sábado, 20 de dezembro de 2014

Vale do Jequitinhonha – de 03 a 10 de julho de 2014


Duas viagens em uma: essa era a ideia que eu tinha em mente para o período da Copa do Mundo de Futebol de 2014. No que tange à primeira delas, uma cruzada pelo sertão nordestino, de nenhuma companhia desfrutei, como pode ser conferido nesse link; à segunda, em contrapartida, havia eu acertado previamente com um velho parceiro de empreitadas, Rodrigo Gil, uma “bandeira” motociclística por um dos vales de rio mais emblemáticos desse país: o Vale do Jequitinhonha. Nossas motivações para a escolha dessa região foram diversas: primeira, eu provinha do Estado do Sergipe e estava, portanto, próximo da região; segunda, Rodrigo tem suas raízes maternas fincadas no Médio Jequitinhonha, mais precisamente no município de Itaobim, Minas Gerais; terceira, o desejo de testemunhar o que os livros e professores de nossos tempos escolares proferiam sobre essa peculiar localidade, considerada uma das mais secas e pobres do Brasil; quarta, a estatística de que 80% dos moradores do vale são rurícolas, o que nos levou a crer que passaríamos um bom tempo trafegando por estradas de chão, sempre muito almejadas por nós; e quinto, a possibilidade de ver o comportamento da caatinga no acidentado relevo mineiro. Enfim, nunca outrora carecemos de um motivo para viajar, mas era bom saber que, para essa peleja, teríamos alguns.
Camamu
Parti de Itabaiana, Sergipe, no dia 3 de julho, logo após conhecer o trabalho de José Percílio no Parque dos Falcões, como pode ser conferido também no link do primeiro parágrafo. Era meio-dia, a chuva desabava ininterrupta e eu cautelosamente avançava pelas estradas de mão dupla do agreste sergipano. Passei por Lagarto, Riachão do Dantas, Pedrinhas e Arauá. Deixei as rodovias estaduais, truncadas, e entrei na federal BR-101. Os problemas, logicamente, começaram aí: obras, sinalização precária, lombadas e mais lombadas em plena rodovia. A toada, vagarosa, me fez adentrar a Bahia com muito atraso. Permaneci na 101 até a cidade de Santo Antônio de Jesus. Dela desci rumo ao litoral pela sinuosa BA-542, chegando a Valença. Estava agora na Costa do Dendê, uma região repleta de praias, manguezais, restinga e baías compreendida entre a foz do rio Jaguaripe e a Baía de Camamu. Eu me dirigia a essa última, onde marcara de me encontrar com Rodrigo, que provinha de algum lugar do interior baiano. A noite cai mais cedo no litoral e, devido a isso, não pude apreciar toda a beleza que circunda a BA-101, uma espécie de translitorânea da Bahia. Passei batido pelos municípios de Taperoá, Nilo Peçanha, Ituberá e Igrapiúna. Por volta das 20h eu adentrava Camamu pelo norte, após 530km rodados desde Itabaiana. Localizei Rodrigo, conversamos acerca da rota a partir dali e concluímos: incluiríamos, dada a proximidade e o tempo de que dispúnhamos, a Península de Maraú em nosso roteiro. O dia seguinte, ao contrário do que fora esse, prometia ser melhor aproveitado.
Rio Acaraí
Amanheceu o dia 4. Estávamos em Camamu, defronte o Acaraí, rio que deságua na baía homônima à cidade. Uma vez ali, por que não conhecê-la antes de nos dirigirmos a Península de Maraú e ao Vale do Jequitinhonha? Em síntese, é uma das cidades mais antigas do Brasil, datada de 1560, e que se pode conhecer à moda antiga: a pé. Antigo lar dos índios Macamamus e posteriormente regida por mãos jesuítas, foi idealizada em dois níveis, sendo o primeiro, defronte o rio, destinado ao porto e ao comércio, principalmente o da farinha de mandioca; e o segundo, sobre os morros (mais alto, portanto), reservado às igrejas e ao casario colonial. Passadas mais de quatro centúrias, obviamente a dinâmica urbana muito se modificou. No entanto, Camamu, hoje com quase 40 mil habitantes, ainda apresenta um comércio ululante e uma grande frota de barcos pesqueiros em sua parte baixa; no alto, boa parte de sua arquitetura histórica ainda está preservada, e um belo remanescente é a Igreja de Nossa Senhora do Assunção. Construída no século XVIII, apresenta arquitetura barroca e de suas vidraças, na galeria superior, obtêm-se uma vista panorâmica do rio Acaraí e de seu consequente encontro com as águas do Atlântico, fenômeno formador da Baía de Camamu, conclamada a terceira maior do Brasil, perdendo apenas para a de Todos os Santos, também na Bahia, e a de Guanabara, no Rio de Janeiro.


