela BR262. O cerrado evidenciava a sua força, fazendo pequenas árvores retorcidas pontilharem até mesmo as extensas e planas pastagens. Eucaliptos e grandes capões de mata alternavam-se quando o cerrado campo sujo desaparecia. Grandes aves de rapina, como o caramujeiro e o gavião-caboclo, espreitavam do alto dos postes de madeira, sustentáculos dos fios que carregam a eletricidade para as fazendas locais. Por falar em energia, as grandes torres de transmissão seguem paralelas à rodovia por todo o caminho, levando a força produzida na Usina Jupiá pelo nono maior rio em volume d'água do mundo, o Paraná, para todo o Estado. Os animais mortos à beira da estrada, como antas, tamanduás-bandeira e cachorros-do-mato, me entristeciam, mas não aos carcarás e urubus-de-cabeça-vermelha, que fartamente banqueteavam. O vento lateral incomodava bastante, mas sem imprevistos passei por Água Clara, pequena mas com um comércio em polvorosa, e Ribas do Rio Pardo, às margens do Rio Pardo (não confundir com o de São Paulo), já me aproximando da capital Campo Grande. Às 10h eu cruzava toda a Cidade Morena, como é conhecida por lá, e seus grandes e modernos prédios pela larga Avenida Afonso Pena. Fiz uma breve parada nos entornos do Aeroporto Internacional de Campo Grande, com o calor me castigando, e prossegui pela 262, adentrando o município de Terenos a uma altitude de 200 metros.

Ao fundo, no princípio da Estrada Parque de Piraputanga, vê-se a Serra de Maracaju

Estrada Parque de Piraputanga
À minha esquerda, a partir de Terenos, gozei da companhia dos trilhos de ferro que se originam da estação Indubrasil, utilizados pelo Trem do Pantanal, reinaugurado recentemente com um passeio reservado para autoridades, com a presença do então presidente Lula. Longe de apreciar política ou políticos, preferi rememorar a canção Trem do Pantanal, composta por Geraldo Roça e Paulo Simões, mas imortalizada pela voz e pela viola de Almir Sater. Fui avançando pela 262, sentido oeste do Mato Grosso do Sul, e as pastagens pareceram desaparecer por um momento, cedendo lugar a uma vegetação mais densa, composta basicamente pelos carandás e pequenas árvores, formando uma espécie de cerca viva nos acostamentos da rodovia. O sempre retilíneo desenho da BR me levou até o princípio da Estrada Parque de Piraputanga. Ela adentrei. Em seus primeiros quilômetros o asfalto ainda era meu solo. Casebres, cercas de madeira, portais de fazendas, todos meticulosamente delineados, me chamaram a atenção até certo ponto, pois aqui se iniciaram os contornos da Serra de Maracaju, e ela, por si, só, merecia todas os olhares. Seus desenhos, ora pontudos, ora chapados, ora mistos desvelavam-se à medida que eu deixava o asfalto e ganhava a terra e a poeira que atravessam o povoado de Piraputanga. Lembrei-me de outra canção de Sater que leva o nome da serra. Maldizendo a “poluição visual” causada pela grande quantidade de postes e fios elétricos, sorrateiramente me embrenhei por entre os morros do Chapéu e do Paxixi, este último uma extensa chapada que me lembrou o formato da face sul da Serra da Canastra, mas com um tom mais claro por ser uma formação arenítica, e não granítica como a mineira. Minha aventura pelo Pantanal Sul teria início aqui, desta serra para oeste, uma vez que ela é o divisor do Estado do Mato Grosso do Sul. A oeste dela, a altitude se mantém baixa, formando a planície pantaneira. A leste, o planalto, com altitudes mais elevadas, onde o cerrado predomina. É também o divisor de águas das bacias dos rios Paraguai e Paraná. A oeste, os rios desembocam no Paraguai; a leste, no Paraná.



Imagens da Serra de Maracaju

Periquito-rei
Afastei-me da Serra de Maracaju apenas o necessário para chegar a Aquidauana, cidade portal do Pantanal Sul por estar aos pés da serra. Com mais algumas horas de luz solar, embrenhei-me por uma estrada de terra que, para o meu deleite visual, seguia paralela a Maracaju, agora sentido sul-norte. Apesar de mais distante, imensas chapadas e pontas de arenito são facilmente notadas, contrastando com as pastagens que alimentam o gado pantaneiro. As imensas fazendas, que também ajudam a criar a identidade do Pantanal, foram meu campo de observação 70km terra adentro, rumo ao Rio Negro. Apesar de os locais terem me informado de que chovera muito nos dias anteriores, encontrei poucos pontos alagados e, consequentemente, poucos animais. Tive o privilégio, contudo, de visualizar uma ave exclusiva do Pantanal e que vira até então apenas em fotos de outrem: o aracuã-do-pantanal, uma espécie de jacu da mata atlântica com tons mais amarronzados. O periquito-rei e a curicaca, comuns no cerrado, presentes se faziam, mostrando que esta é ainda uma área de transição entre este bioma e o bioma pantaneiro. Eu não tinha, porém, tempo para me aprofundar nesta sub-região. O sol insistia em descer para baixo da linha o horizonte. Tive que regressar a Aquidauana, admirando pela última vez – pelo menos eu pensava que seria a última – a Serra de Maracaju. Tão distraído em devaneios estava eu que quase não notei a presença de sacos de carvão mineral espalhados pela estrada de terra em que estava. Quando os percebi, diminui a velocidade da toada e me atentei mais aos meus caminhos. Dois quilômetros à frente três infelizes homens lamentavam, ao lado de um caminhão carregado de carvão, que alguns sacos haviam se soltado da carreta e se espatifado pela erra batida. A noite deles, reempilhando tudo, seria longa. A minha, não. Dormi tranquilamente em Aquidauana.

