quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Santuário do Caraça e Caminho dos Diamantes – de 07 a 14 de julho de 2013


Quantas dúvidas emanam da dificuldade do caminho? Muitas, e se levarmos em consideração o peso de sua totalidade é quase certo que a desistência se agiganta como uma sensata opção. Não obstante, prostrar-se diante de empecilhos e desistir da faina é demonstrar fraqueza, incapacidade de contornar adversidades e, o que é mais grave, abster-se de conhecer algo totalmente novo que pode desvelar-se metros à frente. Enfim, revelações surgem àqueles que estão dispostos a dar um ou dois passos avante ao invés de volver as costas ao desconhecido. Friso que essas frases não são diretrizes para a vida, que amiúde pode ser tratada com indiferença e esporádicas desistências, mas sim uma abordagem para quem viaja sobre duas rodas pelas vias tortuosas do nosso Brasil. As estradas do cerrado nem sempre são tão receptivas, retilíneas ou permitivas a uma suave progressão, mas certamente essa savana é a que proporciona a visão mais gratificante de nossas serras, fauna e flora. Acredito que os bandeirantes, desde os idos da centúria de XVII, se aventuravam por Minas Gerais não apenas para o apresamento de índios ou pela busca de ouro e diamantes. Eram atraídos também pela periculosidade de seus contornos, pelo desafio de arrostar a irregularidade de rochas acinzentadas, as mesmas que, quando empilhadas ou dispostas em gigantescos maciços, formam uma cadeia intrincada de montanhas onde tudo o que floresce é uma vegetação baixa e retorcida. Embora hoje os motivos sejam dessemelhantes aos dos andejos paulistas de nossa época colonial, Minas Gerais continua digladiando com aventureiros de todas as sortes. Continua me impelindo a desbravá-la.
Pelas estradas mineiras
Alguns destinos históricos da região central de Minas Gerais e outros, mais ao norte, no Vale do Jequitinhonha, foram negligenciados em uma viagem que Ari Fernando Borsetti Jr, Luana Romero e eu levamos a cabo em outubro de 2012 (link). Não dispúnhamos de muito tempo e fomos obrigados a optar por visitas às regiões de São João del Rei e Ouro Preto. Contudo, como sempre digo, não é de todo mal deixar um motivo para voltar, e desta vez Luana e eu capricharíamos na concretização da empreitada. Ambicionávamos não só explorar as cidades erigidas com a força do ouro, mas também as cunhadas pela extração de uma outra pedra preciosa: o diamante. Para tal, escolhemos a rota mais traiçoeira, perigosa e amiúde evitada, e portanto a mais intocada, auspiciosa, selvagem e bela, que liga as cidade de Diamantina, a que mais se desenvolveu mediante a extração do diamante, e Ouro Preto, antiga Vila Rica, de onde se arrebatava ouro em abundância nos primórdios do século XVIII. Conhecido como Caminho dos Diamantes, foi aberto pela Coroa Portuguesa e muito utilizado a partir de 1729 para escoar essas riquezas minerais até o Caminho Novo, que ligava Vila Rica ao Rio de Janeiro, de onde a riqueza partia, pelo mar, rumo a nossa colonizadora lusitana. Hoje toda a malha está preservada e recebe o nome de Estrada Real, e quando digo preservada não quero dizer necessariamente tranquilamente transitável. Os caminhos existem, mas trilhá-los nem sempre é condizente com a morosidade peculiar do simples modo de vida do Estado. O pedregoso cerrado mineiro exibe suas belezas, mas a um custo árduo.
A despeito de toda essa nossa contumácia em arrostar perigos, ainda tínhamos um longo caminho até lá. Almejávamos, ainda, visualizar, alhures, um ilustre membro do nosso cerrado: o lobo-guará. Outras surpresas, portanto, nos acometeriam nesse ínterim.
Sabará
Partimos de Americana às 8 da manhã do dia 7 de julho, um domingo de temperatura amena e céu límpido. O caminho até a região central de Minas, nos arredores do antigo Curral del Rey e onde hoje está edificada Belo Horizonte, foi tão enfadonho quanto qualquer viagem de moto por grandes rodovias, essas sempre repletas de caminhões. Primeiro vieram a Anhanguera e a Dom Pedro I, e na sequência a conturbada Fernão Dias, na qual adentramos definitivamente o Estado Mineiro. Por volta das 15h contornávamos a capital pelo anel viário e apeávamos em Sabará, uma das cidades negligenciadas na ocasião que citei anteriormente. Com seu Centro Histórico salpicado por igrejas tricentenárias e casario colonial muito bem preservado, proporcionou-nos uma volta a um passado em que a dinâmica da vida era ditada pelo ritmo da extração aurífera. Conhecemos, primeiramente, a Igreja de São Francisco de Assis, de fachada em pedra-sabão, cujo início da construção se deu pelos idos de 1780. Em seguida veio o Largo do Rosário, onde a Igreja do Rosário, de 1713 mas até hoje inacabada e com ares de um castelo medieval, é mantida como uma memória de tempos onde a ambição de construir obras grandiosas muitas vezes se vergava à escassez de recursos. Perpendicular a ela se encontra o Chafariz do Rosário, talhado em 1746 e cuidado com muito esmero. Alcançar a Igreja de Nossa Senhora das Mercês, de 1781, no alto de uma ladeira, foi uma tarefa mais penosa, mas a recompensa pelo esforço foi visualizar, a partir de suas escadarias, no morro da Cruz, do outro lado do vale do rio Sabará, uma outra capelinha, também secular, por nome de Senhor do Bom Jesus. Por fim vieram as igrejas de Nossa Senhora do Carmo, a mais imponente, datada de 1763 e detentora de várias obras de Aleijadinho; a de Nossa Senhora da Conceição, de 1710; e a de Nossa Senhora do Ó, a que mais se destaca pela forma de sua fachada, discrepantes das antecessoras. Finalizávamos, defronte àquela obra peculiar de 1717, nossa tarde em Sabará. Seguimos, por serpenteante estrada de asfalto, rumo a Caeté, onde pernoitaríamos.