Igreja de Nossa Senhora do Assunção, do século XVIII

Maraú
Findado o reconhecimento de Camamu, cruzamos a ponte sobre o rio Acaraí e aceleramos para o sul. Trinta e cinco quilômetros depois contornávamos uma rotatória na BA-101 e subíamos sentido nordeste por uma poeirenta estrada de terra. A aventura real começou nesse ponto. Estávamos oficialmente na Península de Maraú. Uma definição rápida do termo PENÍNSULA seria “uma porção de terra cercada de água por praticamente todos os lados, exceto por um, que a mantém conectada ao continente”. É um adendo do Estado da Bahia, por assim dizer, um braço com 40km de extensão que, por um capricho da geografia, não se tornou uma ilha. Por essa estreita paragem baiana avançávamos, com o rio Serinhaem ao lado esquerdo e o Oceano Atlântico à direita. Em nenhum momento os víamos, mas sabíamos que estavam lá. Contornando buracos e vencendo curtos trechos de lamaçais, calhamos na cidade de Maraú. Nela finalmente vimos o rio. Na margem oposta, a menos de 200 metros, o continente. Vários barcos pesqueiros, atracados, criavam um cenário que, se não fosse pelos encardidos balaustres, seria análogo ao de Camamu. Esse centro urbano, por mais apetecível que fosse, não era nosso escopo. Augurávamos conhecer as águas translúcidas do mar na vila de Taipus de Fora. Mais afastada, mas ainda no prolongamento da estrada de chão praticamente retilínea que entrecorta toda a península, chegamos a esse pequeno povoado de opulentas mansões e pousadas, mas vazio e com um camping de valor irrisório disponível, apenas uma hora depois. Assentamos acampamento e nos dispusemos a caminhar pela orla. Foram rodados, a partir do balão da BA-101, quarenta e cinco quilômetros por terra, lama e curtos trechos arenosos.



Taipus de Fora, na Península de Maraú

45km de orla
Embora uma breve pesquisa na internet revele incontáveis praias na Península de Maraú, não se espante se um dia vier a esse ermo, onde não há sinal de telefone e apagões são costumeiros, e se deparar com apenas uma delas. Isso mesmo, uma. Da Ponta do Mutá, limite norte da península, à foz do Rio de Contas, limite sul, há apenas uma extensa costa arenosa, sem divisões. Calculo, na falta de um dado mais preciso de um órgão oficial, que sejam cerca de 45km de ininterrupta praia. Não há costões ou morros próximos à orla o suficiente para dividir a extensa faixa de alva areia. É uma grandiosidade que logicamente não se equipara aos 240km da maior praia do mundo, a do Cassino, no Rio Grande do Sul (link), mas ainda assim é um número expressivo. Aqui, ao contrário dos gaúchos, as pequenas vilas da península nomeiam seus trechos de praia, segmentando-a simbolicamente. Barra Grande, Algodões e Cassange são algumas delas. Ficamos, como já mencionado, em Taipus de Fora, onde a disposição dos coqueiros na orla (muitos sendo derrubados paulatinamente pela maré alta), os recifes de corais, rochedos e a água azul celeste e transparente do Atlântico são características marcantes. Em toda a península esses elementos são os mesmos, o que pode ser conferido do alto de alguns morros mais afastados da areia. Verdadeiros mirantes naturais, deles se observa também grandes lagoas de água doce e um pequeno farol de navegação.