Aracuã-do-pantanal

Ponte da Amizade
O dia 12 amanheceu nublado. Logo às 7h deixei Aquidauana e passei para Anastácio. São duas cidades “siamesas” ligadas por duas pontes, uma moderna e outra antiga. A antiga, construída em 1921 e historicamente conhecida como Ponte da Amizade, foi a que escolhi para atravessar. De engenharia simples, edificada a ferro, madeira e pedra, vem resistindo às fatídicas cheias do Rio Aquidauana, um dos mais importantes do Pantanal. Nela só se passa um veículo por vez. Há até uma prainha, com direito à areia e rede de vôlei, às margens do rio imediatamente após a ponte, no lado de Anastácio, de onde pude obter um bom ângulo para fotografá-la. Foi deste trecho em diante que realmente me senti envolvido pelo Pantanal Sul, pois os grandes rios que o entrecortam são os mesmos rios que, na época de chuvas, transbordam e alagam grande parte da superfície pantaneira, mudando toda a dinâmica do manejo de gado nas fazendas. O que é pasto, na seca, vira área alagada na “cheia”. A manada, portanto, tem que ser pastoreada para áreas que não são assoladas pela água. Quando as chuvas cessam, de maio a setembro, os rios seguem caminho pelo leito original e as áreas alagadas começam a “secar”, deixando apenas algumas poças – os chamados “corixos” – em lugares onde alguma depressão no solo impeça que a água escoe ou seja absorvida e evaporada rapidamente. É nestes corixos que a maior parte da fauna pantaneira se concentra, pois neles há abundância de peixe e estes ficam confinados em uma pequena área, tornando-se presa fácil aos jacarés e às pequenas e grandes aves do Pantanal. De Anastácio para frente, como supradito, este fenômeno passaria a ser mais perceptível, pois a altitude média de 100 metros em relação ao nível do mar se manteria constante, caracterizando-se como solo plano e, portanto, alagável, já que a água não tem como correr, permanecendo presa como em uma banheira.

"Ilha" de jacarés-do-pantanal

Tachã
Estava de volta à 262. Fui avançando para o oeste, agora com a companhia da savana e não mais do cerrado. Transpassei Miranda, cidade onde o supracitado Trem do Pantanal termina seu trajeto, e o asfalto aqui degradado se esbranquiçou. Quando tudo fica mais rústico, a bicharada encontra seu nicho. As grandes aves, como o tuiuiú e o tachã, já podiam ser vistos com certa facilidade. Os jacarés-do-pantanal, que se aglomeram em ilhotas nos corixos, se “bronzeam” despreocupadamente ao sol, intentando aquecer o frio sangue reptiliano. Um filhote de cervo-do-pantanal, trazendo um siriri em sua espalda, tentava atrapalhadamente se desvencilhar das galhadas de um charco, mas sua falta de experiência no assunto o fez perder algum tempo, habilitando-me a registrar algumas fotos do cervídeo. As nuvens carregadas me preocupavam, e em uma certa altura tive que tomar uma decisão: ou adentraria a Estrada Parque do Pantanal Sul, com seus 130km de terra, ou seguiria pela 262, também com a mesma quilometragem, mas asfaltada. Ambas me encaminhariam para Corumbá. Inspirando demoradamente uma rara lufada de sensatez, optei pelo asfalto. Se o aguaceiro caísse dos céus, teria problemas no inexorável solo da Estrada Parque. No fim das contas, sequer uma gota foi derramada. Por volta do meio-dia, após atravessar a imensa ponte sobre o Rio Paraguai e pagar o infeliz pedágio após a mesma, inseri-me no território corumbaense, admirando grandes morros em forma de pirâmide e o Maciço do Urucum, imponente monte explorado pela Vale. Dele se extrai o manganês e o ferro. Enquanto o fotografava, o azul dos céus reavia o seu lugar, dispersando o cinza e a neblina que cobriam a atmosfera.

