domingo, 23 de setembro de 2012

Barra do Una – de 07 a 09 de setembro de 2012


“Incontáveis caminhos. Nobres destinos. Uma alma que se crê livre. A possibilidade de se locomover velozmente. A decisão, em contrapartida, de retardar os passos para uma detalhada apreciação. Anos e anos de luta – mais pessoal do que social – contra um sistema vigente. Querer soltar as amarras. Afrouxar a submissão presente na perpetuação das “castas”. Emancipar-se. Proclamar independência. Ser trazido de volta à realidade. Trabalhar mercenariamente. Desenvolver-se. Estudar. Ganha a vida. Adoecer. Deprimir-se. Ser diagnosticado com problemas mentais, talvez esquizofrenia. Tratar-se com fármacos. Não. Abandonar os fármacos. Automedicar-se com as pequenas doses de incontáveis caminhos. Nobres destinos. Crer que a alma pode ser livre. Locomover-se. Decidir andar lentamente por ser dono dos próprios passos. Meu nome é Amarildo Sabino. Faço o que quero. Durmo onde quero. Vou para onde quero. Quiçá me concedas o prazer de tirar uma foto contigo até o fim desta conversa que, sinto, até agora tem sido, na verdade, um monólogo que aguarda nada senão ecos de uma breve resposta”. 
Rumo a Juréia
 Essas são as palavras balbuciadas por um intrépido ciclista catarinense. Enquanto repousava minha nuca num dos diversos caules trazidos à orla pelas águas do Atlântico, na praia de Barra do Una, eis que aproximou-se o ser humano que me revelou tais palavras. Realmente há uma esquizofrenia por detrás daquele olhar, mas suas aventuras são verdadeiras e sua filosofia muito rica. Saiu de Florianópolis, há um mês atrás, e se encaminha para Fortaleza, no Ceará, sobre uma bicicleta que muitos diriam não ser adequada para tamanha empreitada. O estranho papo com o estranho homem me estimulou a prosseguir nessa cruzada pelos recônditos brasileiros que ainda guardam aquela beleza alheia ao senso comum. Reafirmou, ademais, minha contumácia em não me render às mazelas do convívio social, muitas vezes baseado em falsos conluios e conchavos onde não há um mínimo de harmonia entre os indivíduos. Enfim, relembrou-me minhas querelas internas de quinta-feira à noite, quando, de supetão, resolvi mudar os planos e não rumar para São Francisco Xavier, no extremo norte de São Paulo, e sim me dirigir a Barra do Una, comunidade caiçara no extremo sul da cidade de Peruíbe, quase em território iguapense. Algo me dizia que a mata atlântica da Juréia me seria mais benéfica do que a mata atlântica da Serra da Mantiqueira. Arrebanhei, então, meu antigo companheiro de jornadas Rodrigo Costa Gil, além de Luana Romero que, duas horas antes da partida, conseguira um “salvo conduto” para se juntar a nós. 
Peruíbe e o Morro do Guaraú
 Luana e eu partimos de Americana ao meio-dia de um 7 de setembro de tráfego conturbado nas imediações do controverso portal em forma de arco. O desfile, popular comemoração de nossa independência, não conseguiu atrasar-nos em demasia, e em pouco mais de meia hora nos agrupávamos a Rodrigo nos acostamentos da caótica Rodovia Dom Pedro, em Campinas. Duas motos e três almas seguiam agora para a Anhanguera e, adiante, para a Bandeirantes, na qual permanecemos até o acesso ao Rodoanel, próximo à capital paulista. Pelo caminho, locais cenicamente interessantes, como a Serra do Japi e o Pico do Jaraguá, ponto culminante da cidade de São Paulo. Do Rodoanel Mário Covas adentramos a Régis Bittencourt, de longe a mais movimentada das que saem da metrópole, ligando-a à região sul do país. O clima era ameno, com algumas nuvens timidamente encobrindo nacos do azul dos céus, e tudo transcorreu tranquilamente pelos territórios de Embu das Artes, Itapecerica da Serra e Juquitiba. Após esta última, contudo, começamos a subir a Serra do Cafezal, que mesclava a beleza de sua relativamente bem preservada mata atlântica com a feiura e a fumaça do excesso de caminhões e veículos que, lado a lado, formavam corredores praticamente impenetráveis por nossas carregadas motocicletas, o que nos retardou por cerca de 90 minutos. No fim do trecho serrano, o fluxo foi aberto. Aproveitando o ensejo, rapidamente localizamos a rodovia Padre Manoel da Nóbrega, na altura de Pedro Barros, e por ela descemos a serra com destino a Peruíbe, passando por Pedro de Campos e Itariri, e contemplando os mares de bananeiras, com sacos azuis enrolados nas fartas pencas do fruto, e plantações de coqueiros. Chegamos a Peruíbe por volta das 16:40h, apenas em tempo de comprarmos víveres para a aventura que teria início a partir daquele momento.

Últimos metros do Rio Preto a caminho do mar
  
Ilhas de Peruíbe e Guaraú
 Rondamos a orla de areia rala, batida e negra e contornamos o Mercado Municipal, com o Atlântico a nossa esquerda, sempre com o Morro do Guaraú sombreando a cidade de 60000 habitantes. Atravessamos uma ponte sobre o Rio Preto, de onde avistamos sua foz e os barcos pesqueiros multicoloridos, as biguatingas e as garças-brancas que se empoleiravam nas armações que serviam de ancoradouro às pequenas embarcações. Do outro lado se principiava a subida da Serra do Guaraú pelo morro homônimo. Uma aguda ascensão, logicamente recompensada pela vista das ilhas de Peruíbe e de Guaraú, a partir de uma mureta acimentada dos acostamentos do sinuoso asfalto. As ilhotas arredondadas me fizeram pensar na Ilha de Queimada Grande, que em algum lugar a leste, 35km horizonte adentro, abriga o maior serpentário natural do mundo, com uma população de cerca de 5 indivíduos por metro quadrado. É o lar da jararaca-ilhoa, arborícola e letal, que evoluiu para caçar aves e não pequenos roedores, como a jararaca comum, visto que não há mamíferos como estes na pequena ilha que, durante a última era glacial, com a consequente elevação do nível dos oceanos, foi apartada do restante do continente. Não temos permissão para desembarcar na ilha. É uma dádiva exclusiva dos pesquisadores do Instituto Butantã e, infelizmente, também dos traficantes de animais exóticos que extraem espécimes para comercialização no mercado negro europeu. Estávamos, portanto, apenas de passagem quando esse devaneio me ocorreu.