Morro do Farol

Fim de tarde em Taipus de Fora

Praia de Belmonte
Dia de jogo do Brasil é sinônimo de praia completamente deserta. Some esse fato à baixa densidade demográfica de Taipus de Fora, bem como de toda a Península de Maraú, e terás um ode à tranquilidade. Buscamos sempre isso em nossas viagens. Toda essa misantropia, entretanto, vai na contramão do que nos propuséramos quando da confecção de uma rota que abrangesse o Vale do Jequitinhonha. Procuraríamos o contato com os sertanistas, visando ter conhecimento de suas dificuldades. Isso, de alguma forma, nos motivou a partir logo pela manhã, no dia 5, rumo à foz do rio Jequitinhonha, em Belmonte, Bahia. Não era nossa intenção, a priori, percorrer toda a margem do rio, mas nossas divagações de certa forma nos levaram a isso. Para situar o leitor, entende-se como Vale do Jequitinhonha os municípios mineiros da bacia do rio Jequitinhonha. É uma classificação geográfica e administrativa. A parte baiana entrecortada pelo rio é, em sua grande parte, uma planície, já que se encontra próxima ao mar. Por ser curta, pensamos em transformar a incursão em uma jornada de conhecimento não só do Vale do Jequitinhonha, mas do próprio rio Jequitinhonha, sobre o qual daremos mais dados no transcorrer do relato. Com mais essa mudança de planos em mente, deixamos Taipus de Fora e retornamos para o continente. Seguimos pela “transoceânica” baiana até Ilhéus onde, por ora, dávamos adeus ao mar. Subimos para o oeste até Itabuna e acessamos a BR-101. Sempre sentido sul, seguimos até Itapebi, onde vimos o rio pela primeira vez. Numa guinada ao leste, reencontramos o Atlântico em Belmonte. Os anfitriões foram um mar revolto e uma praia de areias negras. Foram rodados 430km desde a Península de Maraú.
Foz do rio Jequitinhonha
A noite foi longa em Belmonte. Um apagão elétrico de três horas deixou a cidade baiana de 20 mil habitantes na penumbra. No dia seguinte, 06 de julho, conversamos com alguns moradores e os mesmos afirmaram ser esse um fato trivial. “E o engraçado é que construíram uma hidrelétrica a poucos quilômetros rio acima”, frisou uma comerciante. Passaríamos por ela, Rodrigo e eu, mas nesse momento era peremptório registrar a foz do Jequitinhonha. Para tal, dirigimo-nos ao manguezal no limite nordeste do território belmontense. É lá que o rio, abrindo-se em dois e formando uma ilhota, um pseudo delta, encontra o Oceano Atlântico. Barrento, largo, é em seus últimos metros tão suscetível às marés quanto o próprio mar. O altímetro marcava 0 metros de altitude. Iniciaríamos a peleja a partir das sombras de altos coqueiros, uns semiderrubados pela ímpeto das águas, testemunhas vivas – ou semivivas – do término de um glorioso caminho de quase 1100km desde Serro, Minas Gerais. Esse caminho pretendíamos percorrer, sim, mas no sentido inverso ao de seu curso. Por vias terrestres obviamente em alguns momentos o perderíamos de vista, mas procuraríamos nos manter o mais próximo possível do Jequitinhonha, a exemplo do que foi eu fizera com o rio Itabapoana alguns anos atrás, entre o Espírito Santo e o Rio de Janeiro (link).



Últimos metros do Jequitinhonha a caminho do mar

Adeus, Belmonte
Um último olhar ao rio em solo belmontense: barcos pesqueiros atracados e barqueiros oferecendo o transporte de nossas motos para Canavieiras, cidade baiana ao norte de Belmonte, mas sem ligação rodoviária. “Não, obrigado. Vamos tocar rio acima. Onde podemos encher o tanque”? Só risadas. Era domingo. O único posto da cidade, ao relento, jazia inoperante. Com o que tínhamos, deixamos a cidade pela mesma estrada pela qual chegáramos, a BA-275. O Jequitinhonha estava ao norte, a talvez 6km de distância, mas não haviam estradas próximas a ele nesse seu trecho de planície. Um pouco antes de Barrolândia, um distrito de Belmonte, localizamos uma estrada que nos aproximou, mas cobrando um preço caro: barro, buracos e poças com dezenas de metros de diâmetro. Por fim calhamos em Barrolândia, onde encontramos um posto aberto, e seguimos novamente pela BA-275 que, a partir do entroncamento com a BA-683, deixou de ser asfaltada. Por terra batida alcançamos Itapebi, cidadezinha com 11 mil habitantes a 60m de altitude. Na Cidade Velha, bairro com predominância de pescadores encostado ao rio, se vê, a partir das escadarias da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, os enormes bancos de areia e sedimentos do leito do Jequitinhonha. O rio, aqui, é atravessável a pé, sem o risco de se molhar os joelhos. “Essa barragem aí pra cima acabou com tudo”, vocalizou um pescador subindo o morro a caminho de casa. Contou-nos que, após a construção de uma hidrelétrica, “a água raleou, e se não tem água não tem peixe”.