Filhote de cervo-do-pantanal

Maciço do Urucum visto a partir da BR262

Aduana boliviana
Em Corumbá, com ainda metade do dia livre, pensei em conhecer a Bolívia. Deixei minha companheira estacionada em um local seguro e parti, a pé, rumo à fronteira. Achava eu que levaria não mais do que alguns minutos. Ledo engano. Caminhei por cerca de 5km e fui informado que sequer próximo a ela eu estava. A solução encontrada foi subir na garupa de um mototaxista que, por alguns trocados, atravessou a aduana brasileira, o control fronterizo boliviano e me deixou em Puerto Quijarro, cidade boliviana imediatamente após a fronteira. Pela primeira vez eu colocava meus pés em solo boliviano. Em contrapartida, pela primeira vez nesta viagem eu me decepcionava. Comércio: é o que há por aqui. As duas avenidas principais estão repletas de lojas que comercializam desde bugigangas a modernos aparelhos eletrônicos, bebidas e cosméticos. O preço de tudo, logicamente, é bem chamativo. Eu, desprovido daquele consumismo que assola muita gente que frequenta centros comerciais como este, procurei apenas pelo pneu traseiro de minha moto, que bem gasto ameaçava dar seus últimos suspiros brevemente. Não almejava por mais problemas com a polícia. Por mais que eu pesquisasse, nada encontrei. O que me restou foi voltar ao Brasil, a pé novamente, visualizando em meus últimos momentos na Bolívia a estação de onde parte o famoso “Trem da Morte” para Santa Cruz de La Sierra. Enquanto fotografava a fronteira, repreendeu-me um membro do exército brasileiro. A farda tem que servir para alguma coisa, certo? Não há lei alguma que me impeça de registrar os lugares por onde passo, a não ser que sejam particulares. O jovem homem ergueu o tom de voz, chamou a atenção e conseguiu o que queria. Espero que tenha dormido bem, com a sensação de que “protegeu” o país dos cliques de um fotógrafo amador.

Puerto Quijarro, Bolívia

Praça da República, em Corumbá
Outro mototaxista me levou de volta a minha moto. Unidos novamente, subimos a Via Sacra que culmina no alto do Morro do Cristo, de onde se tem uma ampla visão da cidade de Corumbá e da planície pantaneira. É de onde se vê imensas curvas dos rios Paraguai (que na época de cheia pode chegar a 25km de largura) e Cuiabá, talvez os mais importantes da parte oeste do Pantanal. Os dois se unem e continuam com o nome de Paraguai no Porto Geral, onde barcos de pesca, tanto de pescadores nativos quanto de turistas, partem para pescarias ao norte, na sub-região de Paiaguás, a de mais difícil acesso de todo o Pantanal brasileiro. Imensos corixos e ilhas formadas pela dinâmica das águas são também observados. Para quem quer compreender o “funcionamento” deste bioma, o Morro do Cristo é uma boa pedida. A cidade de Corumbá, em si, bem como o grande e alvo Cristo Redentor, são meros detalhes. Para quem olha mais à frente e tem maiores aspirações, a vista corre longe, rumo ao norte e ao noroeste, para os lados da Bolívia, onde o Pantanal também ocupa parte do território. E não nos esqueçamos do Paraguai, logicamente não visto daqui, mas também envolvido pelos tentáculos pantaneiros. Contudo, a maior parte é brasileira, e ela eu desbravaria bo dia seguinte. Vaguei pelo resto do dia, descendo ao Porto Geral, fotografando as construções coloniais da orla do Rio Paraguai, que durante a Guerra do Paraguai (1864-1870) foram avariadas e hoje magistralmente restauradas. Uma ponte elevatória de captação de água se ramifica da orla e cessa na confluência dos rios Paraguai e Cuiabá. Para encerrar o dia mais urbano de minha viagem, rodeei a Praça da República, bem no centro de Corumbá, local em que tropas paraguaias foram derrotadas em 1867 pela Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai).

Vista da planície pantaneira e de Corumbá do alto do Morro do Cristo

Porto Geral

A união entre os rios Paraguai e Cuiabá

Maciço do Urucum: outra vista
O dia 13 seria o Dia P. P de Pantanal. Nele eu me dedicaria exclusivamente a Nhecolândia, sub-região compreendida entre os rios Negro e Taquari. A Estrada Parque Pantanal Sul, a mesma que eu evitara no dia anterior, agora seria minha via de ligação com a fauna pantaneira. Não mais veria edificações de concreto ou locais históricos. Estaria no mato, nos corixos, nas rústicas pontes de madeira, na presença de aves e mamíferos. Acelerei para longe de Corumbá e, no trevo de acesso à cidade, adentrei a terra. Um comando do exército me barrou, revistou minha bagagem e me liberou. Não me desanimaram por tal conduta. Ganhei a estrada, passando pelo Maciço do Urucum novamente, fotografando emas e os últimos pontos altos da região. Pouco antes de um pedregoso declive fui cumprimentado por Hecson Martins e sua esposa, Denise, que de bicicleta incursionavam, há meses, pelos Pantanais Norte e Sul. Trocamos contatos e prossegui, sozinho, pela errante via. Quando alcancei a planície, ansiei por encontrar a vida que borbulha na superfície deste bioma. Contudo, tudo estava mais seco do que eu imaginava. Percorri muitos quilômetros e tudo o que vi foram alguns jacarés, gaviões-belos, colhereiros, biguás e martins-pescadores. A limpidez das águas que corriam sobre as pontes de madeira me impressionava, bem como o tom verde-claro dos aguapés que desenham na superfície líquida azul. Absolutamente ninguém em volta. Apenas se ouvia as onomatopeias da savana e o zumbizar dos insetos em meio ao capim-mimoso. A paz deste ermo é indescritível. Logicamente nem tudo são “flores”. O Rio Taquari, que não tive o privilégio de conhecer, sofre um agudo processo de assoreamento. Tenho acompanhado de perto as pesquisas engendradas pelo SESC Pantanal e as previsões não são agradáveis. O rio, na época de cheia, se expande e abraça uma grande área aos seus arredores. Na seca, quando deveria voltar ao seu leito original, não o encontra em razão de o mesmo estar assoreado. Como resultado, o rio, em algumas áreas, cria leitos alternativos, aproveitando desníveis do solo. Em outras, em que a água não tem para onde escoar, o alagamento tem se tornado permanente.

