terça-feira, 28 de junho de 2011

Lago de Furnas – de 23 a 26 de junho de 2011


Caminhavam sobre a relva. Eu, absorto em meus pensamentos, recusava-me a tal. Durante longos anos aguardei pelo ensejo de andar sobre estradas pavimentadas, aquelas mesmas que, diziam, levariam a humanidade ao progresso. Hoje, com um motor entre meu corpo e o solo, já não diferencio superfícies. Sobre a relva, o asfalto ou a terra eu vago, e esse vagar, lenta e continuamente, molda o meu destino. Sou um homem de vários povos, relevos e climas. Em síntese, sou aquele que enxerga além das linhas imaginárias dos marcos territoriais. Sou aquele que, como “el chancho”, idealiza um mundo só.
Cachoeira de Emas
Dias antes de quinta-feira, dia 23, recebi um convite do meu irmão Fernando, e também de sua namorada Rose, para passar uns dias em Itamogi/MG. Prontamente o aceitei. Convidei para acompanhar-nos Anna Carolina Oliveira, apelidada de "Bebê", que sem delongas decidiu se unir a nós para mais uma aventura sobre duas rodas. Com certeza estaríamos fadados a pilotar por 250km de estradas monótonas caso decidíssemos utilizar as rodovias convencionais. Porém, como aprendizes aplicados da arte de estudar mapas rodoviários pouco ortodoxos, tratamos de traçar, logicamente, uma rota por estradas secundárias e vicinais que parecia prometer belas paisagens. Portanto, todos os lugares pelos quais transitamos, garbosos ou não, não deixam de ser recônditos dignos de uma visita mais minuciosa num futuro próximo.
Santo Antônio da Alegria
Deixamos Americana pela Via Anhanguera e viramos à direita na derradeira entrada de Pirassununga. Poucos quilômetros depois e estávamos em Cachoeira de Emas, distrito que é “cortado” pelo rio Mogi e famoso pelos restaurantes especializados em peixes. A neblina densa deu um efeito estranho às fotografias, mas uma xícara de café animou os espíritos e prosseguimos sem pressa, como de costume. Passamos pela entrada de Santa Cruz das Palmeiras e pendemos para Tambaú, chegando poucos minutos depois à Santa Rosa do Viterbo. Cajuru foi a próxima parada, na qual abastecemos as “poderosas” para alcançarmos Cássia dos Coqueiros, cidade minúscula e aparentemente bem devota a alguma Nossa Senhora, dada a pompa de seu portal. Uma estrada absolutamente bela, daquelas que se deve apreciar bem lentamente, nos levou à Santo Antônio da Alegria, cidade protegida pela Serra do Baú, três monumentais montanhas que preenchem todos os cantos dos olhos. Quilômetros depois e já estávamos em Minas Gerais. Itamogi, a primeira cidade do Estado por esta via, recepcionou-nos calmamente às 13h. Era chegada a hora de acomodarmos a bagagem, almoçarmos e, o mais importante, caminharmos. Conhecer é preciso.

Serra do Baú

Itamogi
Itamogi tem uma população de aproximadamente 12 mil habitantes. Em seus entornos prevalece o cultivo do café. A grafia correta seria Itamoji, por ser uma palavra de origem indígena, mas nas placas dos automóveis o G é mantido. Mesmo na antiga estação ferroviária há evidências de que antigamente o J era empregado. Controvérsias à parte, desbravamos a praça central e seus arredores, além da já mencionada estação. Em um fim de rua, que pode passar despercebido por muitos moradores, paramos para observar o pôr-do-sol. Na caminhada noturna retornamos à praça e fotografamos a bem iluminada igreja. Cansados, resolvemos dormir, pois eu e “Bebê” já havíamos decidido: partiríamos dali na manhã seguinte em direção à Furnas, dada a proximidade entre os locais.
Rio Grande
Na manhã de 24 de junho nos despedimos de Fernando e Rose e partimos de Itamogi. Em São Sebastião do Paraíso adentramos a MG-050 e pagamos o preço por isso: três pedágios. Passamos por Itaú de Minas e chegamos à Passos. Sabendo que o curso do Rio Grande adorna seus limites, entre as represas de Peixoto e Furnas, optei por atravessá-lo, por mera curiosidade de minha parte. É a terceira vez que o encontro. Meu relacionamento com esse rio é cármico. Por um momento fiquei em dúvida: ali começava a Serra da Canastra. Vou para Furnas ou sigo em frente? Mantendo o plano original, voltamos pela ponte e entramos numa estrada de terra em meio aos canaviais para novamente cair na MG-050. Em poucos minutos estávamos nas corredeiras de Furnas contemplando a grandiloquente hidrelétrica.