Cidade Velha, em Itapebi

Rumo à barragem de Itapebi
Aquela pobreza e miséria tão enfatizadas nos livros concernentes ao Vale do Jequitinhonha me pareciam verossímeis na Cidade Velha. Em São Paulo, por exemplo, estamos habituados a contrastes econômicos: mansões, habitações de classe média e barracos coexistindo no mesmo ambiente urbano. Aqui, entretanto, não existe isso. São todos lares humildes. De fato, sequer adentráramos o Vale propriamente dito, já que ainda estávamos na Bahia, e testemunhávamos o descaso com esse povo. Dispostos a registrar isso, seguimos acompanhando o rio, calhando na origem dos problemas de Itapebi: a Usina Hidrelétrica de Itapebi, uma das duas barragens no curso do Jequitinhonha. Finalizada e posta em operação em 2003, é a coqueluche da pesca no sul baiano e, como descobriríamos mais tarde, dos garimpeiros e pescadores do nordeste mineiro. Segundo dados da empresa que administra a usina, a Itapebi Geração de Energia, a energia gerada pelo rio Jequitinhonha beneficia mais de 1,5 milhão de pessoas. Não aponta em seu site, contudo, quais são as cidades agraciadas. Será que Belmonte, a 100km dali, é uma delas? Se é, não estão fazendo um trabalho eficiente. Há dúvidas de que a própria cidade de Itapebi seja beneficiada. Tomara que sim, senão o povo é duplamente afanado: nos peixes e na energia gerada a partir da água que passa pelo próprio quintal.

Hidrelétrica de Itapebi

Lago de Itapebi
 
Salto da Divisa
Da Usina de Itapebi retomamos nosso caminho para o oeste. Infelizmente não há estradas que bordejam o reservatório. Com o aumento do nível das águas a montante da barragem (fenômeno oposto do que ocorre a jusante), muitas pequenas propriedades perderam os limites de seus territórios, que faziam fundo com o leito natural do Jequitinhonha. Consequentemente muitas estradas rurais desapareceram, bem como cachoeiras, grutas e áreas de garimpo. Nossa alternativa foi rumar para Salto da Divisa, próxima cidade beiradeante ao rio, pela BA-275, totalmente asfaltada. Foram 60km no total, os últimos no Estado baiano. Já em Salto da Divisa, município mineiro com 8 mil habitantes, começaríamos a faina pelo verdadeiro Vale do Jequitinhonha, mais precisamente pelo Baixo Jequitinhonha, subdivisão geográfica que compreende as cidades do extremo nordeste do Estado de Minas Gerais banhadas pelo rio e por sua bacia, consideradas de baixa altitude. Estávamos a 120 metros acima do nível do mar, à margem dos primeiros tentáculos dentre inúmeros no decorrer dos 42km do Lago de Itapebi em seu polêmico caminho até a hidrelétrica. Digo polêmico porque muitos sitiantes afirmam não ter recebido indenizações pela perda de terras quando da inundação do reservatório, além da qualidade da água represada ter caído drasticamente em relação ao leito original, prejudicando lavadeiras e pescadores. São, infelizmente, problemas recorrentes no Brasil.


Pelo Vale do Jequitinhonha

Jacinto
De Salto da Divisa em diante (sempre lembrando que estamos no contra curso), o Jequitinhonha dá uma guinada de 12km para o sul. Aqui já não há asfalto. A estrada é de terra batida, poeirenta, e ao seu redor quase não se vê moradias. Em compensação, acompanha “ombro a ombro” o rio, que nessa altura revela pequenas ilhotas (bancos de areia com vegetação arbustiva) e uma pobre mata ciliar. O assoreamento é uma realidade. O solo pobre e seco dessa região de caatinga e cerrado não é, por natureza, muito prolífero. O desmatamento só vem a agravar esse processo erosivo, jogando grandes quantidades de sedimentos no leito do Jequitinhonha. Está aí mais um dos incontáveis problemas recorrentes do Brasil, desculpando-me logo pela redundância. Passados os 12km em direção ao sul, o curso retorna para o oeste. Percorre-se então mais 40km de estrada de chão até Jacinto, município um pouco maior que Salto da Divisa. Com 12 mil habitantes e a 180m de altitude, nele se encontra a primeira (ou última) balsa do rio, responsável pelo transporte de veículos para a margem norte, onde há uma rodovia que desemboca em Jordânia, divisa com a Bahia. Por ser uma área de muito tráfego, inclusive de caminhões de médio porte, não é um dos pontos mais glamourosos do Baixo Jequitinhonha. Na saída da cidade contempla-se, em contrapartida, uma das grandes beleza cênicas de todo o vale: a Serra da Cangalha, pertencente ao município de Rubim, distante cerca de 30km dali, mas com seus cumes arrendondados bem visíveis.