Paisagem da Estrada Parque do Pantanal Sul

Colhereiro

Tuiuiús
Somente emoções cênicas me induziram a prosseguir. Após 50km de terra me deparei com o Rio Paraguai, e a passagem de balsa sobre ele, que durou pouco mais de 5 minutos, foi literalmente o divisor de águas de minha incursão pelo Pantanal Sul. Aliás, são interessantes as casas sobre palafitas construídas às margens do rio, adaptação às cheias que podem aumentar – e muito – o alcance das águas. A Casa do Telégrafo Marechal Rondon é outra que partilha da mesma estrutura. Nesta época, de seca, e neste local, que é conhecido como Porto da Manga, de uma margem à outra a distância não é maior do que 200 metros. Já na margem oposta, seguindo pela Estrada Parque, logo na primeira ponte sobre uma vazante, acreditei ter visto um cavalo com metade do corpo submerso entre os aguapés. Esperei a acuidade visual fazer efeito e discerni as formas do bichano. Tratava-se de um cervo-do-pantanal, fêmea por não ter a galhada presa à cabeça. Consegui fotografá-la com um siriri às costas, antes de se aterrorizar com a minha presença e saltitar apressadamente para o meio do mato. Impressionei-me com o tamanho do cervídeo, consideravelmente maior do que os veados-campeiros da Canastra. Chegam a pesar 130kg e são os maiores veados da América do Sul. Como se não bastasse minha alegria ao ver o bichano, metros depois encontrei outro, este filhote, talvez o da mãe que eu vira há pouco. Enquanto o fotografava, uma camionete de Americana, no sentido contrário, estacionou para também observá-lo. Após ela, um motociclista de São Paulo. Proseamos um pouco e a família americanense, conterrânea minha, debandou. Eu e o motociclista paulistano, Erlon Júnior, trocamos algumas informações sobre nossas rotas e, por incrível que pareça, muitos pontos coincidiam. Seguiríamos, dalo em diante, juntos para a Serra do Bodoquena. Seriam, agora, duas motos, duas almas e todo o Mato Grosso do Sul para desbravarmos.

Cervo-do-pantanal fêmea

Rio Paraguai

Lontra
Todos os meus planos, quando deixei Americana no começo da semana, foram revirados. Partira sozinho, e agora não mais estava. Conheceria o Pantanal Sul, e agora iria também para a Bodoquena. Todavia, ainda tinha que finalizar meu caminho na Estrada Parque. Erlon e eu enfrentamos a terra, as pontes de madeira e ousamos nos aproximar de um corixo repleto de jacarés-do-pantanal para fotos mais detalhadas desses belos espécimes. Medindo entre dois e três metros, isso do focinho à ponta do rabo, esses grandes répteis são mais medrosos do que suas sáuricas faces transparecem. Chegamos a ficar a três metros de distancia de um pequeno bando. Grande parte dele sumiu debaixo d'água, e apenas um, o mais truculento da turma, petrificou-se, fitando-nos como se nos desafiasse a dar mais um passo à frente. Logicamente não ousamos. O mais impressionante neste animal é a disposição de seus dentes mandibulares, ou seja, os da parte de baixo de sua boca. Com a boca fechada esses dentes atravessam a maxila, de modo que é possível vê-los apontados perto das narinas. Os superiores, por sua vez, ficam para fora. Deve ser uma prensão poderosa. Contudo, não augurávamos descobrir in loco. Deixamos os arredores do corixo e continuamos vagarosamente, passando por sobre o Rio Negro e diversas vazantes. Na reta final da estrada vencemos a Curva do Leque e o Passo do Lontra, onde o cômico mamífero graceja enquanto se esquenta ao sol, em companhia dos sempre presente jacarés. Sobre uma imensa porte arqueada cruzamos o Rio Miranda e ganhamos a BR262, no mesmo ponto que, no dia anterior, eu optara por ir a Corumbá via asfalto devido ao mau tempo. Não devo me esquecer de mencionar um último encontro com a polícia, que revirou toda a nossa bagagem à procura de algo ilícito.