A inacabada Igreja do Rosário, de 1713

Igreja de Nossa Senhora das Mercês, de 1781

Igreja de Nossa Senhora do Carmo, de 1763

Igreja de Nossa Senhora do Ó, de 1717

Caeté
Vinte e cinco quilômetros separam Sabará de Caeté. Embora o caminho seja curto e a estrada asfaltada, o excesso de curvas e a possibilidade de animais deixarem o cerrado e atravessarem a pista tornaram a tocada lenta. Chegamos a Caeté, cidade com 40 mil habitantes, com a noite nos envolvendo, e tudo o que pudemos fazer, neste fim de dia, foi perambular, a pé, pelas imediações da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, imponente e de importante apelo histórico, primeiro por ter sido erigida em 1757; segundo por ser considerada a primeira em alvenaria de Minas Gerais; e terceiro por ser um projeto do pai de Aleijadinho, Manuel Francisco Lisboa. No dia 08, entretanto, conseguimos conhecer todos os seus pontos históricos com mais calma. O povo mineiro da antiga Villa Nova da Rainha nos mostrou toda a sua receptividade. Josué, por exemplo, um engenheiro estagiário nas obras de reforma da igreja de São Francisco de Assis, do começo do século XVIII, nos permitiu a entrada no templo construído em adobe, mostrando-nos o altar e o teto desbotado em tons de vermelho e preto, prestes a ser restaurado. Chama a atenção o alicerce em madeira maciça e o acabamento impecável dos contornos do altar e dos batentes. Subir à torre única, onde há um sino em pleno funcionamento, escancarou-nos uma visão ímpar da cidade, uma sensação que não foi nem de perto sobrepujada pelo bodum do excesso de fezes dos pombos que se aninham no forro totalmente aberto e aconchegante às oportunistas aves. Uma rápida repassada pela Matriz, pelo seu chafariz, construído por escravos em 1800, e pelo pelourinho, de 1722, e apeávamos na Igreja do Rosário, rodeada por um cemitério. Um jardineiro nos permitiu novamente a grátis entrada (vale lembrar que na grande maioria das igrejas históricas de Minas Gerais é cobrado um ingresso). Nesta o interior é bem mais rebuscado, com adornos em dourado. A visão da cidade de Caeté a partir de sua torre, por sua vez, é consideravelmente mais ampla. Data de meados da centúria de XVIII.

Igreja de São Francisco de Assis, do começo do século XVIII

Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, de 1757

Vista da torre da Igreja do Rosário

Santuário de Nossa Senhora da Piedade
Do centro de Caeté vê-se, no topo de uma montanha, um templo católico numa posição assaz privilegiada. Planejávamos chegar ao Santuário do Caraça, nesse segundo dia de viagem, por volta das 12h, e como ainda eram 10h optamos por subir a mística Serra da Piedade pela asfaltada e sinuosa MG-435. Dezesseis quilômetros depois pagávamos, na portaria do Santuário de Nossa Senhora da Piedade, uma taxa de R$5,00 e apeávamos em uma das partes mais altas da região, onde uma igreja católica do fim do século XVIII foi erigida em uma altitude de 1746m, mais do que o dobro da cidade de Caeté. Além da ermida, há, lá no alto, muitos instrumentos de medição meteorológica, antenas e observatórios estelares, bem como a Gruta do Eremita, para onde, diz-se, o Frei Rosário, reitor do santuário até o fim do século XX, se retirava para meditar. O mais impressionante, na verdade, é a visão estarrecedora de toda a região metropolitana de Belo Horizonte, nela inclusa a cidade em que estivéramos no dia anterior, Sabará, que lembrava uma enxurrada de casas escorrendo pelas encostas dos morros. A própria Caeté, em alguns pontos sombreada pelas esparsas nuvens e em outros tão brilhante pela ação do sol das 11h, parecia isolada num típico planalto mineiro, irregular como o comprimento dos dedos da mão humana. Como quem é mateiro presta mais atenção ao que é natural, não pudemos deixar de notar a presença do sabiá-poca, da saíra-amarela, da maria-preta-de-penacho e do destemido tico-tico, que se aproximava tanto que parecia não se incomodar com a nossa presença. Não nos esquecendo de que essa é, também, uma jornada histórica, vale frisar que a Serra da Piedade e o templo construído sobre ela tinham, em tempos passados, a função de auxiliar os andejos que vagavam pela região (ponto de referência), motivo pelo qual é também chamada de ermida.

Ermida

Caeté vista do alto da Serra da Piedade

Sabiá-poca

Belo Horizonte

Santuário do Caraça
Por volta das 11:30h começamos a descer a Serra da Piedade. Com vistas a dar uma emoção a mais à ainda estritamente pavimentada e confortável viagem, optamos por nos dirigir ao Santuário do Caraça, entre os municípios de Santa Bárbara e Catas Altas, por estradas de terra. Foi um alternativa de extremo azar, já que uma mineradora local abre e fecha vias a seu bel prazer, dificultando a leitura dos mapas que detínhamos. Segundo alguns munícipes caeteenses, vinte quilômetros nos separariam de Barão de Cocais, município limítrofe com Caeté e a partir de onde se acessa uma rodovia asfaltada que dá acesso ao Caraça, nosso último ponto a ser visitado antes de adentrar em definitivo a Estrada Real e o Caminho dos Diamantes. Contudo, o labirinto foi se mostrando cada vez mais complexo. Chegamos a atravessar, com muito temor, uma carvoaria em plena atividade. Gostaria de parar e registrar o local, mas os carvoeiros nem sempre são tão afáveis com desconhecidos. Acham que estão ali para investigar ou denunciar a mísera situação a que estão submetidos. Enquanto alguns veem certos trabalhos como desumanos, outros os veem como ganha pão, ou a única razão pelo qual ainda mantêm suas famílias. Mais uma vez o discurso da classe dominada é dessemelhante ao da classe dominante, e entre elas flutua, com opiniões prolixas, a classe média. Questões políticas à parte, passamos pelo bairro Rancho Novo, ainda pertencente ao município de Caeté, e calhamos em Barão de Cocais, que por um motivo óbvio não registramos nesse momento. Passaríamos por ela depois, já no Caminho dos Diamantes. Às 14:30h apeávamos no portal do Santuário do Caraça. Venceríamos ainda mais 9km até o templo de inspiração neogótica francesa, construído em 1883 no sopé da Serra do Caraça, em substituição a uma antiga ermida do século XVIII. Ali jazia nossa chance de topar com um lobo-guará, um daqueles mamíferos que se deve ver antes de morrer.