As corredeiras de Furnas

Hidrelétrica de Furnas
A vista impressiona. A Hidrelétrica de Furnas, que começou a ser construída em 1958, foi idealizada no curso médio do Rio Grande para suprir as demandas energéticas do país na época. Em 1963 foi posta para funcionar. Seu reservatório de água, hoje conhecido como Lago de Furnas, em referência à empresa responsável pela obra, é quatro vezes maior que a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, ocupando 1440km² de solo mineiro com águas represadas dos rios Grande e Sapucaí. Tudo isso lhe rendeu a denominação Mar de Minas e a figuração entre os maiores lagos artificiais do mundo. Fotografamos a obra de todos os ângulos possíveis, inclusive os cânions e uma pequena cachoeira ao lado das imensas comportas.
Rampa de voo em Pimenta
MG-050 novamente. Daqui em diante tem-se a impressão de pilotar à beira-mar, como na BR-101. Em Capitólio, primeira cidade após a hidrelétrica, procuramos um hotel para nos hospedarmos, mas as tarifas exorbitantes e a falta de vagas nos obrigou a seguir até Pimenta, menos badalada e com preços mais acessíveis. A cidade, bem ao norte de Furnas, oferece altas serras e cachoeiras. Visitamos uma montanha que serve de rampa para voo livre e de onde se tem uma vista privilegiada da região. O lago nesta cidade não é tão vistoso quanto em Capitólio, mas no sábado, quando nos dirigíamos à Guapé por uma estrada de terra de 50km, conhecemos Santo Hilário, onde as águas mais uma vez lembraram o mar.

Santo Hilário

Ponte entre Pimenta e Guapé
A estrada Pimenta-Guapé é uma ótima pedida para quem gosta de aves. São várias espécies de falconídeos, corujas e pequenos pássaros aterrissando nas copas das árvores a todo instante. A mata em alguns momentos é bem fechada, e em outros, nas entradas das fazendas, nem tanto. A ponte é uma atração à parte. A água aqui chega a ser de um verde translúcido único. É uma das poucas estradas de Furnas que não necessita de balsa para travessias. Levamos aproximadamente duas horas para vencê-la por completo, momento em que chegamos a uma outra estrada, esta asfaltada, que nos levou a Guapé, cidade que, na época da inundação, em 1963, foi praticamente toda submersa, sendo reconstruída mais tarde em sua parte mais alta.
Cachoeira do Paredão
O Parque Ecológico do Paredão, em Guapé, foi o ponto alto da viagem. Em meio a dois paredões, várias quedas d'água fazem caminho. O volume das cascatas impressiona, bem como a transparência da água nas piscinas naturais que se formam. Achei curioso o fato de gramíneas florescerem nos lugares onde a água da cachoeira escorre com menor fluxo. É um fenômeno que, até hoje, testemunhei apenas neste local. Estas plantas crescem praticamente na horizontal, brotando da verticalidade das pedras que servem de escora para a água da cascata. Outro fato curioso: enquanto eu fotografava a Cachoeira do Paredão, sobre uma pedra, visualizei uma aranha armadeira a poucos centímetros do meu pé. Abaixei-me para fotografar o belo espécime, mas não fui sutil o bastante. O aracnídeo debandou, assustado, e encontrou guarida em meio às rochas.