Jacarés-do-pantanal

Fim de tarde na Serra da Bodoquena
Sempre sentido leste, rapidamente nos vimos em Miranda. Desfrutaríamos de mais algumas horas de sol, e incontinenti rumamos ao sul do Estado. Os pontos alagados foram rareando à medida que nos aproximávamos de Bodoquena, pequena cidade aos pés da serra homônima. Lá nos informamos sobre a Cachoeira da Boca da Onça, que com 105 metros é a maior do Estado do Mato Grosso do Sul. Queriam cobrar, para o nosso infortúnio, 150 reais. Para quem viaja de moto, com barraca na mala e sem dinheiro para esbanjar, sequer cogitamos levar a visita adiante. Descontentes, continuamos pela estrada, admirando o pôr-do-sol com dispersas luzes laranjadas da Serra da Bodoquena. Já pela noite, adentramos a cidadela de Bonito, a mais turística de todo o Estado. Pelejamos para encontrar pouso de acordo com nossas condições financeiras, visto que até mesmo um albergue aqui é oneroso. Com 18000 habitantes e puramente comercial, nada nos pôde oferecer além de alimento numa noite em que as imagens do Pantanal Sul ainda afetavam nossos sentidos. Em contrapartida, esse tempo ocioso foi a oportunidade perfeita para que programássemos a rota a partir dali. Ousamos pensar em adentrar o Paraguai até a Laguna Blanca. Com certeza lá tudo seria bem mais barato que os atrativos de Bonito, que são absurdamente caros, uma vez que os chamados vouchers, passes para a entrada nos atrativos da região, são comprados apenas em agências turísticas. Obviamente não desistimos de fazer pelo menos uma trilha pela Bodoquena.

Gruta da Lagoa Azul

Estrada para a gruta, em Bonito
Com muito custo, logo pela manhã do dia 14, conseguimos o famoso voucher para o ingresso na Gruta da Lagoa Azul, o atrativo mais conhecido de Bonito. Por volta do meio-dia nos embrenhamos em uma estrada de terra ondulante, repleta de seriemas. Seu fim se deu na portaria da gruta. Apresentamos os vouchers e nos juntamos a um grupo de 10 pessoas. Uma guia credenciada nos instou a acomodar capacetes amarelos em nossas cabeças, uma vez que adentraríamos um local onde o caminhar é traiçoeiro. Uma leve trilha em meio à mata e nos deparamos com o “portão” de acesso, encouraçado por estalactites, electites e raízes de árvores que se sobressaem da vegetação superior à borda da gruta. Fomos descendo em direção ao interior, tomando cuidado para não nos apoiarmos nas estalagmites, que vem sendo esculpidas há milênios pela água infiltrada, e de alguns pontos visualizamos parcialmente a lagoa azul. Como a luz solar não atinge a parte interna da gruta nesta época do ano, fotografar o azul do lago e as estruturas da caverna foi um exercício de paciência. Logicamente as fotos não traduzem a beleza do local, mas dá para se ter uma noção de quão cristalina é a água desta obra da natureza. A guia nos informou que foram proibidos os mergulhos após a descoberta de fósseis de animais como o dente-de-sabre e a preguiça-gigante, que perambulavam pela Terra a 6000 anos atrás. Uma outra curiosidade é a profundidade da lagoa, superior a 90 metros. Há ainda acessos a outras partes da gruta somente permitidos a pesquisadores com um aval especial da prefeitura, que controla a visitação e estipula que apenas 305 pessoas por dia visitem a gruta.


Mais imagens da Gruta da Lagoa Azul

Tamanduá-bandeira
Sem mais capital para fomentar o turismo de Bonito e da Serra da Bodoquena, deixamos os domínios da Gruta da Lagoa Azul e continuamos seguindo sentido sul do Estado. Chegamos a Jardim, onde uma tremenda algazarra se desenrolava em uma das principais avenidas devido a um encontro de motociclistas. Todas as motocicletas que lá estavam resplandeciam o zelo de seus donos. Radiavam de tão limpas, lustrosas. Nós e nossas enlameadas companheiras não participaríamos daquele bródio e prestamente nos distanciamos da cidade. Fizemos uma rápida parada no distrito de Boqueirão antes de prosseguirmos. Erlon parecia afoito, apressado, e acelerou na frente, liderando o séquito para cada vez mais longe do Pantanal. Eu, atrás, admirava a lagoa de uma fazenda na margem esquerda da estrada quando discerni algo saindo de um capão de mata. Freei abruptamente, agradecendo por não estar em uma movimentada rodovia paulista. Manobrei a moto para o meio do capim alto do acostamento e localizei o bichano do outro lado da cerca: era um tamanduá-bandeira. Pela primeira vez em minha vida eu via o enorme destruidor de cupinzeiros de garras e língua poderosas. Quando se vê esse espécime em fotos, não dá para se ter uma noção de seu tamanho. Da ponta de seu comprido focinho até a o fim de sua espalhafatosa cauda ele devia medir cerca de 2 metros. Consegui apenas um registro, pois minha câmera estava fechada a chave no baú traseiro da moto. Os segundos que desperdicei para tê-la em mãos foram suficientes para que o tamanduá notasse minha presença e fugisse galopando para dentro do capão. Atravessei a cerca e o procurei mata adentro, mas não mais o encontrei. Neste ínterim, Erlon voltara e, preocupado, perguntava o que acontecera. Apenas mostrei a foto e, agora mais devagar, tocamos em frente.