Vitrais no Santuário do Caraça

Inspiração neogótica francesa

Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens

Caxinguelê
Desfrutar do restante do dia 08 dentro dos domínios do Santuário do Caraça foi uma incumbência relativamente fácil. Muitas trilhas partem das escadarias do Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens (nome oficial da igreja) para os píncaros ou para os contrafortes da Serra do Caraça. Nesse fim de tarde optamos por subir ao cruzeiro, um mirante no alto de uma colina com uma vista privilegiada para o santuário e para as montanhas acinzentadas que a emolduram. A trilha de 1,5km é leve, passando ora por matas de galeria ora por cerrado, habitat perfeito para os jacuaçus e caxinguelês, que despontam aos montes em meio à vegetação. Esses atrativos naturais são outro ponto forte desse local multifacetado, e disputam ombro a ombro com o casario histórico a atenção dos visitantes. Goza, alem de um patrimônio arquitetônico tombado, do título de RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Nacional), visto que detém uma área preservada superior a 10 mil hectares. De fato, muitas das trilhas são de difícil acesso e só podem ser palmilhadas mediante a contratação de guias. Como Luana e eu pernoitaríamos ali apenas por um dia, poupamos nosso escasso dinheiro para o Caminho dos Diamantes, percorrendo trilhas mais fáceis para registrar espécimes da avifauna local, nosso maior passatempo. Foi assim que vencemos vagarosamente o quilômetro que separa a igreja do chamado Tanque Grande, uma espécie de represa que, de tão límpida, reflete com uma perfeição cristalina o desenho das nuvens e da serra adjacente. Ficamos por ali e voltamos ao anoitecer, quando, triunfal, surgiu pelas escadarias, no adro da igreja, o famoso lobo-guará, para fartar-se da carne e dos frutos ofertados em uma bandeja. É uma tradição longeva. Os circunspectos, atônitos, fitavam e fotografavam loucamente o esguio canídeo que, ressabiado, deu algumas abocanhadas no fácil alimento e debandou para o cerrado. Esse é o momento mais esperado de quem pernoita no Caraça. Esse era o momento mais esperado por nós, os únicos que, naquela fria noite, não se inebriavam com o vinho caro como os hóspedes mais abastados, mas sim com a visão não menos entorpecente de um belo espécime das matas brasileiras.

Vista do Santuário e da Serra do Caraça do alto do Morro do Cruzeiro

Tanque Grande

Lobo-guará

Capela do Sagrado Coração
No dia 09, logo de manhã, abandonamos nossos aposentos na ala do claustro, ao lado da igreja, e fizemos um reconhecimento pelos arredores do antigo Colégio do Caraça, fundado em 1820 com a “intenção de instruir meninos com uma educação humanista, seguindo os princípios europeus e vicentinos” (palavras do próprio folhetim distribuído no Santuário). Acontece que, em 1968, um incêndio atingiu o prédio e suas atividades foram encerradas. Hoje as ruínas albergam um museu, com objetos antigos de uso dos padres (desde a fundação do Caraça, em 1774), e fotos de toda a RPPN, além de uma biblioteca que, para o nosso infortúnio, encontrava-se fechada devido à falta não justificada da bibliotecária. Foi nesse momento que decidimos mesclar História e Biologia na mesma manhã. Beiradeamos um lago a nordeste do Centro de Visitantes e palmilhamos uma trilha de 2km, obtendo vistas claras, apesar de cada vez mais distantes a medida que ascendíamos pela serra a alturas como 1400m, do coração do Santuário e de toda a mata que o circunda. Chegamos a uma capela de porte médio, antiga, chamada de Capela do Sagrado Coração. É a mesma que víramos, no dia anterior, no caminho para o Tanque Grande. Essa com certeza é barroca, divergindo da neogótica supracitada. Mais 1km depois, em um vale acidentado, onde cada passo pode gerar uma torção de tornozelo, alcançávamos a Gruta de Lourdes, uma pequena fenda de não mais de 5 metros de altura no sopé de um dos montes da Serra do Caraça, pouco abaixo do chamado Pico da Carapuça. Não há nada de embasbacante no local, a não ser para os religiosos mais ferrenhos, já que uma imagem de Nossa Senhora de Lourdes jazia ali, como que a “vigiar” o ermo. Para nós que, como dito, estávamos em busca de surpresas naturais, veio bem a calhar a presença de aves como o sabiá-laranjeira, a maria-preta-de-penacho, o jacuaçu, o bico-virado-carijó, o alma-de-gato, o saí-azul, o trinca-ferro, o arapaçu-escamado, o canário-da-terra-verdadeiro, a viuvinha, a choquinha-preta-barrada, o pica-pau-anão, o pica-pau-de-banda-branca, o bem-te-vi-pequeno e diversas espécies de beija-flores. Contamos, no trecho final da trilha, com a companhia de um passarinheiro colaborador do WikiAves, o carioca Mário Martins, que muito nos auxiliou na identificação de alguns espécimes ainda desconhecidos por nós.