Parque Ecológico do Paredão

Girassóis e Furnas
Deixamos Guapé por volta das 14h, não sem antes conhecer a Cachoeira do Macuco. Voltamos um tanto e tomamos direção à Ilicínea sem saber o que lá fazer. Paramos em um posto de combustível para estudar o mapa e recebemos uma dica do dono do restaurante anexo. Ele nos exortou a seguir à Carmo do Rio Claro, cidade, segundo ele, com bons atrativos e hotéis baratos (no fim das contas ele tinha razão). Seguindo conselho alheio, o que é bem raro, partimos para Carmo do Rio Claro, adentrando mais uma estrada de terra de 50km. As obras nesta rodovia, que em breve será pavimentada, tornaram a travessia lenta e monótona, mas em alguns momentos fomos agraciados com belas paisagens e com a passagem pela Ponte Torta. Após duas horas estávamos em Carmo do Rio Claro, não sem antes pararmos em uma plantação de girassóis à beira da estrada.
Carmo do Rio Claro
Carmo do Rio Claro não é uma cidade imponente. Suas construções são modestas. Não se encontram aqui grandes prédios ou mansões suntuosas. Acredito ter gostado muito de lá devido a esses fatores. Logo ao chegarmos nos impressionamos com a Serra da Tormenta, que parece proteger a cidade com sua marcante presença no horizonte. Subimos seus 1287m até certo ponto, pois o pneu dianteiro da moto perdia contato com o solo ocasionalmente, dada a inclinação da serra. Temeroso, optei por deixar “Bebê” e seguir sozinho até o topo. Ela chegou a pé algum tempo depois, mas foi recompensada com a visão: clarão vermelho, a cidade iluminada e a represa de Furnas ao fundo. Um cenário perfeito para o término de um dia bem empoeirado.

O último pôr-do-sol antes do regresso, na Serra da Tormenta

Hasta Luego, Furnas
No domingo, após dormirmos em uma pousada barata, principiamos o regressar. Passamos por Alterosa e Areado, cidades que eu sempre tive ganas de conhecer, mas a neblina densa me negou esse direito. Fizemos uma rápida parada em Muzambinho, prosseguindo depois por Guaxupé. Já no estado de São Paulo cruzamos Tapiratiba e São José do Rio Pardo. Daí até Mogi Mirim o caminho já era conhecido, transcorrendo sem grandes surpresas. Chegamos em casa por volta das 13:30h, pouco antes de a chuva começar a cair em Americana. Parece que, dessa vez, e depois de 1300km rodados, demos sorte.
Que eu tenha vontade de ir para lá ou para cá. Que eu faça uso da jactância benigna que falta em muita gente. Bato no peito e me orgulho de ser assim: um espírito liberto. “Amanhã... ou depois... tanto faz... se depois for nunca mais”. O aqui, o presente, o agora, não há de ser – e não tem que ser – um degrau para se alcançar um patamar mais elevado. O liberalismo e seu filho pródigo, o capitalismo, nos ensinam a sempre conquistar algo mais, caso contrário seremos “ferozmente devorados” pelo sistema. Eu, em minhas errôneas e empíricas filosofias, prefiro, ao invés de crescer o tempo todo, apequenar-me, sentir-me um minúsculo inseto dentro desse mundo que, contraditoriamente, parece caber em mim. Reitero: sou uma marionete. Que o planeta azul mexa suas cordas e me leve para onde bem entender.


Mais fotos aqui.