Portal da Estação Ecológica Juréia-Itatins
  
Estrada do Una
 Descendo o Morro do Guaraú, alcançamos um bairro homônimo. Daí para frente não há mais asfalto. Os pneus de nossas motos se atritavam agora com a terra irregular da Estrada do Una, levantando a poeira que enrubescia nossos andrajos e ressequia nossas fossas nasais. A estiagem castiga, mesmo que o caminho seja envolto pela umidade da mata atlântica. Por falar nesse tipo de vegetação, fomos barrados para uma pequena entrevista no portal de madeira roliça da Estação Ecológica Juréia-Itatins após dois quilômetros de pilotagem cautelosa por essa via. O guarda, todo em preto, quis saber o nosso destino. Afinal, adentraríamos uma das áreas mais resguardadas do litoral brasileiro, com 80 hectares de área e 216km de perímetro. Com uma permissão verbal concedida, seguimos pela terra ora esburacada ora rachada pela ressequidão provocada pela seca. Mesmo com a falta de chuva enfrentamos dois lamaçais, locais onde as altas árvores impossibilitavam a chegada da luz solar à estrada, dificultando a evaporação do excesso de água que se infiltra, formando o tão temido e escorregadio barro. Passamos sem problemas por ambos. Em uma bifurcação, pendemos para a esquerda. À direita calharíamos na Cachoeira do Paraíso, que pretendíamos visitar no domingo. Por entre casas singelas, bicas d'água e pequenas cantinas fomos perdendo altitude e, poucos metros antes de chegarmos definitivamente à vila caiçara de Barra do Una, avistamos a bela Praia de Caramborê, confinada pelos morros e costões rochosos e banhada pelas agitadas águas do Atlântico. Já eram 18h. Percorrêramos 16km de terra e 320km totais desde a partida de Americana.

Praia de Caramborê vista da Estrada do Una
  
Rua da orla
A noite caia, e o pouco de luminosidade que nos restava não nos permitiu muita coisa. Caminhamos pelas duas ruas interseccionadas – forma de T – que compõem a vila de Barra do Una, contando nos dedos o número de casas. Chegamos a um consenso de que pouco mais de vinte moradias estão ali edificadas. Talvez cem moradores. Há igrejas, escola e posto de saúde, todos com tamanho bem reduzido. Movimento de pessoas praticamente nulo. Dois orelhões sem sinal de vida aumentavam a sensação de isolamento com o restante do mundo. Nos imensos e compridos lotes, nos quais se vê as simples casas bem ao fundo, os campings, única opção de pernoite, haviam poucas barracas montadas. Foi num desses que repousamos. Mais tarde, pouco antes das 21h, munidos de lanternas atravessamos a restinga e pisamos pela primeira vez nas areias da Praia de Barra do Una, topando vez ou outra com os siris que se soterravam na areia assustados com a nossa aproximação. Absolutamente mais ninguém. O vento soprava forte, as águas geladas e irrequietas molhavam nossos pés descalços e oportunistas borrachudos intentavam mudar nossa geografia corporal com suas picadas deformadoras. Teríamos problemas com esse minúsculos vorazes no próximo dia. Logicamente não impediriam que levássemos a cabo uma grande travessia de reconhecimento pelas três praias que compõem a orla de Barra do Una. 


O amanhecer da Praia de Barra do Una

Andorinha-grande-doméstica
 O dia 08, um sábado, amanheceu com nuvens ralas, quase uma bruma, ocupando a primeira faixa do horizonte, logo acima do mar. O sol, ainda uma tímida esfera alaranjada, dava indícios de que luziria, soberano, sobre os morros mais próximos a orla, aquecendo o corpo das andorinhas-grandes-domésticas e das corruíras que cantarolavam serelepes, saltitantes em meio à restinga. A areia compacta, dura, num degradê de preto e branco não tornava a caminhada difícil como em outras praias que eu visitara. Isso nos incentivou a caminhar rumo ao sul, por cerca de 300 metros, acompanhados pelo enérgico cão de um caiçara, que apelidamos de “Pirata” devido a uma característica mancha de pelo preto ao redor de um de seus olhos. Uma aguda curva à direita nos apresentou ao Rio Una do Prelado, ou simplesmente Una, que nasce nas serras da Juréia e finaliza seu percurso ali, no Atlântico, sendo responsável por dar o nome Barra do Una ao local. A disposição de suas águas é incomum. O curso vem como um só, se bifurca cem metros antes do contato e se reencontra novamente na iminência do contato do doce com o salgado, formando uma ilhota de areia que, quando assolada pela maré alta, deve ser tomada pelo oceano. Foi ali que “Pirata” se exercitou ao perseguir gaivotões e quero-queros, não poupando esforços na corrida e na natação. O que mais me impressionava, contudo, era o desenho da serra, semelhante aos desenhos de montanhas feitos por crianças, disposto de uma forma que parecia guarnecer a Praia de Barra do Una.