Pica-pau-anão

Arapaçu-escamado

Alma-de-gato

Saí-azul
Eram ainda 13h quando regressamos às imediações da igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens. Com tempo de sobra, partimos, a pé novamente, para uma outra trilha, a do Campo de Fora, que o folhetim interno nos mostrava estar 6km distante. Andamos por muito tempo e nada. Nem mesmo o bater de asas de um tiranídeo se fazia ouvir. Mudamos os planos e adentramos outra, a do Banho do Belchior, uma pequena cachoeira procedida por um poço para banho que encontramos 2km depois, após passarmos meia dúzia de altas e envergadas araucárias. A temperatura da água do Caraça não pode, em hipótese alguma, ser desconsiderada. É gélida aos extremos, tanto a ponto de me dissuadir de um mergulho. Eu, conhecedor de uma infinidade de rios e cachoeiras desse nosso Brasil, mas que raramente tem curiosidade para testar a profundidade dos corpos d'água que registro, dessa vez tinha uma outra boa desculpa para não banhar-me além de não ser um exímio nadador. E todo esse gelo acabou por resfriar o nosso ímpeto em desbravar o Caraça e partir para a segunda parte de nossa missão. Já víramos o lobo-guará e outras espécies de aves. Nada mais nos restava a fazer ali. Logicamente muitas trilhas seriam deixadas para trás, mas como não estávamos dispostos a gastar o nosso já escasso dinheiro contratando guias, e muito menos pernoitando no interior do santuário, decidimos deixar a RPPN e principiar a faina no Caminho dos Diamantes. Despedimo-nos de Mário Martins, um passarinheiro que certamente encontraremos fotografando pássaros em outras estradas da vida, e demos adeus ao Caraça, mais uma maravilha dentre as diversas presentes no Estado de Minas Gerais. Como já eram passadas 17h e o astro rei ameaçava partir para o oriente, repousamos na cidade de Santa Bárbara, disposta já no Caminho dos Diamantes e a pouco mais de 20km dali.

Bico-virado-carijó

Banho do Belchior

Adeus, Caraça

Santa Bárbara
Dormir em Santa Bárbara foi fundamental para nos habituarmos ao clima colonial que mistifica todo o Caminho dos Diamantes. Há partes periféricas mais modernas, mas o Centro Histórico continua lá desde o século XVIII, às margens do ribeirão homônimo, numa época em que o ouro era extraído em um ritmo tão alucinante que, já em meados dos mesmo século, rareou, instando os ainda poucos moradores a mudar a fonte de renda. Passaram a abastecer com víveres ou montarias os grupos que, sobre o lombo de muares ou a pé, subiam ou desciam para o Tejuco ou Vila Rica. Há indícios de que partiam, daqui, seiscentas tropas de mulas por dia. Nós, no presente angustiante em que vivemos, logicamente não podemos atestar ou testemunhar tudo o que se passava naqueles idos. Tudo o que fizemos foi registrar, no alvorecer do dia 10, o que materialmente restou daquela época. Primeiramente uma construção mais recente, mas também histórica: a casa do século XIX onde viveu Affonso Penna, um ex-aluno do recém visitado Colégio do Caraça que foi, além de ministro da Guerra, da Agricultura e da Justiça, presidente da Província de Minas Gerais e presidente do Brasil, entre 1906 e 1909, quando faleceu. Dentre suas realizações mais importantes destaca-se a lei de mudança da capital mineira de Ouro Preto para Belo Horizonte, em 1892. Em segundo veio a Matriz de Santo Antônio, de 1724, barroca, toda rodeada por um casario colonial muito bem preservado. Seu alto crucifixo é pouso para o vigilante cauré, de expressão amarrada. Na mesma rua, um leve aclive nos direciona a Igreja do Rosário, cujo começo da construção data de 1756, sendo erigida exclusivamente para o culto dos escravos negros. Tem a mesma arquitetura da Igreja de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, mas é ligeiramente maior.

Casa de Affonso Penna

Matriz de Santo Antônio, de 1724

Igreja do Rosário, de 1756

Cauré
Deixamos Santa Bárbara ainda na manhã do dia 10. Mesmo estando ela no Caminhos dos Diamantes, augurávamos fazer o trabalho por completo. Portanto, desceríamos até Mariana e principiaríamos a subida até Diamantina, passando novamente por Santa Bárbara, no caminho. Se por acaso deixássemos algo para trás, certamente teríamos uma outra oportunidade para corrigir esse lapso (para mapas detalhados da Estrada Real acesse esse link). Foi assim que seguimos pela conturbada MG129, em obras, nela permanecendo até nossa conhecida cidade de Mariana. Nela, defronte as igrejas de Nossa Senhora do Carmo, de 1783, e de São Francisco de Assis, de 1762, que há trezentos anos “duelam” sem necessariamente uma encarar a outra, começaríamos nossa peleja em direção ao antigo Arraial do Tejuco, ou atual Diamantina. Devo dizer que negligenciamos ao trecho Ouro Preto-Mariana, de aproximadamente 20km, porque já o trilhamos em uma outra ocasião. Por ser asfaltado, não nos trouxe grandes surpresas e, devido a isso, optamos por deixá-lo de lado. As fotos deste pedaço, que passa ao sul da Serra do Itacolomi, podem ser vistos na postagem sobre o Circuito do Ouro, cujo link disponibilizei logo no começo desta. Em Mariana, um último ajuste na bagagem, sucessivas esquivas de vendedoras de pedras (que dizem preciosas, mas duvido muito) e deixávamos a movimentada primeira capital de Minas Gerais rumo ao primeiro laivo em terra da Estrada Real, segmento Caminho dos Diamantes, que se ramifica a partir da própria MG129, ao norte da cidade.