E abaixo, um blues composto para Furnas, o Mar de Minas.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Pedra Bela e Toledo – de 11 a 13 de junho de 2011


Duas cidades, dois Estados e dois ambientes. Tinha tudo para ser uma só viagem, mas foram duas. Como corriqueiro, esqueceram de nos avisar que até mesmo as sensações sentidas em ambas seriam divergentes. Este é o grande prazer de quem viaja: sentir a mudança ora tênue, ora abissal, proporcionada por apenas alguns quilômetros de distância entre um local e outro. Amiúde quedamos estupefatos com nossas descobertas; e amiúde nos deixamos envolver pelos projéteis da disparidade cultural que crivam o peito aberto do indivíduo que resolve vagar sem compromisso ou preconceito pelo mundo afora.
Que faço aqui?
Eu, “Bebê” e “Poste” saímos de Americana exatamente às 13:30h de um 11 de junho atípico, levando conosco quatro rodas, dois motores, três almas e a ideia de percorrer uma rota nem um pouco ortodoxa. Um curto trecho na Anhanguera e pendemos para Cosmópolis, onde localizamos uma estrada de terra metros antes de uma pequena ponte que se eleva sobre o Rio Jaguari. Essa estrada em questão corta canaviais e termina na “cloaca” da cidade de Holambra, a Holanda brasileira. Um Cristo Redentor de grandes proporções, altivo e solitário, surpreendeu-nos em meio aos pastos secos dois quilômetros antes do término do trecho em terra. Perguntamo-nos o motivo de uma obra tão magnânima em terreno tão inóspito. Sem respostas, atravessamos Holambra, sempre fotografando, e chegamos a Santo Antônio de Posse, dirigindo-nos ulteriormente ao distrito de Arcadas e a Amparo, onde tomamos a primeira dose de cafeína da viagem. Subindo uma bela e sinuosa serra alcançamos Tuiuti, na qual embrenhamo-nos por mais uma estrada de terra que desembocou-nos em Pinhalzinho. Pouco mais de meia-hora foi suficiente para que o simples portal de Pedra Bela fosse avistado.
Pôr-do-sol no Morro da Pedra Grande
Logo ao passar o portal estacionamos as motocicletas. À esquerda já era possível avistar o Santuário do Morro da Pedra Grande, cartão-postal da cidade. O sol se punha rapidamente, visto que eram quase 17:20h. Decidimos incontinenti partir dali e subir o morro para apreciar o pôr-do-sol de uma posição mais elevada, o que deixaria o espetáculo bem mais interessante. Uma rampa íngreme teve que ser vencida pelos motores e, se não bastasse o esforço de nossas “poderosas”, ainda fomos obrigados a subir uma interminável escadaria para chegar ao topo do Morro da Pedra Grande, sobre o qual um pequeno Cristo, uma capela e uma grande cruz estão edificados. Em fadiga e sem fôlego, tudo o que pude balbuciar ao chegar ao topo foi: “se a fé não move montanhas, pelo menos constrói igrejas sobre elas”. Meus batimentos cardíacos foram voltando ao normal enquanto admirava o nosso astro-rei docilmente se despedindo de mais um dia.

Vista do fim de tarde do portal de Pedra Bela

Santuário do Morro da Pedra Grande
A história que envolve a construção do Santuário é cercada de quimeras. Diz-se que um fazendeiro pedrabelense acolheu uma criança órfã abandonada em Bragança Paulista e o criou como um legítimo filho. Antônio da Serra, como ficou conhecido, dizia ao pai adotivo que tinha visões de uma mulher linda, iluminada e perfumada, que volta e meia aparecia em seus sonhos e o incitava a construir um templo sobre a Pedra Grande em sua homenagem. O pai, Antônio da Serra, e mais alguns moradores que também acreditavam nas visões do menino, decidiram, então, levar a cabo essa empreitada, carregando vagarosamente todos os materiais necessários ao topo do morro de 50m de altura para que o santuário fosse construído.
Pedra Bela/SP
Com a noite já nos envolvendo, saímos à procura de um lugar para pernoitar. Pedra Bela é uma cidade com cerca de 6000 habitantes. Já foi distrito de Bragança Paulista, depois vila, e emancipou-se em 1964. Está situada na Serra da Mantiqueira, no nordeste do estado de São Paulo, a uma altitude de 1100 metros. Apesar de gozar de uma localização privilegiada, conta com apenas duas pousadas, e uma estava completamente tomada. A outra, a do “seo” Sebastião, nossa única esperança, disponibilizou um quarto assaz aconchegante, com vistas para a Pedra Grande. Acomodamos a bagagem e as motocicletas e principiamos o rotineiro palmilhar pelas ruas da cidade. Encontramos algo para comer numa festa – com o intuito de arrecadar fundos para um asilo – que havia começado há pouco no ginásio poliesportivo. Fomos acolhidos muito gentilmente por todos os envolvidos na festança, e este é um ponto importante a ressaltar, já que muitas vezes nos esquecemos de que ainda existem pessoas, e não somente lugares, dignos de nota por aí. No caminho de volta para a pousada, assolados pelo frio, decidimos comer uma pizza, como bons paulistas. O sono veio e sequer planejamos o dia seguinte.