Rio Apa. Do lado direito, Bela Vista (Brasil); do esquerdo, Bella Vista (Paraguai)

Bella Vista, Paraguai
Bela Vista: este era o nome do município em que pernoitaríamos naquela noite. Chamado de Princesa do Apa, a pequena cidade incrustada na fronteira com o Paraguai nos abrigou comodamente. Frequentamos, à noite, a famosa Expobelo, com comidas típicas de festa junina, exposição e leilão de cavalos e gado. Os povos paraguaio e brasileiro se misturam em meio ao imenso recinto desta que é conclamada como a maior festa da fronteira. O frio intenso e o cansaço não colaboraram e retornamos ao pouso. No outro dia, 15, passamos a pé sobre a ponte do Rio Apa e adentramos o Paraguai. A cidade tem o mesmo nome de sua vizinha brasileira: Bella Vista. Procurei novamente pelo pneu traseiro de minha moto, mas nada. Erlon se concentrou em adquirir roupas de frio, pois quando partira de São Paulo não desconfiava que teria problemas com isso no Mato Grosso do Sul. O parafuso de uma das malas de minha moto também se soltara. Ele encontrou o que queria. Eu não. Voltamos ao Brasil e, apesar de ser um domingo, encontrei o parafuso. Poderíamos seguir viagem. “Selamos” nossas motos e retornamos ao Paraguai para abastecê-las, pois o preço da gasolina guarani é bem mais convidativo do que o da brasileira. Regressamos ao Brasil novamente e, no trevo de acesso e saída de Bela Vista, rumamos sentido leste, numa rodovia em que a monotonia das pastagens perdurou até alcançarmos um dos braços da Serra de Maracaju, que me relembrou o quarto dia de viagem. Subindo-a, culminamos em Antônio João, por volta das 14h. Dos 180m de altitude de Bela e Bella Vista subíramos aos 800m deste município. Retornávamos ao planalto do Mato Grosso do Sul. Deixando Antônio João para trás, avistamos Ponta Porã, mais uma cidade fronteiriça com o Paraguai.

Novamente a Serra de Maracaju

Pedro Juan Caballero, Paraguai
No dia 16 despertamos em Ponta Porã, que com 80000 habitantes não é exatamente pequena. Faz-se ainda maior por estar unida a Pedro Juan Caballero, no lado paraguaio, por fronteira seca. Não há um rio, uma ponte ou uma serra que separe naturalmente as duas cidades e os dois países. O que se vê é apenas um marco de formas quadradas, mostrando que a avenida da fronteira pertence metade ao Brasil e metade ao Paraguai. Basicamente é só atravessar a rua para estar em outro país, com outros preços, outra moeda e outra cultura. Mais uma vez nos vimos em um local que não poderia nos oferecer muitas experiências inesquecíveis, e mais uma vez reuni meus esforços na procura do pneu traseiro para minha companheira. Desta vez o encontrei, após muito caminhar pelas movimentadas ruas da cidade guarani. De pneu trocado, seguimos para a aduana paraguaia e demonstramos à fiscal o nosso desejo em adentrar o país até Cerro Corá, saindo posteriormente pela cidade de Salto del Guayra, divisa com o Estado do Paraná. A acanhada moça disse que conseguiríamos um visto caso portássemos nossos RGs. Tínhamos em mãos apenas nossas carteiras de habilitação de condutores, que não foram aceitas. Legalmente não entraríamos no Paraguai. Fisicamente, por outro lado, nada nos barraria. Poderíamos entrar incógnitos, ilegalmente. Todavia, se algum policial paraguaio nos abordasse, certamente pagaríamos pelo crime. Preferimos passar mais algumas horas em Ponta Porã e, com chuva e frio, vencemos os pouco mais de 100km até Dourados. Foi o único dia em que fomos castigados pelas intempéries. Foi o dia, também, que a realidade começou a nos assolar. Mal percebêramos, mas estávamos já voltando para São Paulo.