Rio Una

"Pirata"
  
Praia de Barra do Una
 Do Rio Una partimos, sempre caminhando, sentido norte. Aquela areia mais fofa, comum à maioria das praias, só era presente nas proximidades da restinga, afastada trinta metros do mar. Algumas pessoas desafiavam o causticante sol que, a esta altura, já castigava impiedosamente a epiderme. Vale dizer que muitos vêm a Barra do Una apenas para passar algumas horas, geralmente provenientes de Peruíbe, e regressam para seus locais de origem no fim da tarde. Por não ser uma praia badalada, que tenha quiosques, cadeiras espalhadas por todos os lados e vendedores ambulantes, acredito que seja deixada de lado por aqueles que buscam a agitação das praias mais urbanizadas. Some-se a isso o fato de não existirem hotéis e restaurantes de renome. Resumindo, é uma praia não para poucos, mas para aquela classe de poucos que busca a beleza cênica litorânea sem um excesso de seres humanos “poluindo” o visual e consequentemente as fotografias. Com esse raro privilégio, palmilhamos os 2km da Praia de Barra do Una até um costão rochoso. Era o limite norte. Conhecemos, portanto, toda sua extensão, da foz do Rio Una às pedras com mais de 4 metros de diâmetro que eram violentamente assoladas pelas investidas do Oceano Atlântico. Alguns pescadores se arriscavam sobre elas, vez ou outra sendo agraciados com banhos “surpresa”. Mantiveram bravamente o equilíbrio, diga-se de passagem. 

Vista do alto do costão rochoso

Costão entre as praias de Barra do Una e Caramborê

Praia de Caramborê
 Do costão rochoso obtivemos um amplo visual da Praia de Barra do Una. Seguindo por uma trilha estreita num corredor de mata atlântica calhamos numa segunda parte de imponentes rochas, agora esquadradas, de onde é possível visualizar a praia que vem na sequência: Caramborê. É preciso ter algum cuidado com os cactos murumbeba e seus afiados espinhos, desviar de bananeiras e esgueirar-se pelos espaços entre as enormes e muitas vezes escorregadias pedras. Molhamos os pés no mar nos últimos metros do trajeto, visto que o caminho sobre o costão poderia ser mais perigoso. Nossos primeiros passos em Caramborê, vencidos todos os acidentes geográficos, foram suficientes para constatar que é uma praia assaz mais movimentada do que a de Barra do Una. Sua extensão de apenas 550 metros, bem como uma estrutura mais organizada para campistas, são as responsáveis por isso. No mais, a paisagem é a mesma. Nada de quiosques nem vendedores ambulantes com seus simples produtos vendidos a extorsivos preços. Somente pessoas, a areia, o mar e mais um costão rochoso no extremo norte da ilha. Aliás, esgueiramo-nos por entre o mar e esse costão e encontramos um refúgio natural de pescadores caiçaras. Três deles “molhavam” suas iscas nas salgadas águas do Atlântico. O mais velho se gabava de ter fisgado um dos grandes mas, na iminência de tirar o enorme peixe de seu lar, teve que se contentar unicamente com a disputa, pois o bichano mostrou seu poder rompendo a linha e se desvencilhando da morte. Olhando ao sul, a vista obrigou a boca, que sorria com as desculpas e xingamentos do pescador, a se airar com a seriedade que a vista estonteante dos morros que fortificam a Praia de Caramborê clamavam. Víamos três deles totalmente cobertos pela mata atlântica. 


Praia de Caramborê: vista sul

Praia Desertinha
Pelo costão norte de Caramborê não havia como prosseguir. Regressamos à areia e seguimos o curso de um pequeno riacho que vinha por detrás do costão, entrecortando restinga e mata atlântica. Uma boia sinalizadora, abandonada em seu curso, marcava o início de uma trilha que nos levou mato adentro, primeiramente numa grande ascendente e ulteriormente numa abissal descaída. As árvores eram tão altas que impediam a entrada da luz solar. Umectamos as narinas, que até então penavam com a sequidão instaurada pela estiagem, com a inspiração do gélido oxigênio produzido pelos densos vegetais da Juréia. A caminhada foi curta, e em seu término calhamos na chamada Praia Deserta, ou Desertinha. Indiscutivelmente é a menor de todas as três com não mais que 200 metros de extensão. A paisagem mais uma vez resgatou a feição das anteriores. Contudo, por ser de dimensões reduzidas, a sensação de calor e claustrofobia nela foi marcante, tanto a ponto de ensaiarmos pela primeira vez um banho nas águas azuladas e amarronzadas desta ínfima cria do Atlântico. Luana, cansada pela truncada caminhada de aproximadamente 4km, repousou na areia batida da Desertinha enquanto Rodrigo e eu, ávidos por mais caminhada, escalamos o pequeno costão norte, dispostos a fotografar mais belezas cênicas. Não obstante, constatamos que a caminhada poderia ser longa, muito longa. Não víamos praias. Apenas a costa rochosa a perder de vista. Fazendo o uso da razão, voltamos para a praia, tomando cabeçadas e mais cabeçadas de rígidos e esverdeados gafanhotos que saltavam de uma rocha para outra. 

Daqui a Peruíbe somente um extenso costão sem praias

Indivíduo se afogando
 O nosso palmilhar desbravatório pelas praias de Barra do Una chegara ao fim. Já eram quase 14h. Voltamos pela trilha, volvendo nossas espaldas a Desertinha. Cruzamos, agora do norte ao sul, as praias de Caramborê e Barra do Una. No costão desta última, um ensaio de uma tragédia: um homem desesperadamente gritava por ajuda, preso no bailar das águas nas proximidades de grandes rochas da orla. Não há salva-vidas por não ser uma praia popular. Um homem de meia-idade, nadador exímio e complacente com a situação do infortunado homem que se afogava, saltou das pedras e nadou em sua direção. As ondas, contudo, expulsaram a vítima de vez ao arremessá-lo contra uma rocha. O jovem sentou a alguns metros do mar para recuperar o ritmo de sua respiração. Deve ter engolido muita água. Deve ter avariado boa parte de sua “carcaça”. O mar é impiedoso com os que ousam passar de seus limites. No fim, ele estava vivo, mas a memória desse dia certamente se manterá lúcida por todos os dias de sua vida, traumatizando-o para sempre. Talvez seja melhor assim. Algumas paisagens são passíveis apenas de observação, e não de enfrentamento. Lembrei-me de quando Rodrigo, Luiz Paulo Blanes e eu perecemos na tentativa de vencer a Trilha do Telégrafo, no Ariri. Simplesmente não era para estarmos ali, e pagamos por essa ousadia com escoriações, avarias em nossas motocicletas e, principalmente, cicatrizes em nosso brio. 