Mariana

Primeiros quilômetros em estrada de chão do Caminho dos Diamantes

Carcará

Camargos
Por estradas de chão relativamente bem conservadas, Luana, minha moto e eu fomos vagarosamente rumando para o norte, ora com gramíneas ora com mata fechada ladeando a Estrada Real. Gaviões, falcões e o sempre presente carcará alçavam voo ao ronco de baixa rotação do motor. A poeira foi uma ingrata companheira por todo o trecho de 19km até Camargos, vila fundada em 1711 e pertencente ainda ao município de Mariana. Seria redundância minha dizer que o motivo de sua fundação foi o ouro encontrado em algum ribeirão próximo. Algumas simples construções coloniais ainda resistem ao tempo, bem como uma igreja no alto de um pequeno morro, acessada por duas curtas escadarias espaçadas por uma rampa. Sete quilômetros à frente, um outro povoado, o de Bento Rodrigues, consideravelmente maior e também um apêndice de Mariana. Possui uma igreja simples, em reforma, a de Nossa Senhora do Rosário, construída também no século XVIII, na falta de um ano mais preciso. Vale frisar que a Estrada Real possui marcos em toda a sua extensão, postes de concreto pintados em marrom com informações sobre a estrada e as cidades e povoados porvindouros. São extremamente úteis, pois sabemos que, se não os vemos regularmente, estamos no caminho errado. Seguindo-os, após onze quilômetros alcançávamos Santa Rita Durão, mais um distrito de Mariana, fundado em 1702 e com duas construções que merecem destaque: a Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, erigida pelos e para os escravos e cujo ano preciso no século XVIII é desconhecido; e a de Nossa Senhora de Nazaré, de 1766, para os homens brancos.

Igreja de São Bento, em Bento Rodrigues

Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, de 1766, em Santa Rita Durão

Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos

Morro da Água Quente
A terra continuava a ser o nosso chão, e letargicamente, com um sol voraz ressecando o cerrado, encontramos o asfalto da MG129. Por um curto trecho o colonial Caminho dos Diamantes se confundia com a modernidade do século XXI. Em uma guinada para o oeste acessamos uma rua calçada em meio ao distrito de Morro da Água Quente, pertencente a Catas Altas. Nesse antigo arraial existiam poços de águas termais, mas todos foram assoreados pelo inexorável trabalho de extração aurífera. O que ainda resiste daquela época é a Igreja do Senhor do Bonfim, sem muitos adereços, singela como o povo mineiro, o mesmo que vê a face leste da Serra do Caraça, dia após dia, sucumbir à ação constante de um maquinário pesado que extrai o ferro de seu corpo. É a famosa e discutida Vale agindo indiscriminadamente, mas com um aval que deixa tudo dentro da lei (não é assim que as coisas funcionam no Brasil?), na porção sul da Cordilheira do Espinhaço. Críticas à parte, seguimos pela Estrada Real, e os 7km que nos acompanharam até Catas Altas, cidade fundada em 1703, foram novamente de poeirenta estrada de chão. Aqui, há mais de trezentos anos, bandeirantes perambulavam à caça de ouro e pedras preciosas. Como legado permaneceu o casario colonial e as igrejas praticamente tricentenárias, com destaque para a do Rosário, do fim do século XVIII, e a de Nossa Senhora da Conceição, a matriz, de 1739. Vale ressaltar que Catas Altas, com quase 5 mil habitantes, está situada na porção leste da Serra do Caraça. Do outro lado, no oeste, se encontra o Santuário do Caraça, onde estivéramos nos segundo e terceiro dias.

Matriz de Nossa Senhora da Conceição, de 1739, em Catas Altas

Catas Altas e a Serra do Caraça

Igreja do Rosário

Canal do Bicame de Pedra
O segmento do Caminhos dos Diamantes compreendido entre Catas Altas e Santa Bárbara foi o único que exigiu uma certa paciência no que se refere à navegação. Vínhamos tranquilamente pela terra, por uma estrada aberta, e de repente essa passou a acompanhar os trilhos de uma ferrovia. Até aí tudo bem, pois estávamos nas coordenadas corretas. Porém, após 1 ou 2km a estrada deu um guinada para o leste e saímos da rota. Os marcos da Estrada Real sumiram, e quando nos demos conta estávamos de volta ao asfalto da MG129. Por sorte algumas placas turísticas com indicações para o Bicame de Pedra, um dos atrativos mais famosos da Estrada Real, nos repuseram no caminho ao direcionar-nos para uma outra estrada de terra, sentido oeste. Por fim calhamos no Bicame de Pedra, um aqueduto de pedras empilhadas construído por mãos escravas em 1792. Não há nenhuma espécie de rejunte ou argamassa que o mantenha em pé, sendo portanto uma obra de meticulosa engenharia. E engana-se quem acha que a estrutura é modesta: são 4 metros de altura e arcos enormes a cada vinte ou trinta metros. Logicamente essa é apenas uma parte do que restou de uma época em que a água era canalizada do alto da Serra do Caraça, que altivamente se agiganta no horizonte, para a lavagem de minérios e cascalhos, como parte da extração aurífera das centúrias de XVIII e XIX. Foram investidos 15 quilos de ouro para construí-lo. Nessa paisagem pitoresca encerraríamos esse dia, chegando a Santa Bárbara após mais alguns quilômetros de terra e asfalto, desviando-nos de um trecho do Caminho dos Diamantes de 3km que só pode ser vencido a pé. Pela segunda vez consecutiva na viagem pernoitaríamos na cidade de Affonso Penna.