Fronteira seca entre Ponta Porã (Brasil) e Pedro Juan Caballero (Paraguai)

O regresso
A grande Dourados nos calhou apenas como dormitório. Eu, e acredito que Erlon também, estava já fatigado pelo excesso de cinza e consumismo que permeavam as últimas cidades em que estivéramos. As imagens do Pantanal e de Bonito foram tão marcantes que não davam ensejo algum à mesmice inquieta dos prédios e vitrines. Foram locais dos quais usufruímos mas que, de uma certa maneira, não condiziam com o nosso espírito. Foi com essa triste consciência que principiamos o regresso. Deixamos Dourados e seus imensos canaviais e acessamos uma vicinal ladeada por milho que nos carregou até Lagoa Bonita. Neste pequeno povoado há realmente uma lagoa que não é a mais bonita do mundo, mas que ostenta bravamente seu garbo. Atravessamos uma plantação de aipim para alcançar suas margens e fotografá-la de perto. Prosseguindo, trespassamos Deodápolis, Ivinhema e Nova Andradina, essas duas últimas com aquela feição de cidades movimentadas que procurávamos evitar. As várzeas do Rio Ivinhema serviram de alento à vista cansada. Por falar em várzeas, nos aproximávamos do Rio Paraná, o popular Paranazão, que também detém as suas. Uma placa de Boa Viagem, a última do Mato Grosso do Sul, despediu-nos de vez do Pantanal do Estado do Pantanal. Cruzávamos o Rio Paraná, ou Lago Primavera, nome que esta parte do curso ganhou por ser represado para a alimentação das turbinas da Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta, ou apenas Usina de Porto Primavera. São 10km de barragem entre os dois Estados, assegurando a ela o título de mais extensa do Brasil. Do nosso lado esquerdo víamos a imensa barragem, muitos metros acima da linha de nossos olhos, e do lado direito a vegetação mais alta resistindo ao abraço acachapante do rio. Passada a ponte, já no Estado de São Paulo, adiantamos nossos relógios em uma hora e paramos para um banquete à base de manga-coquinho, fruto proveniente de uma mangueira próxima à entrada da usina.

Lagoa Bonita

Barragem da Usina de Porto Primavera e o Rio Paraná na divisa entre MS e SP

PE do Morro do Diabo
Em São Paulo novamente, distanciamo-nos de Porto Primavera, acessamos o norte no trevo que, ao sul, culminaria em Rosana, e ganhamos a judiada e monótona estrada. A região é conhecida como Pontal do Paranapanema. A impaciência dos caminhoneiros paulistas, sempre inoportuna, começou a ser notada. Alguns quilômetros depois avistamos uma grande elevação. De seu topo descia uma densa mata atlântica que se estendia como um tapetão verde a seu derredor. Tratava-se do Morro do Diabo. Nunca em minha vida ouvira relato algum sobre esse morro. Fomos nos aproximando de sua base e nos deparamos com um portal de madeira com uma placa indicativa: Parque Estadual do Morro do Diabo. Pouco depois do portal alguns homens trabalhavam no calçamento do que parecia ser uma trilha que conduz ao topo do morro. Pedimos permissão para adentrar a trilha, mas fomos barrados pelo engenheiro. O acesso será liberado somente quando todas as melhorias na trilha forem concluídas. A previsão é para o dia 10 de agosto. Para nos ajudar a não sair daquele pedaço de mata de cabisbaixos, o nobre homem nos enviou à sede, na cidade de Teodoro Sampaio, distante 25km da base do morro. Arrumou até mesmo um local para dormirmos dentro dos domínios do Parque Estadual do Morro do Diabo. O caminho até esse ermo, uma estrada vicinal que se ramifica de dentro de Teodoro Sampaio, por si só é um aperitivo para o que se encontra no interior da reserva: tucanos, quiriquiris, seriemas e tesouras-do-brejo são algumas aves que observamos. À noite, no lado de fora da hospedaria, visualizamos, com a ajuda de nossas lanternas, alguns veados-mateiros que rondavam o local.

Morro do Diabo

Guaxe

Veado-mateiro
A manhã fria do dia 18 iluminou em demasia o Parque Estadual do Morro do Diabo. A abundância de luz nos fez enxergar em minúcias todos os detalhes dessa área protegida às margens do Rio Paranapanema. A alta vegetação atlântica, composta por ipês, perobas e cedros nos acompanhava pelas trilhas mata adentro. O macaco-prego estava lá, subtraindo os coquinhos dos altos coqueiros, e o araçá também. De repente a vegetação se abriu em uma clareira de samambaias que se desfaziam sob a jugo da água, oriunda de alagamento natural. É a chamada Lagoa Intermitente. Uma ponte de madeira nos elevou sobre esse estranho cenário, levando-nos ao outro lado, onde a mata fechada ganha força novamente. Saímos da trilha numa espécie de museu com criaturas empalhadas: onças, antas, tamanduás-mirins. Em outra trilha alcançamos as margens do Paranapanema, o mais limpo dentre todos os grandes rios do Estado de São Paulo. Do lado de lá, o Estado do Paraná, uma vez que o rio divide naturalmente os Estados. Uma torre de observação nos serviria de mirante, mas a podridão de sua estrutura não nos oportunizou a subida. A surpresa ficou por conta de um gato-do-mato que, de tão ágil, não me permitiu registrá-lo. De volta à hospedaria, além de vermos inúmeras pegadas de anta no barro das várzeas do Paranapanema, tivemos contato com um veado-mateiro que, de tão dócil, acabou virando bicho de estimação do pessoal do parque. Acastanhado e com esferas brancas no dorso, o cervídeo de 90cm de altura chegou a lamber minhas mãos feito um cachorro.