Portal de entrada para o santuário

Cachoeira Boca-da-Mata
Acordamos às 7h, no domingo, e desjejuamos ao mesmo tempo em que pedíamos informações sobre os atrativos locais. Partimos da pousada em direção novamente ao alto da Pedra Grande, já que agora havia abundância de luz para fotografar. Subimos mais calmamente desta vez, aproveitando a vista sobre cada lance de degraus. Por um tempo estivemos, literalmente, no apogeu de nossas vidas. Com os ventos da realidade uivando, descemos para enfrentar mais uma estrada de terra, que nos levou à pedra Maria Antônia e a seus incríveis 130m de altura. Esta pedra é bem explorada para a prática de escalada. Conversando com um morador de um sítio da região, soubemos da existência de uma cachoeira perto dali, e logo nos dispusemos a localizá-la. A cachoeira Boca-da-Mata, como é chamada por lá, na verdade se trata de uma corredeira. Sob uma ponte de madeira foi possível acessá-la. Descansamos ali por um bom tempo, visto que o frio amainara e o sol luzia forte. Mais uma vez na terra, partimos sem saber onde a estrada terminaria. Para a nossa surpresa, saímos no trevo Munhoz-Pedra Bela-Toledo. Optamos por nos dirigir a Toledo, já no estado de Minas Gerais. Chegamos à pacata cidade por volta do meio-dia.
Pinhal Grande
Toledo conta com aproximadamente 6000 habitantes. Como toda cidade pequena, o que chama a atenção é a igreja matriz. Tudo parece se desenrolar ao redor dela. A Praça São José é o local mais frequentado pelos moradores, e também ajudamos a aumentar tal estatística. Sabendo que uma festa junina aconteceria ali a partir das 16h, procuramos um hotel e decidimos pernoitar nas cercanias da praça. Com algumas horas disponíveis, subimos o morro do cemitério municipal, talvez um dos pontos mais altos da cidade, de onde pudemos observar todo  o território e seus domínios. Descemos a pé até uma pequena cachoeira, que curiosamente fica no lado do estado de São Paulo, e depois seguimos de moto ao bairro Pinhal Grande, onde encontramos uma bela cachoeira no quintal de um sítio. A cidade tem um potencial muito grande para o turismo. Diz-se que 16 cachoeiras pertencem ao território de Toledo, mas não há placa alguma com indicações e mesmo os moradores desconhecem suas exatas localizações.