Bicame de Pedra

Quatro metros de altura

Serra do Caraça

Tangarazinho
O dia 11 amanheceu aberto, e logo cedo, sem perder tempo nem mesmo para fotografar Santa Bárbara, o que fizéramos na manhã do dia anterior, saímos por uma estrada de terra ao norte da cidade rumo a Barão de Cocais, a próxima na rota. Beiradeamos o Lago de Peti, alimentado por rios e córregos da bacia do rio Doce, como o Santa Bárbara, e atravessando-o por uma ponte de concreto fomos envoltos por uma mata na qual a avifauna fazia cada galho tremelicar. Eram pousos e alçadas de voo constantes de membros como o gavião-carijó, o tangarazinho, o chorozinho-de-chapéu-preto, o vite-vite-de-olho-cinza, o tachuri-campainha e a saíra-ferrugem. No mais, sempre o mesmo. Após 14km reencontramos o asfalto em Barão de Cocais, e incontinenti nos dirigimos a uma das mais belas igrejas de todo o trajeto, a de São João Batista, de 1785, tão opulenta quanto as de Ouro Preto. Surpreendemo-nos com o tamanho da cidade e seu vai-e-vem frenético de carros e transeuntes. Mesmo não possuindo mais do que 20 mil habitantes, há de se notar que toda a zona urbana é bem concentrada na depressão da Serra Dois Irmãos, quase não havendo divisões entre bairros, centro e centro histórico. Isso pôde ser comprovado ao subirmos a um ponto elevado da cidade, no morro da Capela de Nossa Senhora da Aparecida. Por falar na Serra Dois Irmãos, foi ela que subimos, ou melhor, “escalamos”, na sequencia. O caminho entre uma floresta de eucaliptos é tão íngreme que em alguns momentos o pneu dianteiro da moto perdia contato com o calçamento. O ambiente era tenebroso, já que as altas árvores impediam noventa por cento da entrada da luz solar, trazendo a noite para um dia que prometia ainda muitas surpresas.

Igreja de São João Batista, de 1785, em Barão de Cocais

Barão de Cocais vista do morro da Capela de Nossa Senhora da Aparecida

Caminho dos Diamantes entre Barão de Cocais e Cocais

Cocais
No alto da serra o cerrado ressurgiu, topamos com um veado-campeiro que infelizmente não nos deu a chance de fotografá-lo devidamente e chegamos ao distrito de Cocais, pertencente a Barão de Cocais. Logo na entrada do vilarejo, fundado no ano de 1703 por bandeirantes no rastro do ouro, registramos a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, construída nos idos de 1855 para o culto de escravos negros que não podiam frequentar a Igreja de Sant' Ana. Hoje todos, independentemente do tom da pele, podem usufruir de suas atividades religiosas. A de Sant' Ana, por sua vez, que naquela época servia exclusivamente aos homens brancos, hoje parece abandonada, trancada a cadeados. É de 1769 e, portanto, a mais antiga do povoado. Ao conversarmos com um morador local sobre nossas ambições no Caminho dos Diamantes, o mesmo nos exortou a regressar 3 dos 14km que trilháramos desde Barão de Cocais para visitar o Sítio Arqueológico da Pedra Pintada, que detém em seus domínios uma encosta de montanha repleta de pinturas rupestres. Assentimos e voltamos esse bocado, localizando, a poucos metros da Estrada Real, a entrada do sítio. Mediante um pagamento de R$5 cada fomos guiados pelo proprietário, que simpaticamente nos mostrou as gravuras em cor de sangue. São homens com lanças, veados-campeiros, canídeos e veados com galhadas (que hoje já não encontrados mais aqui), uma arte rústica de 6 mil anos antes de Cristo. Havia visto algo parecido apenas em Urubici, Santa Catarina, nas imediações da cachoeira do Avencal. Minas, como alguns podem imaginar, não nos presenteia apenas com a História recente, mas também com a antiga.

Igreja de Sant' Ana, de 1769

Pinturas rupestres no Sítio Arqueológico da Pedra Pintada

Datam de 6 mil anos antes de Cristo

Bom Jesus do Amparo
De volta a Cocais, saímos pelo norte e, ainda por terra, fomos avançando pelos cafezais e eucaliptais. Cruzamos o asfalto da BR381, seguimos por terra novamente e calhamos em uma vicinal asfaltada que nos desembocou no minúsculo município de Bom Jesus do Amparo. Foram 25km tranquilos e cenicamente não tão belos, tanto que apeamos apenas nos entornos da Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus do Amparo, de 1841 e detentora da única estátua de Jesus Cristo criança do Brasil. Como não estava aberta, não pudemos registrá-la. Incontinenti, então, partimos pelo trecho Bom Jesus do Amparo-Ipoema, todo pavimentado em seus 13km de extensão, mas repleto de curvas fechadas que exigem um pouco de atenção. Já em Ipoema, pequeno distrito de Itabira, passamos batidos pelo Museu do Tropeiro, que enaltece o veio deste local que já foi passagem de carregamentos e suprimentos que abasteciam a região, e paramos defronte a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, cuja data de construção ninguém soube nos informar. Um imenso casarão ao lado dela, contudo, parece bem antigo, talvez do século XVIII, e nele hoje funciona um comércio para ébrios. Prosseguindo, mais 15km depois estávamos em Senhora do Carmo, outro distrito de Itabira fundado no século XIX, com fazendas notadamente da era do café. Daí pra frente há uma mescla de asfalto e terra por mais 15km de extensas pastagens e brejos, lar para o chopim-do-brejo e o tesourinha-do-brejo. O sol já se punha quando atracávamos em Itambé do Mato Dentro, município com 2500 habitantes. Ali, às sombras do Pico do Itacolomi, pernoitaríamos após sucessivos sacolejos pelas estradas esburacadas do Caminhos dos Diamantes.