Macaco-prego

Lagoa intermitente

Rio Paranapanema e o Morro do Diabo
Por volta do meio dia deixamos os arredores do Morro do Diabo, local onde, reza a lenda, homens brancos eram queimados por índios como castigo por todo o sofrimento impingido aos nativos pelos bandeirantes. Atravessamos Teodoro Sampaio e demos uma última espiada – pelo menos eu esperava que fosse a última – no Rio Paranapanema, sobre a ponte edificada imediatamente em frente a Usina de Taquarussu, a penúltima hidrelétrica no curso do explorado rio. De lá se obtém também uma boa vista da imponência do Morro do Diabo, o ponto mais elevado no horizonte. Fomos subindo sentido nordeste, passando por Sandovalina, Pirapozinho e Anhumas. Desta última acessamos a Raposo Tavares, a mais enfadonha de todas as grandes rodovias que saem da cidade de São Paulo. Pagamos dois extorsivos pedágios e, com o ódio aflorado, pendemos para o sul novamente na altura de Maracaí. Tendo só cana-de-açúcar como paisagem topamos com Cruzália, mas nada encontramos de interessante na pequena cidade. Não muito distante dali, Pedrinhas Paulista, o último reduto de famílias italianas do Estado, timidamente despontou para nossos olhos. Ela seria o nosso último pouso da viagem. As cores da bandeira italiana pintadas em cada poste, a arquitetura da igreja matriz e da praça, a estátua da loba amamentando Rômulo e Remo, os centuriões romanos: tudo remete à Itália. Eu, descendente de italianos, sinceramente não tenho muito apreço por raízes longínquas. Nasci no Brasil e brasileiro sou. Por ele eu estava ali.

Usina de Taquarussu

Pedrinhas Paulista

Vagão abandonado em Avaré
O dia 19 acordou frio. Rapidamente deixamos Pedrinhas e alcançamos Assis. Novamente na Raposo Tavares, passamos por Ourinhos, Ipaussu e Bernardino de Campos, a partir de onde avançamos paralelamente aos trilhos da antiga Sorocabana, para o delírio de Erlon, ferroviário por profissão. Na sequência vieram Manduri e a grande Avaré, com sua vilinha ferroviária multicolorida. Dela a Itatinga pode-se dizer que existe um cemitério da era áurea das ferrovias no Brasil: vagões abandonados, trilhos seccionados, estações e outras instalações abandonadas à própria sorte. Próximos ao trevo de acesso à vicinal Ene Sab, a 800m de altitude, adentramos uma pequena estrada de terra em meio a uma plantação para visualizar a beleza do Vale do Paranapanema, neste ponto conhecido como Represa de Jurumirim por ser o reservatório da Usina Hidrelétrica instalada em Avaré. Nem desconfiávamos que essa seria a última imagem de uma viagem de 10 dias pelos Estados do Mato Grosso do Sul e de São Paulo. Quando me despedi de Erlon, no trevo que dá acesso a Cerquilho, Tietê e Piracicaba, a partir da Castello Branco, tive a sensação de que mais aventuras como essa ocorrerão num futuro próximo. Uma nova amizade surgiu em meio às pastagens da Nhecolândia, onde o gado degusta o capim-mimoso e depois atrita sua língua com a terra à procura de sal, mostrando que o Pantanal, um dia, foi mar. Foram, no total, 3700km rodados. As saudades de casa, dos familiares e de minha Luna foram se minimizando à medida que os reencontrava. Abraços apertados me sufocaram e, em seguida, afrouxaram o pulso, pois bem sabem que, dentro em breve, deles me distanciarei novamente. Para longe mais uma vez irei. Só tentam adivinhar para onde.

Vale do Paranapanema visto de Itatinga

Em uma país em que o desconhecimento do próprio solo e da própria cultura é senso comum, surge de dentro do umbigo indiferente do povo tupiniquim um ser diferenciado, que já não se apetece mais em viver somente na inércia de uma sociedade voltada para o consumo e para o status. É um ser que se preocupa, sim, com o dinheiro, mas que visa empregá-lo não na criação de um status, mas na criação de vivências marcantes. Este ser, felizmente, tem conseguido, não por força ou coerção, e sim por exemplos, angariar outros seres para o seu modo de vida. Ele lamenta que alguns ainda relutem, mas sabe que é um trabalho árduo e a longo prazo, que pode não colher resultados expressivos enquanto estiver vivo. Não liga. Que se colham os louros agora ou a post mortem. Que sejam colhidos com força.


Mais fotos aqui.

E abaixo, um blues caipira composto especialmente para o Pantanal Sul e tocado com uma palheta comprada em solo guarani. Um dia hei de retornar, bravo Taquari. Aguente firme.