O céu laranja do fim de tarde em Toledo/MG

Praça São José
De volta à praça, assistimos às apresentações das crianças das escolas locais, comemos comidas típicas de festa junina e admiramos o pôr-do-sol sobre os telhados das casas. Dormimos novamente afrontados pelo frio dos 1100 metros de altitude de Toledo. Logo pela manhã pegamos a estrada, voltando para Pedra Bela, desta feita via asfalto, e passando por Bragança Paulista, Itatiba, Valinhos, Campinas, Sumaré, Nova Odessa e, finalmente, atracando em Americana. Chegamos antes do meio-dia, ainda em tempo de comemorar o aniversário de “Poste”. Meus parabéns ao esquálido parceiro, que tem se mostrado um cúmplice em grandes aventuras por esse Brasil afora. Gostaria eu que essa fosse uma dupla inseparáve, mas infelizmente nossas obrigações trabalhistas muitas vezes nos colocam em caminhos diferentes.
Povo toledense
A simplicidade e o sotaque do povo toledense não deixou de nos cativar. Como dito no primeiro parágrafo da postagem, o ambiente de Toledo diferiu – e muito – do de Pedra Bela. Ambos os locais se mostraram agradáveis e receptivos, mas Toledo pareceu mais tímida, menos senhora de si quanto aos seus recursos humanos e naturais. Falta um pouco de interação do povo com a própria cidade, ao contrário de Pedra Bela, em que todos parecem realmente estar inseridos na dinâmica da cidade. Que fique registrado que eu voltaria para ambos os lugares. É apenas mais um comentário de minha mente analítica.
Passei por estas terras. Fenomenologicamente estas terras também passaram por mim. Tudo estava ali, no quintal de minha casa, também conhecido como mundo, e nunca abri os olhos para que pudesse enxergar. Hoje, mais experiente e bem menos influenciável pelas artimanhas da sociedade, começo a ter noção do tempo que perdi na tentativa de melhorar a mim mesmo intrinsecamente, quando todas as ferramentas que carecia, na verdade, estavam extrínsecas a mim. Não cometo duas vezes o mesmo erro. No quintal de minha casa ou no quintal de outras casas aportar-me-ei. Não desistirei de conhecer tudo o que está ao meu alcance. E, enquanto isso, tentarei encontrar meios de conhecer tudo o que não está.


Mais fotos aqui.

E abaixo um blues em “dois ambientes” para esta viagem. Desculpem-me novamente pela má qualidade. Escutem com o fone de ouvido e no volume máximo.

sábado, 4 de junho de 2011

São João del Rei, Tiradentes e São Thomé das Letras – de 27 a 30 de maio de 2011


O título desta postagem não poderia ser menos abrangente. As três cidades mencionadas merecem sem dúvidas maior atenção de nossa parte, mas durante todo o trajeto conhecemos algumas que, se não são assim tão famosas, pelo menos tornaram-se conhecidas por nossos espíritos desbravadores e angariam certo valor. Podemos citar, correndo o risco de olvidarmos uma ou outra, Jacutinga, Borda da Mata, Ouro Fino (cidade imortalizada pela música O Menino da Porteira, composta por Teddy Vieira e Luizinho e entoada por Sérgio Reis), Lambari, Cruzília, Caxambu, São Vicente de Minas, Madre de Deus de Minas, Três Corações (cidade natal de Pelé), Lavras, Pouso Alegre, Bragança Paulista, Itatiba e Louveira.
Ouro Fino
Rodrigo Costa Gil e eu partimos com nossas motocicletas carregadas na manhã gelada de 27 de maio. Paramos em Jacutinga, já no querido estado de Minas Gerais, para um desjejum à base de café preto e biscoito “mineiro” (aqui obviamente chamado apenas de biscoito). Seguimos pela rodovia que cruza todo o Circuito das Malhas, passando por Ouro Fino (aqui realmente há um grande menino e uma grande porteira aguardando o viajante no portal da cidade), Borda da Mata e Pouso Alegre. Um breve trecho na Fernão Dias foi necessário para que chegássemos à entrada do Circuito das Águas, mais precisamente à cidade de Lambari. Novamente uma parada para alimentação. A nostalgia das estradas mineiras secundárias começou a me envolver a partir deste ponto e foi a tônica durante toda a viagem. Montes verdes, céu azul e ar fresco correndo pelas entradas de ar do capacete: prazeres incomensuráveis somente sentidos neste estado maravilhoso. Caxambu foi a próxima parada, seguida por Cruzília, Minduri, São Vicente de Minas e Madre de Deus de Minas. Alcançamos São João del Rei, primeiro destino, às 16h. Acomodamo-nos no Albergue da Juventude e dispusemo-nos a caminhar pela histórica cidade.
Ponte da Cadeia
A primeira impressão ao palmilhar as ruas de paralelepípedo de São João del Rei é a de que o novo se mistura com o antigo. A cidade conta com uma universidade federal – a UFSJ – e as repúblicas estudantis fazem rebuliço em prédios construídos no Brasil colônia. Um canal estreito com várias pontes – uma delas é a famosa Ponte da Cadeia – ao longo de seu curso divide a cidade ao meio. O comércio fervilha, como em qualquer cidade turística. Tropeçar aqui é cair dentro de alguma igreja católica. São muitas, de variados tamanhos e estilos. O Theatro Municipal é interessante, assim como a Estação Ferroviária, da qual uma maria-fumaça transporta o turista a Tiradentes se o mesmo não quiser enfrentar o asfalto. Jantamos no restaurante Pantanal, isolados do agito de começo de noite de sexta-feira. Fomos gentilmente atendidos e logo fizemos amizade com o pessoal do estabelecimento, que nos deixou à vontade para que adentrássemos a cozinha e nos servíssemos como bem entendíamos, sem formalidades, como se estivéssemos na casa de alguma pessoa há muito conhecida. Aconselhei a cozinheira a adquirir uma moto, já que a flagrei num severo ato de maldição da própria vida. Ela disse que pensaria no assunto. Satisfeitos, voltamos ao albergue e dormimos o merecido sono dos cavaleiros sobre duas rodas.