O resgate

Curvas do Rio Una
 Restava-nos ainda algumas horas de claridade. Caminhando pela estrada de acesso a Barra do Una, a mesma pela qual aportáramos ali no dia anterior, ganhamos um pouco de altitude e, de uma clareira à beira da via, contemplamos as imensas curvas do Rio Una, abrigando em suas margens manguezais e densa mata atlântica. Como dito anteriormente, o curso do rio se divide em dois para, posteriormente, próximo à foz, se reagrupar. Essa divisão forma uma ilha fluvial chamada Ilha do Ameixal. É classificada como uma ARIE (Área de Relevante Interesse Ecológico), por ser de dimensões reduzidas mas detentora de importantes recursos naturais. Essa classificação preserva o local da ocupação humana e da mudança drástica promovida por ela. Para quem não enxerga a beleza de uma massa verde de mata entrecortada por um diminuto curso de rio é um ermo nem um pouco atrativo e fotograficamente não meritório de grandes vivas. Ver o belo é questão de treino, como diria um professor, companheiro de profissão. Foi com essa noção que descemos de volta para a vila e acompanhamos o pôr-do-sol na foz do Rio Una. O astro-rei se absteve dessa parte do litoral sul de São Paulo ao esconder-se por detrás dos morros do oeste da Juréia. Alguns canoistas ainda se aproveitavam da luz alaranjada do fim do dia para as últimas remadas desse esplêndido 08 de setembro, onde uma nativo mateiro, como eu, se encantou, pela primeira vez em muitos anos, com a primazia do litoral brasileiro.

Pôr-do-sol na foz do Rio Una

Canoístas
  
Parque Estadual do Itinguçu
 Dormimos desconfortavelmente em nossas barracas e despertamos cedo. O regresso principiar-se-ia. Despedimo-nos dos moradores locais e de Amarildo Sabino, o ciclista diagnosticado com esquizofrenia que conhecêramos no dia anterior, e partimos pela única estrada possível, a mesma que nos levara sacolejando até ali. A viagem não estava, contudo, terminada. Doze quilômetros depois localizamos uma bifurcação na estrada e seguimos pela esquerda por mais 4km até o Parque Estadual de Itinguçu. Estacionamos as motos, assistimos a um vídeo na casa-sede do parque e adentramos uma larga e bem sinalizada trilha autoguiada. A mesma se divide em três, após 500 metros de caminhada. A central e a da esquerda calham nos poços do Ribeirão Itinguçu, ladeados por pedras de todos os tamanhos e formatos e preenchidos pela água transparente que desce da serra. A mata atlântica refletida na água a empresta um aspecto esverdeado, dependendo do ângulo de incidência da luz solar. O ponto alto de nossa estadia de apenas uma hora nos domínios do Parque Estadual de Itinguçu, cuja visitação é limitada a 305 pessoas por dia, foi a Cachoeira do Paraíso, acessada pela trilha da direita. Com 17 metros não chega a ser imponente. Não é uma queda livre, vertical. Desce escorregando pelo canto esquerdo de um paredão rochoso. Em épocas de chuva deve tomar conta de todo ele, pois o volume d'água aumenta consideravelmente. Muitas pessoas desciam pelo tobogã natural e eram beijadas pela morte ao se chocarem com as pedras. O parque proibiu, então, tal tipo de diversão. Todos os visitantes, hoje, ficam relegados ao poço natural que se forma com a translúcida água do Ribeirão Itinguçu que desce pela cachoeira. 

Cachoeira do Paraíso

Piscina natural do Ribeirão Itinguçu

Corredeiras do Rio Perequê
Deixamos Itinguçu, retomamos a Estrada do Una, repassamos, agora em sentido contrário ao de dois dias atrás, o portal da Estação Ecológica de Juréia-Itatins e apeamos nas corredeiras do Rio Perequê, de características semelhantes ao Ribeirão Itinguçu no quesito rochas em seu leito, mas consideravelmente mais caudaloso. Muita gente se banhava em suas águas e se alimentava nos restaurantes de seus arredores. Visando nos livrarmos do furdúncio, fomos margeando o rio por uma trilha, serra acima. O leito pedregoso, belo e sereno, afrontado por pouco volume d'água, não nos apresentou nada de novo, exceto pelos martins-pescadores e pela presença marcante do surucuá-de-barriga-amarela, ave exclusiva da mata atlântica bem fechada. Realmente não pesquisei a fundo a situação de alguns barracos erguidos à beira do rio, mas me parecem ser fruto de invasão. Dois dos maiores problemas do Brasil emergem quando se visualiza um cenário desse: de um lado, a necessidade da preservação; do outro, a necessidade da moradia para todos. Chegamos a ver o curso do rio trancado por uma pequena ponte de concreto, facilitando o acesso dos transeuntes de um barraco ao outro, mas impedindo o avanço natural da água. Os órgãos que regem a Juréia, que primam pela sua alta capacidade de mantê-la como um recôndito praticamente inviolável, deveriam olhar com mais carinho para as margens do importante Rio Perequê.