Jequitinhonha em Jacinto

Serra da Cangalha

Almenara
Para derrocar os 52km que separam Jacinto de Almenara, próxima cidade do Vale do Jequitinhonha em nossa rota, optamos por utilizar as estradas da margem sul do rio. Segundo nossos mapas, se o atravessássemos de balsa para a margem norte também chegaríamos incontestes ao mesmo destino, mas ao preço de nos apartarmos em demasia do Jequitinhonha. Dessa forma, tocamos pela BR-367, rio acima, e intercalando trechos de terra e asfalto calhamos em Almenara, a maior cidade que havíamos visitado até aquele momento. Com população de 40 mil habitantes e a uma média de 190m de altitude, é o município em que o rio Jequitinhonha exibe seu azul mais vívido. O leito é, por sua vez, visivelmente menos acidentado. Há apenas uma rocha ou outra despontando. Ilhotas se contam nos dedos de uma mão. Prosseguindo, vencemos rapidamente mais 50km asfaltados até o local que apanhou para si o nome do rio, Jequitinhonha. Nessa cidade de pouco mais de 20 mil habitantes pernoitamos pela primeira vez no vale. A quase 230m de altitude, seria também nosso último contato com o chamado Baixo Jequitinhonha, uma região não muito rica economicamente, mas onde não presenciamos toda aquela miséria enfatizada pelos livros escolares de nossa adolescência. É, em suma, uma área em lento desenvolvimento, permeada por um povo que se felicita com pequenas, mas constantes melhorias. A ponte construída recentemente, ligando as margens norte e sul do rio, por exemplo, é motivo de grande orgulho e esperança para os jequitinhonhenses.

Jequitinhonha em Almenara

Jequitinhonha em Jequitinhonha

Entre Jequitinhonha e Itaobim
Alvoreceu o 07 de julho e, logo cedo, arrostamos a sinuosa BR-367 novamente. Inteiramente asfaltada no trecho compreendido entre Jequitinhonha e Itaobim, revela chapadas e serras graníticas imponentes, como a do Bom Jardim e a Taquaril. A vegetação predominante é o cerrado. Pastagens fazem fundo com o rio, deixando-o desguarnecido de sua mata ciliar, com exceção de um trecho próximo a São Pedro de Jequitinhonha, vila da cidade de Jequitinhonha. Mesmo esse trecho é ínfimo, praticamente inefetivo na proteção do rio, ainda entremeado por extensos bancos de areia com arbustos. Setenta quilômetros depois calhávamos em Itaobim, a cidade mais assolada pela seca dentre todas as integrantes do Vale do Jequitinhonha. Rodrigo tem suas raízes maternas na zona rural desse município. Fotografamos rapidamente o rio em sua área urbana e aceleramos para o alto da Chapada Boa Vista, por uma estrada de terra subindo pela caatinga bravia de um dos lugares mais tórridos de todo o Brasil. No alto da serra localizamos a casinha de adobe da dona Dejanira, vó de Rodrigo, uma senhora de 85 anos que tem se recusado, anos após ano, a abandonar esse lugar olvidado pelas águas do céu. Em volta de seu quintal o cenário é um misto de assombro – regatos totalmente secos, vegetais de pequeno porte desfolhados, ausência de verde e solo esturricado, desidratado até o imo pelo sol escaldante – e resiliência – o Jequitinhonha correndo no fundo do vale, o forno de barro e a lenha ociosa aguardando a feitura da próxima refeição e a cisterna instalada pelo governo para suprir a necessidade básica de água potável.


Jequitinhonha em Itaobim

Sítio de Dona Dejanira
Acreditava eu que minhas andanças pelo nordeste me dariam uma ideia, mesmo que ínfima, do que representa o semiárido brasileiro, o grande fomentador da seca e o trazedor de tanta escassez nas pequenas lavouras. Grande equívoco. Foi aqui no sudeste, no norte de Minas Gerais, mais precisamente no Médio Jequitinhonha, que testemunhei a ausência de cor mais marcante de toda a minha vida. Vale lembrar, contudo, que no período de chuvas, entre outubro e março, o verde volta a aparecer e a vida a ulular, ao contrário do que muita gente pensa. A estiagem é uma situação temporária e esperada, o que obriga os sitiantes do Vale do Jequitinhonha a planejar os anos com boa antecedência. É a forma que a vida humana encontrou de permanecer aqui, em uma terra tão fustigada pelo clima. Dessa e de outras cidades saíram, no começo e em meados do século passado, muita gente à procura de melhores condições de trabalho em São Paulo e Belo Horizonte, mas hoje a tendência parece ser a de querer ficar. Dona Dejanira, por exemplo, vive relativamente próxima à cidade, recebe aposentadoria, tem água e alimento. Considera ultrajante pedidos para que vá morar no centro urbano, onde teoricamente a existência seria mais cômoda. Sempre morou no “mato”. Não se arriscaria, a essa altura da vida, a tentar a sorte entre casas de alvenaria e comércios. Em síntese, o espírito de hoje dos rurícolas dessa região é análogo ao de Dona Dejanira: quando se pode, se planta; e quando se colhe, se estoca para quando não se pode plantar. E assim a vida segue no Vale do Jequitinhonha.