Uma das diversas igrejas de São João del Rei

São João del Rei
São João del Rei é habitada por aproximadamente 85 mil pessoas. Suas origens remontam à ocupação do local em 1701 – por Tomé-Portes del-Rei – e à descoberta de ouro na região, hoje conhecida como Região das Vertentes. Com essa descoberta surgem vários Arraiais e a disputa pelo ouro começa a conflitar os interesses de paulistas e portugueses, culminando na Guerra dos Emboabas, entre 1707 e 1709. Os portugueses vencem a disputa e, em 1713, com o desenvolvimento conduzido pela exploração aurífera, a Vila de São João del Rei é criada, sendo o nome uma homenagem a D. João V, rei de Portugal. O título de cidade foi oficializado em 1838. Em 1943 todo o seu conjunto arquitetônico foi tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Cultural. Alguns cidadãos ilustres da história brasileira nasceram aqui, como Tiradentes e o ex-presidente Tancredo Neves.
Serra do Lenheiro
Na manhã de 28 de maio subimos a Serra do Lenheiro, que envolve a parte oeste da cidade. Os paredões gigantescos deste local são utilizados pelo Exército Brasileiro para exercícios de escalada. O clima contribuiu para que o trajeto, todo em terra, rendesse belas fotos e visuais marcantes. Exigimos bastante de nossas “poderosas” e elas não nos deixaram na mão. Uma amiga – que deve estar tomando um tererê com limão a essas horas – havia me exortado a visitar esta serra dias antes de eu comentar que viajaria para estes confins, afirmando que os desenhos da mesma resplandecem mistérios. Não me arrependi de incluí-la no roteiro. Misteriosa ou não, a paz de espírito proporcionada por ela foi proporcional à imponência de suas elevações rochosas. Para um ateu e fanático por tudo o que é esculpido pela natureza, e que até então apenas fotografara templos religiosos, a Serra do Lenheiro veio bem a calhar.