Surucuá-de-barriga-amarela
  
O regresso
 De volta à companhia de nossas motocicletas, seguimos para a parte urbanizada de Peruíbe, dando um adeus definitivo a Estrada do Una. Subimos o Morro do Guaraú, agora pelo asfalto, descendo-o ulteriormente, tendo a vista das ilhas de Guaraú e Peruíbe à direita. No alto da serra, um susto: um ciclista descia velozmente, a nossa frente, e num súbito desequilíbrio foi lançado ao canteiro lateral gramado. Paramos para prestar socorro. O infortunado homem agradeceu a ajuda, mexeu cada segmento do corpo para constatar se havia alguma fratura e, sem encontrar alguma, agradeceu a nossa ajuda e cortesmente nos dispensou. Chegamos à zona urbana de Peruíbe e, margeando o Atlântico, fomos nos despedindo de sua areia batida. O cenário já era bem mais “poluído” do que o de Barra do Una. Muitos quiosques, pessoas, caixas de isopor e aquele cheiro de camarão característico das praias movimentadas. Acessamos, na saída da cidade, a BR101, uma continuação da Padre Manoel da Nóbrega. Numa toada lenta e sonolenta, permeada por momentos de engarrafamento total, atravessamos os perímetros urbanos de Itanhaém, Mongaguá e Praia Grande, alcançando a cidade que já foi considerada a mais poluída do mundo: Cubatão. Daí em diante foi só subir a Serra do Mar pela Rodovia dos Imigrantes, vencer o caótico tráfego de fim de feriado prolongado e localizar o Rodoanel. Sobre a imensidão das represas de Billings e Guarapiranga, uma última vista do nosso poderio hídrico muitas vezes ingratamente judiado. Na Bandeirantes, Rodrigo se despediu de Luana e eu, sumindo entre os arranha-céus de Campinas. Em Americana, eu e minha Luna recordávamos de todas as marcantes estórias que, durante os 650km de viagem, nos serão motivo de riso por muitos sóis. As águas intempestivas do Atlântico nos deram um novo ânimo. Cunha e Paraty nos aguardam. “Meu nome é Amarildo Sabino. Vou para onde quero”. 
 “Tudo o que você vê pela televisão eu vi de perto, com esse olhos que os médicos disseram deturpar tudo ao meu redor. Fui de Florianópolis a Montevidéu, no Uruguai, pedalando. Meu nome é Amarildo Sabino. Vi a pobreza, vi a riqueza. O belo se materializava, e o horrendo o desvanecia. Meu nome é Amarildo Sabino. Tenho 47 anos e sou descendente de alemães. Minha cabeça dói. Preciso ir embora. A foto que te pedi fica para uma outra oportunidade. Preciso me despedir. Meu nome é Amarildo Sabino e aquelas pessoas ali já não confiam umas nas outras. Querem espaço, mas o espaço que reclamam nem é de propriedade delas. É do mundo. Meu nome é Amarildo Sabino. Faço o que quero, e agora preciso ir. Nos vemos por aí, talvez em Fortaleza, que é para onde vou. Amarildo Sabino. Amarildo. Sabino”.


Mais fotos aqui. 

E abaixo, um blues para a Barra do Una.


quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Reserva Guainumbi – de 17 a 20 de agosto de 2012


Existem duas facetas na personalidade de um aventureiro que são inevitavelmente antagônicas entre si. A primeira, o calado consentimento, é aquela que o permite fazer parte de um sistema que ele acredita ser totalmente contrário a sua ideologia. A segunda, o repentino e ocasional descaso para com todas as suas obrigações sociais, é aquela que o encoraja a abandonar tudo o que outras pessoas prezam como mais sagrado, incluindo trabalho, família e rotina. Alguns dizem que a primeira é a responsável pela nutrição e desenvolvimento da segunda. Eu e minha pífia opinião discordamos, visto que essa concepção dá uma conotação de mero “escape” à aventura, quando na verdade ela é justamente o oposto disso. Penso, talvez contrariamente à maioria, que a primeira advém da segunda, pois é o caminho encontrado pelo aventureiro para manter-se vivo, alerta, já que uma aventura, quando se prolonga por muitos sóis, tende a debilitar e a adoecer o corpo. É tudo uma questão de manter-se saudável, operante, desbravador. E é, acima de tudo, a criação de ideais tão fortes que em nenhum momento podem ser estremecidos por outrem. Uma rigidez de caráter que não só assusta os acomodados, mas que também desperta a admiração e o respeito calado das pessoas mais próximas.
Olhando para o futuro
Prometi a mim mesmo que não discorreria sobre a Reserva Guainumbi, localizada nos píncaros da Serra do Mar entre São Luiz do Paraitinga e Ubatuba, no litoral norte do Estado de São Paulo. Primeiro por não ter sido uma viagem feita sobre uma moto, e segundo por se tratar de uma experiência muito pessoal, de duas pessoas que pretendem, num futuro próximo, alavancar um projeto parecido. Como de praxe, quebrei minha promessa, mostrando minha total falta de apreço pelas minhas próprias prerrogativas. Em síntese, eu e Newton Norio Nabeta, um grande amigo dos joviais e saudosos tempos de universidade, conheceríamos uma reserva ambiental particular e todos os seus meandros, visando entender todos os pormenores, tanto burocráticos quanto práticos, para a criação de uma reserva particular nossa, voltada à preservação, reflorestamento, educação e perpetuação da vida selvagem em habitats naturais. Logicamente é um grande sonho, quando adormecemos, e um devaneio, quando as obrigações nos mantêm acordados, mas que nem por isso deixam de ser cativados, galgados. Por fim, meus escritos, por mais singelos que sejam, carregam consigo a capacidade de disseminar o nome dessa reserva que é um exemplo de ação efetiva em prol da conservação de nossas matas e fauna. Então, por quê não escrever sobre Guainumbi?
Companheiros de viagem
Newton, Thaís Diniz-Reis, Noriko Nabeta e eu partimos de Americana na manhã do dia 17 de agosto. O trio vinha de Ipeúna, pacata cidade aos pés da Serra de Itaqueri, e eu me juntava ao bando para seguirmos ao destino pretendido. Vencemos a Rodovia Anhanguera, que em obras nos retardou a progressão, e o sempre congestionado princípio da Dom Pedro, nas imediações de Campinas. Essa excessivamente pedagiada rodovia nos acompanhou pelos perímetros urbanos de Itatiba e Atibaia, de onde avistamos a Pedra Grande, aproveitando a boa visibilidade de um dia ensolarado e de baixa umidade. Sem muitas emoções, a não ser rápidas passagens sobre as pontes da Represa de Atibainha, uma das mais limpas do Estado de São Paulo, acessamos a Rodovia Carvalho Pinto, bem conhecida pelos turistas que rumam ao litoral norte por cruzar com a Rodovia dos Tamoios, que faz a ligação direta de São José dos Campos com Caraguatatuba. O quarteto, contudo, passara direto pelo cruzamento das rodovias, seguindo pela Carvalho Pinto até a Dutra, na altura do município de Taubaté. Na terra onde viveu o amado e odiado Mazzaropi, localizamos a Rodovia Oswaldo Cruz, que serpenteante nos conduziu Serra do Mar acima. Menos de 50km depois visualizamos, incrustada no Vale do Rio Paraitinga, a cidade histórica de São Luiz do Paraitinga, que tenta reconstruir suas tombadas construções coloniais após a grande enchente do Rio Paraitinga em 2010. A água, tanto a transbordante quanto a vertical, avariou suas coloridas edificações. Obras acontecem em todas as partes. O acesso principal ainda está intransitável. Entramos por um acesso secundário para, somente assim, podermos conhecer as ladeiras de “pé-de-moleque” e a organizada “irregularidade” das edificações coloniais.