Seca e resiliência na caatinga de Itaobim

Itinga
Do sítio de Dona Dejanira a Itinga, próxima cidade à beira do Jequitinhonha, foram 35km pelo asfalto da já intima BR-367. Com 15 mil habitantes e a uma altitude de 200 metros, tem o centro urbano todo emoldurado pela Serra da Tabatinga. Seus dados econômico-sociais não são tão requintados, contudo. É a cidade mais pobre de todo o Vale do Jequitinhonha. Foi um dos berços do Fome Zero e tem, hoje, mais de 2 mil famílias sobrevivendo com o auxílio Bolsa Família. Enquanto fotografávamos sobre a ponte, promessa cumprida por Lula quando em campanha por aqui, onde tudo é tão plácido que parece macular os problemas, decidimos seguir viagem pela margem norte do rio que, pelos mapas, parecia dispor de estradas mais rentes. Como bônus, eram todas de terra. Areia, melhor dizendo, o que nos tomou muito tempo. O cenário, a exemplo de Itaobim, era desolador: cerrado esporádico (lutando para manter seu verde), caatinga bravia (totalmente desfolhada), sol causticante. Quarenta e cinco quilômetros, nessa condições, furtaram duas horas do dia. Como se não bastasse essa lentidão, apeamos à beira do Jequitinhonha em uma praia próxima à afluência do rio Araçuaí, local onde supostamente deveria haver uma balsa para nos levar de volta à margem direita. Supostamente. O que vimos foi uma corda estendida de uma margem à outra, duas canoas na margem oposta e um outro motociclista que, também decidido a atravessar, derrocou a nado os 80m de largura do leito e trouxe, remando, uma das canoas para o lado norte. A epopeia de erguer, acomodar e equilibrar moto por moto, atravessando uma de cada vez, começou aí. A necessidade de ir sobre elas, com os pés apoiando nas laterais da rústica embarcação, foi a tarefa mais perigosa e dramática dessa incursão e possivelmente de minha vida. Ao descer as motos na margem sul, um pequeno e lamacento barranco ainda tinha que ser transposto. Estava eu tão tenso que tombei a moto. Sem problemas. Nenhum dano permanente.

Zona rural de Itinga


"Balsa" para atravessar o Jequitinhonha

Itira
Subindo o barranco topamos com Itira, antiga Barra do Pontal, distrito e berço do município de Araçuaí. Sua igrejinha antiga, de feições do século XIX, rememora seu poder histórico. Três quilômetros de estrada de terra bem batida nos colocaram de volta no asfalto, BR-342, e por essa via chegamos a Coronel Murta 26km depois. Da ponte sobre o Jequitinhonha se observa o Morro da Cascalheira a noroeste, imponente. Pouco permanecemos nessa cidade de 10 mil habitantes. Com uma altitude de 320 metros, é o último (ou primeiro) reduto do Médio Jequitinhonha. Dele adiante, seguindo no curso contrário ao rio, derrocamos um desnível de 400 metros, subindo a Chapada São Domingos e o Chapadão Virgem da Lapa. A ascendência é lenta, cadenciada por curvas sinuosas, puaca, areia e muita poeira. Já na região considerada Alto Jequitinhonha, com altitudes acima dos 700m, calhamos em Lelivéldia, uma vila do município de Berilo. Descemos a Chapada do Lamarão sentido norte e, serpenteando por um declive agudo, topamos com os portões da Usina Hidrelétrica Juscelino Kubitschek, ou Usina de Irapé. Posta em funcionamento em 2006, detém o título de maior barragem do Brasil com 208 metros de altura. Juntamente com sua parceira de rio, a Usina de Itapebi, prometeu trazer desenvolvimento, mas veio de mãos dadas com os prolemas de uma obra desse porte. Os moradores a montante da barragem reclamam da diminuição da piscosidade do rio, bem como o desaparecimento de algumas praias e consequentemente a dispersão de turistas.