Ipoema

Senhora do Carmo

Itambé do Mato Dentro e o Pico do Itacolomi

Conceição do Mato Dentro
No dia 12, bem cedo, despedimo-nos de Itambé do Mato Dentro e fomos avançando para o norte, sempre por terra, beiradeando a Serra do Cipó, até que, trinta e cinco quilômetros depois, chegamos a Morro do Pilar. Nada ali nos chamou a atenção, e com vistas a ganhar tempo seguimos freneticamente por mais 27km até Conceição do Mato Dentro, fundada em 1702. Nela, no alto de um morro, conhecemos a Capela de Sant'Anna, de 1744. No vale do centro urbano uma outra, a matriz de Nossa Senhora da Conceição, em reformas, de 1722. Apesar de todo o apelo histórico, um atrativo natural por si só vale todo o esforço de se chegar a esses confins: a cachoeira do Tabuleiro. Embora não esteja na Estrada Real, não poderíamos deixar de conhecer uma das maiores quedas d'água do país, com 273 metros. Desviamos de nossa rota, trilhamos 20km de terra e chegamos ao bairro de Tabuleiro, essencialmente rural. Dali são mais 2km por uma estrada mista de terra e pedras, em aclive medonho, até o estacionamento do Parque Municipal Ribeirão do Campo. Até a cachoeira são mais 2,5km a pé, descendo trilhas bifurcadas pelo vale do córrego homônimo ao parque. Nos últimos metros a caminhada é feita sobre as pedras do leito do próprio córrego. Desde a portaria do parque já é possível ver a queda, e novos ângulos vão se revelando à medida que nos aproximamos de seu poço. É a maior cachoeira de Minas Gerais, e mesmo toda essa imponência não é suficiente para vencer uma força que, ali, sopra com propriedade. É o vento, correndo pelo vale e esvoaçando gotículas por todos os lados. Em alguns momentos distorce o desenho verticalizado da água caindo, desfigurando-o totalmente. O que permanece hirto é o paredão, a chapada de arenito em sua porção alta. Essa é a “hierarquia” dos seres inanimados. Tudo se desgasta. Tudo ganha novas formas. Tudo causa deleite.

Distrito de Tabuleiro

Cachoeira do Tabuleiro

Queda de 273m vista da trilha

Córregos
A trilha de volta da Cachoeira do Tabuleiro nos tomou mais tempo do que prevíramos. Já eram passadas 16h e, acelerando forte, vencemos os 20km de terra até a MG-010, de volta ao traçado da Estrada Real. Daí foram mais 10km de asfalto até uma outra estrada de chão, truncada, que depois de 14km nos desembocou no distrito de Córregos, ainda no território de Conceição do Mato Dentro. Pernoitaríamos ali, naquele vilarejo praticamente todo colonial fundado por bandeirantes em 1702, cujo cerne é inteiramente dedicado a Igreja Matriz Nossa Senhora de Aparecida, de 1735, e que mantém até hoje características comuns à época, como tocos de árvores para amarrar as montarias de quem frequenta as liturgias católicas. E nossa estadia nos limites de Conceição do Mato Dentro não terminaria ali, naquele lugar de arquitetura tombada pelo patrimônio público de extrema calma. No dia seguinte, treze de julho, encararíamos ainda mais 12km sob uma fina garoa, espantando com o ronco do motor casacos-de-couro-da-lama, marrecos e saís-azuis até Santo Antônio do Norte, mais popularmente conhecido como povoado do Tapera, ínfimo e transbordante de História em construções como a Igreja de Santo Antônio e a Capela de Sant' Ana, ambas edificadas no século XVIII. Estávamos em uma corrida frenética contra o tempo. Chegar a Diamantina até o começo da noite era um objetivo que tinha que ser granjeado a qualquer custo, pois no próximo dia teríamos que regressar para casa.

Tapera, ou Santo Antônio do Norte

Casaco-de-couro-da-lama

Saí-azul fêmea

Itapanhoacanga
De Tapera fomos acelerando pelos aclives intermináveis e lamacentos até Itapanhoacanga, povoado com 1700 habitantes pertencente à cidade de Alvorada de Minas. Surgiu da extração aurífera no começo do século XVIII, mas isso o leitor já devia desconfiar a este ponto. É engraçado estar no Caminho dos Diamantes e passar por vilarejos surgidos a partir do ouro. Estávamos perto das que realmente galgaram nos diamantes seu apogeu, e por isso rapidamente fotografamos a amarelecida e sombria Igreja do Rosário, ao melhor estilo rococó, e aceleramos para Alvorada de Minas, distante 15km dali. A estrada, nesse trecho, não é ruim, mas a poeira continua lá, cobrindo-nos com camadas e mais camadas da terra mineira. Em Alvorada de Minas, cidade diminuta, registramos, em uma parte alta, a Igreja Matriz de Santo Antônio, que segundo consta guarda importantes obras sacras, o que não pôde ser atestado na prática, visto estar fechada à visitação. Existe um outro templo católico, uma espécie de “guarita” para o cemitério municipal, acessada por uma escadaria curva. Por mais que eu tenha pesquisado, não encontrei seu nome ou data de construção. Dali pra frente o que mandaria (ou o que mandou em algum momento, no passado) são o diamante e outras pedras preciosas, e não única e exclusivamente o ouro. Nossas terras já foram economicamente muito ricas, e hoje o que nos resta de riqueza é a História, arquitetônica e intelectualmente falando.

Matriz de Santo Antônio, em Alvorada Nova de Minas

Capela, também em Alvorada Nova de Minas

Serro
De Alvorada de Minas a Serro foram 18km pela MG900, inteiramente asfaltada. Serro é um daqueles locais opulentos, desorganizadamente organizado, um emaranhado de construções coloniais com mais de três séculos de existência. Foi fundada em 1701 e nela se obteve primeiramente muito ouro, e uma década mais tarde diamantes. Desse montante, uma parte era contabilizada pela coroa portuguesa, que cobrava o quinto, e outra era contrabandeada. No começo do século XIX as reservas foram escasseando, momento em que a cidade contava com 3 mil habitantes. Hoje, mais voltada à pecuária, à agricultura e ao turismo histórico e gastronômico, conta com aproximadamente 22 mil. Restaram, daqueles tempos promissores, o casario colonial e as igrejas de Nossa Senhora do Carmo, de 1781, a de Nossa Senhora da Conceição, do fim do século XVIII, a de Nossa Senhora do Rosário, de 1758, a do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, de 1785, e a de Santa Rita, de 1745, a partir de onde se desfruta de uma bela vista das linhas curvas das ruas calçadas do centro histórico. É em Serro também que nasce um dos mais importantes rios do país, o Jequitinhonha, marcando o início de seu vale que, no nordeste do Estado, já foi considerada a região mais pobre do país.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de 1758