São Luiz do Paraitinga

Tiê-de-topete
Deixando São Luiz do Paraitinga, retornamos a Oswaldo Cruz para continuar subindo a serra. Por entre barrancos e matas secundárias chegamos ao acesso do Parque Estadual da Serra do Mar, núcleo Santa Virgínia. Adentramos essa via, por terra, e fomos nos circundando pela mata atlântica fechada, pelos casebres administrativos e alojamentos do parque e por alguns sítios menores, além de sobrepassarmos os rios Ipiranga e Paraibuna. Depois de sete quilômetros e meio de terra e poeira nos deparamos com a porteira da Reserva Guainumbi, nosso único e desejado destino. O portão de madeira, semicerrado por um destravado cadeado, nos possibilitou a entrada sem nenhum impedimento. Num amplo espaço gramado, ao lado de uma estufa, estacionamos o carro, descendo ulteriormente uma trilha acimentada até uma singela casa esverdeada, sede da reserva, de onde já era possível avistar um grande morro coberto por densa mata primária e secundária, essa última fruto de um processo de replantio engendrado pelo idealizador da reserva. Nos arredores da casa, três fotógrafos, munidos de pesado equipamento, se divertiam fotografando as dezenas de beija-flores, como o beija-flor-rubi, o beija-flor-de-papo-branco e o cauda-branca-rajado, que sorviam a água com açúcar de outras dezenas daquelas garrafas plásticas com flores artificiais multicoloridas, e também o néctar natural de grevíleas e caliandras que floriam exuberantemente ao lado de troncos e galhos de madeira seca, onde eram ofertadas frutas, como mamão, banana e laranja, a outros pássaros maiores, como o sanhaço-cinzento, o sanhaço-de-encontro-amarelo, o tecelão, o sabiá-de-coleira, o sabiá-laranjeira, o tiê-do-mato-grosso, o tiê-de-topete, o periquito-rico e o chopim-preto. No chão, uma espécie de ração servia de bródio ao coleirinho e ao canário-da-terra. O senhor Joziel, caseiro e guia da reserva, recepcionou-nos ao mesmo tempo em que nos mostrava a fartura de seres alados. Segundo ele, já foram catalogadas 340 espécies de aves nos domínios de Guainumbi.

Sanhaço-de-encontro-amarelo

Tecelão

Caranguejeira
O sol do primeiro dia se punha, mas nem por isso deixamos de gozar das surpresas de uma trilha noturna. Com a bagagem devidamente acomodada no chalé em que pernoitaríamos nos próximos dias, partimos a pé pelas picadas em meio aos 70 hectares de mata atlântica da reserva. Sorrateiros, com lanternas em mãos e com perneiras nas canelas (uma defesa contra botes de cobras), atravessamos uma pequena ponte de madeira sobre um dos quatro lagos, o Lago 3, formados por águas represadas das diversas nascentes e riachos que entrecortam Guainumbi, escutando atentamente às lerdas corredeiras, ao coaxar dos sapos e ao farfalhar de asas que elevavam seus donos vegetação úmida adentro, assustados com o nosso palmilhar. Andamos por cerca de uma hora e meia e, infelizmente, não vimos animal algum, a não ser um letárgico opilião, aracnídeo comumente confundido com a aranha. Apesar de pertencerem a mesma classe, morfologicamente apresentam dessemelhanças. A aranha possui duas estruturas distintas em seu “torso”, como dois elos de uma mesma corrente, enquanto o opilião, apesar de também desfrutar das mesmas duas estruturas, não aparenta divisão entre elas, sendo seu “torso” semelhante ao de um carrapato. Por incrível que pareça, pouco antes de vestirmos as perneiras, subtraídas de um baú na sede, eu fotografara uma estabanada aranha que perambulava pelo piso frio. Acreditávamos se tratar da temida armadeira, mas no fim das contas a bichana não soergueu suas patas dianteiras quando tocada por um pedaço de papel, recebendo apenas o rótulo de “espécie desconhecida por nós”, possivelmente uma caranguejeira, como classificação. O certo é que esses dois aracnídeos foram, além das aves, o que de mais abismante observamos neste primeiro meio-dia dentro da Reserva Guainumbi.