Jequitinhonha em Coronel Murta

Vale a jusante da Barragem de Irapé

Barragem de Irapé

Cai a noite em Irapé
Deixamos Irapé (caminho do mel, em tupi) sabendo que o Jequitinhonha é uma exceção à regra. Para um curso de quase 1100km, duas barragens são irrisórias, principalmente no modelo paulista de exploração dos recursos hídricos. O rio Tietê, por exemplo, corta todo o Estado de São Paulo e, em seus 1010km de extensão, comporta 6 hidrelétricas. Logicamente o Jequitinhonha, por ter parte de sua bacia no semiárido, tem um menor volume d'água, mas as serras que o envolvem são intrincadas, o que poderia despertar um grande interesse para o setor energético. Por sorte nada tem sido feito nesse sentido, preservando a maior parte do curso natural do rio. Com esse pensamento subimos a Chapada do Lamarão, observando as águas hirtas do Lago de Irapê lá embaixo, e chegamos a Igacatú, um distrito de José Gonçalves de Minas, onde não encontramos um local para pernoitar. Na própria José Gonçalves de Minas, distante 13km a sudeste, pudemos descansar. No outro dia augurávamos conhecer a principal responsável pelo povoamento (e hoje da degradação) do Vale do Jequitinhonha: a mineração.

Lago de Irapé

Casebre na Chapada do Lamarão

Garimpo ilegal de Areinha
Dia 08 de julho. Saindo de José Gonçalves de Minas, no vale do Ribeirão Gangorra, subimos de volta para a Chapada do Lamarão. Sempre numa altitude superior a 900m, percorremos sem muitas emoções vários quilômetros na monótona MG-677, asfaltada. O rio passa a oeste, longe, inalcançável por estradas devido ao seu acidentado vale. Após Acauã, um povoado de Leme do Prado, reencontramos a BR-367. Fomos parar em Senador Mourão. Lá localizamos uma estrada de terra e rochas, entre o cerrado, descendo para um meandro do Jequitinhonha. A mesma se findou em um sítio. O proprietário permitiu que adentrássemos sua propriedade, além de nos mostrar uma picada no meio do milharal que nos desembocou em uma estrada beiradeante o rio. Daí pra cima só tivemos o trabalho de acompanhar o Jequitinhonha novamente, por terra e areia. E quão abobada foi nossa reação, à medida que subíamos no contracurso, de vê-lo cada vez mais marrom, em alguns pontos vermelho. O motivo foi descoberto poucos depois: o garimpo. Diga-se de passagem, ilegal. Conhecido como Garimpo de Areinha, é uma vila clandestina composta por pessoas que tentam a sorte com a extração de diamantes e ouro do leito do Jequitinhonha. Visando esse fim, revolvem o fundo do rio, perfuram poços enormes, desviam o curso, amontoam sedimentos nas margens. Destroem-no, por assim dizer. A cor avermelhada de suas águas é devido aos metais utilizados no processo. Não vou prover maiores informações sobre o caso porque apenas passamos pelo local, não conhecendo sua realidade profundamente. Indico, todavia, uma matéria no site Aconteceu no Vale (http://aconteceunovale.com.br/portal/?p=25977), que demonstra, dentre outras coisas, a relação entre a criminalidade em Diamantina e o advento do Garimpo de Areinha. É uma leitura bem informativa para os interessados.



A deformação do Jequitinhonha pelo garimpo

Mendanha
Passando pelo Garimpo de Areinha, chegamos a Mendanha, distrito de Diamantina. Não foi nada fácil. Quarenta quilômetros de areia, olhares desconfiados de garimpeiros e fotos tiradas na surdina desde o reencontro com o rio. No pequeno povoado diamantino tudo voltou à paz. Respira-se um ar colonial, emulsificado pelas edificações do século XVIII, todas construídas com os lucros da extração do diamante. Hoje, nesse trecho, não há garimpo, e o rio, a menos de 200km de sua nascente, corre plácido, transparente sob a ponte de madeira somente atravessável por pedestres. Desse pacato povoado para Diamantina foram mais 28km por asfalto pela cinzenta Serra dos Cristais, uma das subdivisões da Serra do Espinhaço. A altitude pairava na centena dos 1300 metros. Já em Diamantina, procuramos uma oficina para trocarmos o óleo do motor das motos, a essa altura já praticamente recobertas pelo pó do Baixo, Médio e Alto Jequitinhonha. A de Rodrigo estava com o escapamento dependurado. A trepidação das estradas de chão soltou todos os parafusos que o sustentavam. Por fim, deixamos de visitar o Centro Histórico do Antigo Arraial do Tejuco, fundado em 1713 e que teve forte ascensão com a descoberta de diamantes a partir de 1729. Já o visitei em outra oportunidade (link). Como nosso escopo, nessa viagem, era outro, nos contentamos com o registro de uma igreja mais moderna e afastada do centro, a de São Francisco de Assis. Esse dia, para nós, ficará na história como o dia em que poderíamos ter sido baleados em um garimpo ilegal. Para o resto do Brasil, o dia em que a seleção amargou 7 gols da Alemanha.