Igreja de Nossa Senhora da Conceição, do fim do século XVIII

Igreja de Santa Rita, de 1745
 
São Gonçalo do Rio das Pedras
Saindo de Serro pouco antes do meio-dia, cruzamos o ainda tímido rio Jequitinhonha e passamos pelo povoado de Três Barras e sua igrejinha azulada. Aqui a estrada era asfaltada, e assim permaneceu até Milho Verde, um outro povoado de Serro onde a extração de diamantes foi abundante no século XVIII. É realmente uma pena que não dispúnhamos de tempo para usufruir mais desse pedaço da Serra do Espinhaço, formado por montanhas acinzentadas de aparência ressequida e rodeada por um cerrado digno de uma Serra da Canastra. Tapetes naturais extensos de capim-estrela forram os chapadões a mais de 1000m de altitude enquanto os vales se desenham a leste e a oeste, proporcionando contrastes hipnotizantes com o céu do nordeste mineiro. Essas paisagens são ainda mais belas após uma outra ponte sobre o Jequitinhonha, construída no século XVIII, após São Gonçalo do Rio das Pedras, também distrito de Serro, povoado fundado no mesmo século pelos que trabalhavam na extração de ouro e diamantes (desta região em diante o diamante passa a ser redundante). Preserva, além do casario, a Igreja Matriz e a Capela do Rosário. Daí pra frente são 32km de muita terra, areia, belos e pitorescos cenários, como as casas de pau-a-pique abandonadas no alto da serra, búfalos, fazendas e pequenos povoados, como Vau e Biribiri. Nos metros finais de estrada de chão adentramos Diamantina, observando suas construções periféricas modernas, ainda não coloniais. À medida que nos aproximávamos do centro histórico, mais precisamente da Catedral Metropolitana de Santo Antônio, revelava toda a ambição arquitetônica que o diamante podia comprar em tempos em que sua extração era farta.

Ponte do século XVIII sobre o rio Jequitinhonha

Serra do Espinhaço

Casa de pau-a-pique abandonada
 
Diamantina
O Caminho dos Diamantes se encerrava aqui. Para os que o fazem no sentido inverso, aqui ele se inicia. No antigo Arraial do Tejuco, ou Tijuco, fundado em 1713 e que teve uma forte ascensão econômica a partir de 1729 com a descoberta dos diamantes, findávamos uma peleja de mais de 300km por estradas periclitantes, incertas e ladeadas por cenários que meu pífio português não pode traduzir. A moto, após a árdua peleja, teve seu merecido descanso, mas Luana e eu ainda tínhamos uma outra tarefa: registrar os becos e casarões da terra natal de Juscelino Kubitschek. Nada melhor do que começar a empreitada fotografando uma igreja em frente a uma estátua do ex-presidente: a de São Francisco de Assis, de 1772. Na sequência vieram outras como a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de 1728, a de Nosso Senhor do Bonfim, de 1771, a de Nossa Senhora do Carmo, de 1784, a de Nossa Senhora das Mercês, de 1820, e a Capela Imperial do Amparo, de 1776, e o famoso Mercado dos Tropeiros, de 1835, local para o qual os escravos traziam mercadorias de seus senhores para serem vendidas ou trocadas. Hoje tudo o que resta é para ser admirado. Cada beco, cada casarão, cada sobrado de sacadas bem trabalhadas que sustentam os músicos das serenatas e vesperatas noturnas. Enfim, é um lugar luzidio feito os diamantes que esculpiram seu nome na História de Minas Gerais e do Brasil, e que nesse dia fechou com chave de ouro, ou melhor, de diamante, nossa aventura pelo Caminho dos Diamantes.

Catedral Metropolitana de Santo Antônio

Mercado dos Tropeiros, de 1835

Torre da Capela Imperial do Amparo, de 1776

Típica rua de Diamantina
 
O regresso
Acordamos cedo para principiar o regresso para Americana confiando na palavra de um mineiro que, dizia, estávamos a 180km de Belo Horizonte. Perto, pensei eu. Ledo engano, a primeira placa me causou um imenso desconforto: eram 280km. O homem errara por 100km apenas. Aceleramos forte, então, passando por Gouveia e Curvelo até acessarmos a pista sul da BR040. Por volta do meio-dia chegávamos à capital Belo Horizonte, lembrando-nos de Affonso Penna, político que ordenou a mudança da sede política mineira para cá. De BH para frente sempre mais do mesmo, pela BR381, ou Fernão Dias. Tudo transcorreu bem até a divisa Minas Gerais/São Paulo. Já em nosso Estado natal, os problemas começaram. Congestionamentos, tráfego lento. Demoramos uma hora para vencer um trecho de 13km. Queria eu voltar para a Estrada Real, talvez o Caminho Velho ou o de Sabarabaçu, onde, apesar da dureza do terreno, as emoções são mais fortes do que o cheiro da fumaça de escapamentos ou a buzina dos motoristas estressados. Na rodovia Dom Pedro, nos últimos quilômetros de nossa incursão, fomos abraçados pela noite e extorquidos pela claridade dos postos de pedágio. Na Anhanguera, após 2300km rodados, terminávamos a faina que, se não é equiparável a dos bandeirantes, que encontravam ouro ou diamantes, é no mínimo digna de um aventureiro que, em grande parte do seu tempo, está à caça não de pedras preciosas, mas sim de locais onde possa exercer o seu fascínio por tudo o que não é humano. E por tudo o que já foi humano, mas não é moderno.
Siga nesse seu intento de dificultar meus passos, que eu seguirei abrindo caminho, mesmo que a falta de forças me obrigue a pequenas pausas para repouso. Não sou tão fraco quanto pensas, e mesmo que o passar dos anos extraia camadas de meu vigor, ainda estarei apto, num ritmo mais lento, é bem verdade, a explorá-lo em toda a sua glória. Enquanto estiveres aí, nobre mundo, estarei aqui, estudando uma maneira de entendê-lo, augurando, um dia, entender os motivos pelos quais se fazes tão atrativo. Tão impelidor.


Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.


E abaixo, um blues composto para o Santuário do Caraça, para o Caminho dos Diamantes e para um membro ilustre de nosso cerrado, o lobo-guará.