Opilião

Roda d'água
O segundo dia amanheceu seco, como era de se esperar. Nenhuma nuvem pontilhava os céus azuis sobre Guainumbi. O anil só não era mais imponente que a extensa e curvilínea faixa verde, um cinturão de mata atlântica que continuava impressionando pela densidade. Realocamos as perneiras de couro, abastecemos as mochilas com víveres e água e partimos pela Trilha dos Tangarás, que possibilita caminhadas pelo extremo sul da reserva. Como o sol clareava em demasia mesmo as áreas mais cerradas, sabíamos que dificilmente toparíamos com algum mamífero. Lentamente, sempre comigo encabeçando a fila com minha câmera fotográfica em mãos, chegamos a uma casa de apoio, vazia, que em tempos mais remotos foi sede do Sítio Sapé, um dos que foram comprados pelo proprietário da reserva e anexado a outros para a consolidação da reserva. Uma pequena roda vermelha, que girava ao contato de uma água limpa e potável, e algumas esculturas de querubins em pedra nos convidaram a uma rápida parada, tempo suficiente apenas para completar os cantis e dispersar o ácido lático dos membros inferiores. De volta à trilha, atravessamos um regato conhecido como Poço dos Girinos, onde um sapo, moldado em pedra, cospe água incessantemente. Um pouco mais adiante, uma surpresa, que infelizmente não pude visualizar. Enquanto olhava atentamente para a copa das árvores à procura de pequenas aves, eis que Newton brame, a uns 20 metros atrás de mim, a palavras COBRA. Instintivamente olhei para baixo, não vendo absolutamente nada no chão recoberto por folhas úmidas em decomposição. Segundo ele, uma cobra verde de um metro de comprimento, supostamente uma cobra-cipó, quase foi esmagada pelas minhas botas, dando-me um drible e se embrenhando pela mata. Por sorte ela preferiu não me presentear com um bote. Mesmo não sendo peçonhenta, uma picada de um réptil como esse pode ser traumática e dolorosa. Nunca fez tanto sentido vestir uma perneira.

Beija-flor-rubi, comum na Trilha dos Tangarás


Mata atlântica
 Do meio da Trilha dos Tangarás em diante, nada de embasbacante no quesito fauna. Logicamente a flora continuava a mostrar sua força, relegando as plantas mais baixas ao apodrecimento e as mais altas à perpetuação da vida. É a seleção natural da mata atlântica, na qual a disputa pela luz solar indica os vegetais que sobreviverão e os que perecerão. As bromélias, que subsistem com uma menor quantidade de luz, são um caso à parte, e muitas espécies delas são notadas no solo ou nos caules de algumas árvores. No findar da caminhada, uma outra trilha, a da Casinha da Mata, se iniciava, ao sul. Contudo, uma outra partia para o norte, e essa não constava em nossos mapas. Por mera curiosidade, seguimos caminhando pelo “desconhecido”, sempre subindo, ganhando altitude. Após 500m de estafante ascensão, discernimos, a partir de uma clareira, os morros recobertos de mata do Parque Estadual da Serra do Mar, núcleo Santa Vigínia. Na verdade, o mais nobre intento da Reserva Guainumbi é ser uma área anexa ao Parque Estadual citado, aumentando, dessa forma, a extensão da área verde desse santuário ecológico, tão diversificado e ao mesmo tempo tão castigado pela caça predatória e pela extração ilegal de orquídeas e palmito. Por falar em diversidade, quando augurávamos retomar a caminhada, um barulho tímido no meio da mata nos fez voltar nossos olhos na esperança de ver alguma grande ave, talvez uma jacutinga. Por dez suspirantes segundos fixamos nossos olhares onde as folhas se debatiam ao contato de um animal de médio porte. Tratava-se de uma jaguatirica, felino com aproximadamente um metro de comprimento e com a pelagem muito semelhante a de uma onça. Por estar entre galhos e folhas, nem Thaís nem eu, os dois que portavam câmeras, conseguimos fotografar a garbosa bichana.

Aqui vimos a jaguatirica

Ecdise de um aracnídeo
O saldo, quando voltamos para o chalé, foram poucas fotos da fauna local, a lembrança inesquecível de uma jaguatirica no córtex cerebral e muitos micuins infestando nossos corpos. Há muitos porcos-do-mato na reserva, principalmente na trilha não mapeada pela qual ousamos nos embrenhar, e estes são disseminadores de parasitas como os pequenos carrapatos que agora pretendiam sugar o nosso sangue. O desconforto e a coceira, no entanto, não exauriram nosso ânimo, e no terceiro dia, um domingo atípico, repetimos a liturgia do dia anterior. Vestimos roupas longas, perneiras e reabastecemos as mochilas com víveres e água. Trilhamos, desta feita, um outro caminho, conhecido como Trilha das Pedras. Logo nos primeiros metros dessa via fotografei, grotescamente, um arapaçu, escalando velozmente uma delgada e alta palmeira. Um paredão rochoso, possivelmente granítico, veio na sequência. Parte da trilha segue paralelo a ele. Vimos um anuro negro escondido nos buracos úmidos de tatu e algumas ecdises, exoesqueletos de pequenos invertebrados como a aranha e a cigarra. Funcionalmente têm a mesma serventia de uma troca de pele nos ofídios. Abandonam a carapaça antiga quando encerram a formação de uma nova, podendo, então, crescer e adquirir uma “couraça” mais leve. Nossa atenção foi desviada pelo barulho de martelo em ferro. Uma tonitruante “batida” a cada 30 ou 40 segundos. Era a araponga marcando seu território. A estranha ave alva de face azul, ruidosa como ela só, foi localizada nas proximidades da Trilha da Casinha da Mata, onde se finda a Trilha das Pedras. Mesmo estando numa posição muito elevada, acocorada nos altos galhos da mata, consegui algumas fotos que, se não ficaram assim tão artísticas, servem bem como registros desse ser ameaçado – mais um – de extinção.