Jequitinhonha em Mendanha

Diamantina

Caminho dos Diamantes
Amanheceu o dia 9, o último no Vale do Jequitinhonha. O trecho derradeiro, em busca da nascente, seria pela Estrada Real. Com alguns trechos em obras (brevemente será toda asfaltada, para a tristeza dos amantes de estradas de terra e para a alegria dos moradores que utilizam constantemente essa via), fez-me relembrar uma viagem anterior pelo Caminho dos Diamantes e oportunizou que parássemos em locais que passaram despercebidos na outra ocasião, como uma pequena cachoeira e um casebre colonial totalmente abandonado no alto da Serra do Espinhaço. Contornamos maciços rochosos e atravessamos Val, onde há uma ponte sobre o Jequitinhonha construída no século XIX. Aqui o rio não tem mais que alguns metros de largura, correndo por entre um cânion que muito lembra o Vale da Lua, na Chapada dos Veadeiros, Goiás (link). Prosseguindo, passamos por São Gonçalo do Rio das Pedras e Milho Verde, todos distritos colonias de Serro. Após 40km de terra descíamos a Serra da Boa Vista e, por asfalto, calhávamos em Três Barras. Foi a penúltima vista do curso do rio, aqui totalmente desfigurado por passar sob a rodovia e estar em um ambiente urbano, onde possivelmente esgoto é despejado. Não tem mais que 3 metros de largura.

Cachoeira na Estrada Real

Serra do Espinhaço

Ponte do século XIX sobre o Jequitinhonha em Val

Jequitinhonha em Três Barras
Restavam 7km, em linha reta, para a nascente do Jequitinhonha. Devido à geografia local, entretanto, tivemos que dar uma grande volta pelo asfalto da MG-900 e da BR-259, passando pelo acesso a Serro. Nessa última rodovia, equidistante de Serro e Presidente Kubitschek, em uma das muitas curvas da Serra do Espinhaço, uma placa demarcava o fim da nossa aventura com os simples dizeres NASCENTE DO RIO JEQUITINHONHA. Deixamos as motos no acostamento, descemos por uma picada no cerrado e localizamos o regato onde a história desse grande rio brasileiro, tão judiado, se reinicia a todo instante. A 1200m de altitude, uma dismórfica e pouco profunda poça d'água se prolonga e corre livre por alguns metros, quando é então encarcerada por um túnel sob o aterramento da BR-259. Liberta novamente, corre para Diamantina, para o garimpo ilegal, para o esgoto, para o vale ora paupérrimo ora em desenvolvimento. Produz energia, produz esperança. Mais que um perfunctório curso de água, é o símbolo de um dos locais mais icônicos de todo o Brasil, onde há uma grande carência de recursos mas, concomitantemente, um esforço no sentido de vencer as adversidades crônicas ambientais, principalmente nos médio e baixo Jequitinhonha. Em suma, é o totem líquido da resiliência de um povo sofrido, que não abandona suas raízes e que, como o solo da caatinga, chega a esturricar, mas em nenhum momento a atingir o completo estado pueril.



Nascente do Jequitinhonha

O regresso
Rodrigo e eu cessávamos uma aventura, mas não a viagem. Com algum tempo até o fim da tarde, esticamos até Curvelo, onde pernoitamos. No outro dia, o décimo de julho, eu partia de volta para São Paulo, após 26 dias na estrada, enquanto Rodrigo sumia para as bandas de Goiás. Enquanto atravessava a grande Belo Horizonte, recordava-me de que esta fora uma jornada peculiar, uma realidade de aproximadamente um mês que raramente se pode experienciar em uma vida inteira. Foram 2600km desde Itabaiana, no agreste sergipano, e quase 11 mil km no total, contando a volta pelo sertão nordestino. A viagem mais longa de minha vida até então, certamente. Tombos, medos, desafios, todos foram superados, elementos formadores de uma experiência que ninguém jamais poderá extrair de mim. Gosto de pensar também que essa foi uma incursão pioneira, visto que não há registros de nenhum outro motociclista que tenha percorrido toda a extensão do rio Jequitinhonha. Mais um motivo para Rodrigo e eu nos orgulharmos.
Um dia me disseram que as viagens se prolongam quando o ímpeto do viajante também é elástico, maleável. Olvidaram-se de apontar que, embora isso tenha um fundo de verdade, os dias são finitos. Há de se trabalhar, para um melhor proveito da vida, que essa finitude seja completada com experiências também finitas em tempo, mas infinitas em benfeitorias à alma do viajante.


Mais fotos aqui.

E abaixo, um blues para o vale mais famoso do Brasil, seja por desgraças seja por virtudes.