Araponga

Anuro

Gruta
Decididos a fazer contato novamente com a jaguatirica que víramos no dia anterior, abandonamos todas as trilhas mapeadas, subimos os barrancos, tornamo-nos íntimos, a contragosto, de mais uma leva de micuins e localizamos o ponto de encontro com o felino. O horário era, inclusive, o mesmo: treze horas. Dispendemos algum tempo ali, num dos pontos mais altos da reserva, e nessa ocasião não contamos com o auxílio da sorte. Recolocamo-nos em outros caminhos, morro abaixo, por uma trilha que, de tão ampla, parecia ser uma antiga estrada em desuso, visto que o mato tenciona a tomá-la por completo. Encontramos uma gruta, e após uma breve checagem em seu interior descobrimos estar vazia. Nenhuma vida, por mais ínfima que fosse, estava nela abrigada. Em seus entornos, contudo, e também em grande parte da estrada que se fecha, fezes e mais fezes de jaguatirica, formadas basicamente por ossos triturados e pelos de roedores, pontilhavam o solo. Pela quantidade de excremento, chegamos à conclusão de que comida não falta para a nossa querida jaguatirica em Guainumbi. Foi com esse pensamento que encerramos nossas caminhadas matutinas e vespertinas pela mata atlântica desses ermos da Serra do Mar paulista. Regressamos à base, ao nosso chalé, para um descanso que só não foi maior por causa da necessidade premente de nos livrarmos, à unha, dos micuins que, a essa altura, praticamente haviam modificado a mordidas a superfície dos nossos judiados corpos.

Sapo-cururu

Macuquinho
À noite, quando o sol há muito se esquivara da faina de iluminar o ocidente, insuflamo-nos com o desejo de uma última caminhada noturna pela estrada de acesso à reserva. Segundo Joziel, esperanças existiam quanto à visualização de corujas e curiangos. Andamos por cerca de quatro quilômetros até uma ponte sobre o Rio Paraibuna, nos limites do Parque Estadual da Serra do Mar, núcleo Santa Virgínia, e as esperanças se desvaneceram. A caminhada por um espaço aberto nos gratificou com alguns sapos-cururus, que atravessavam de um lado para o outro da estrada à caça de riachos, uma aranha, que carregava seus incontáveis filhotes sobre o torso, e um macuquinho, ave que num primeiro momento parecia presa em uma rachadura de um alto mourão, mas que na verdade estava ali, encaixado, para cantar e se proteger, tanto de predadores quanto do frio. A propósito, o frio foi o grande vilão de todos esses dias em que estivemos em Guainumbi. Muitos animais preferiram permanecer entocados. No fim de tudo, não houve motivo para reclamações. Quem tem o privilégio de ver, a poucos metros de distância, uma jaguatirica em um país onde a mata atlântica sucumbe a cada dia perante o desmatamento? Logicamente tudo pode ser visto num renomado zoológico, mas deparar-se com um felino desses, com absolutamente nada entre seus olhos e os amedrontadores olhos da “fera”, é uma sensação que meu pífio vocabulário não se atreve a exprimir.

Estufa

Adeus, Serra do Mar
No dia 20 de agosto, uma segunda-feira causticante, deixamos Guainumbi. Nos últimos momentos ainda conhecemos uma estufa, de onde saem as plantas que reflorestam, dia após dia, a mata atlântica da reserva. As mudas também são vendidas para outros interessados em replantio e recuperação de áreas desmatadas. É, acredito, um nobre papel e um grande exemplo a ser seguido por todos aqueles que têm condições financeiras plenas de adquirir grandes extensões de terra em locais onde a flora e a fauna carecem de uma sobrevida. Newton e eu estamos nutrindo esse sonho de alguns tempos para cá, e o desânimo ao nos conscientizarmos dos valores necessários para abrir e manter uma reserva particular se instaurou após conversas por e-mail com pessoas que já as possuem. É um “mimo” que pode não passar de utopia para meros assalariados como nós. No entanto, como dizia o ideário popular, a esperança é a última – ou a única – que morre. Com jargões na cabeça e 400km de regresso, descemos a serpenteante Oswaldo Cruz até Ubatuba, avistando o mar e os morros da Serra do Mar do litoral norte paulista. Na BR101, passamos por Caraguatatuba e acessamos a Rodovia dos Tamoios, que nos acompanhou até a Carvalho Pinto. Voltando à realidade, adentramos a caótica e fétida capital paulista, São Paulo, apenas por tempo suficiente para desembarcarmos Noriko. Para ela, era o fim da linha. Newton, Thaís e eu ainda enfrentamos a Bandeirantes até Campinas, e depois a Anhanguera até minha casa, em Americana. Já era noite. Newton e Thaíz sumiam para Ipeúna. Eu ficava com meus pensamentos. Pensava numa tal de Mantiqueira. Estarei aí em breve, minha serra querida.
Adeus àquele pusilânime ser que minha adolescência nutria. Àquele que acreditava que a felicidade dependia do bem-querer de outrem. Hoje tenho uma nova manta, tão indiferente no trato com seres humanos e tão ligada ao abstrato, ao natural, ao mato, aos animais “irracionais”. Completo-me em minha incompletude em viver uma realidade urbana voraz e mercenária. A liberdade tem seu preço, e brevemente pagarei o meu. Enquanto ela não cobrar essa dívida, vagarei, gratuitamente, pelo asfalto, pela terra, na mata atlântica, no cerrado ou na caatinga. Sobre uma moto? A pé? De carona? Vagarei.


Mais fotos aqui.
Mais informações no site oficial da reserva.

E abaxo, um blues para Guainumbi e para uma de suas jaguatiricas, em especial.