Serra do Lenheiro vista da estrada

Tiradentes
Um pouco antes do meio-dia deixamos São João del Rei e pendemos para Tiradentes, a pouco mais de 20 minutos dali. Já sabendo que mais igrejas saltariam à vista, acabei deixando o preconceito inocular o seu veneno e me desanimar um pouco. Utilizando-me de uma abordagem diferente, optei por fotografar as ruas antigas e os becos íngremes da pequena cidade. O comércio aqui também é forte, e a movimentação nas ruas parecia ser maior quando comparada à de São João del Rei. A Serra de São José, ao fundo, não pôde ser alcançada via duas rodas, e tivemos que nos contentar em contemplá-la de longe.
Serra de São Francisco
A história de Tiradentes é paralela à de São João del Rei, dada a proximidade de seus territórios. O local onde hoje se encontra a cidade também surgiu a partir de um arraial de garimpeiros de ouro que deu origem à Vila de São José del-Rei, em 1718. Passa a ser chamada Tiradentes em 1864, em homenagem ao mártir da Inconfidência Mineira Joaquim José da Silva Xavier, vulgo Tiradentes. Seu patrimônio arquitetônico foi tombado em 1938. Devo admitir que passamos pouco tempo nesta cidade, e portanto não adquiri maiores informações sobre ela. Todas as cidades históricas de Minas Gerais merecem relatos pormenorizados, mas a falta de tempo e a vontade de mudar o foco da viagem para algo mais natural nos instaram a deixar este belo pedaço mineiro e partir para outro.

Matriz de Santo Antônio

Rio Grande
Deixamos Tiradentes e partimos, pela BR-265, para São Thomé das Letras. No caminho passamos por vários pontos de ônibus com a inscrição LIBERTAS (liberdade) e pelo Rio Grande. É a segunda vez que passo sobre este rio (a primeira foi em junho de 2010, quando o atravessei na divisa SP/MG, da Anhanguera para a BR-050, indo para Brasília. Vale ressaltar que este rio nasce na Serra da Mantiqueira, em Bocaina de Minas, e deságua no rio Paranaíba, em Carneirnho/MG, percorrendo um total de 1360km. Passamos também por Lavras, dentre outras cidades menores. Descemos a Fernão Dias até a entrada de Três Corações e cruzamos boa parte desta cidade, alcançando então uma bela estrada que nos levaria diretamente a São Thomé. Ao longe, sobre um monte de quartzito, já era possível avistar a “mística” cidade. Mística, na verdade, é a subida que fomos obrigados a enfrentar para chegarmos aos 1440m de altitude do local.
São Thomé das Letras
Aqui tudo é de pedra: a pavimentação das ruas, o “reboco” das casas e os enfeites vendidos nas pequenas e estreitas lojas de artesanato. Instalamo-nos na Pousada do ET e logo indagamos o proprietário acerca de OVNIS que supostamente aterrissam nas montanhas (também de pedra) de São Thomé das Letras. Ele relatou nunca haver visto nada, mas que alguns moradores afirmam ser uma informação verossímil. Hippies vendem seus “trampos” por todos os cantos, enquanto jovens e anciães, por outro lado, consomem “deturpadores de sentidos”. Gostaria de dizer que isso acontece somente aqui, mas sabemos que seria uma frivolidade de minha parte.

Pedra da Bruxa

Pirâmide
Visitamos o Parque Municipal Antônio Rosa, com seu mirante, cruzeiro e pirâmide. As formações rochosas abstratas lembram alguma coisa e depois já não lembram mais nada. O visual do alto das montanhas de pedra é indescritível. Com o tempo limpo é possível visualizar centenas de quilômetros ao norte com uma nitidez considerável. Ao sul o sol se põe magistralmente, sendo aplaudido por todos os que acompanham o espetáculo no topo da pirâmide. A hospitalidade dos comerciantes e donos de pousadas é de se admirar. Não poderia ser diferente, já que o turismo é a segunda maior fonte de renda da cidade, perdendo apenas para a extração de pedras. O frio é outro ponto a se considerar. Na primeira noite o termômetro marcou 6 graus Celsius; no segundo 3.
Véu da Noiva
No dia 29 acordamos cedo, como bons senhores que dormem antes das 22h, e “rasgamos” a densa neblina na estrada velha, de terra, que liga São Thomé ao Circuito das Águas. Nela conhecemos três cachoeiras: Véu da Noiva, Cachoeira do Flávio e Eubiose. Água cristalina, pequenas quedas e um alento para quem vive numa selva de concreto. Voltamos para a entrada “asfáltica” e subimos à Gruta do Carimbado e Ladeira do Amendoim. Reza a lenda que essa gruta, se desbravada em toda a sua extensão, é um atalho para Macchu Picchu, no Peru; a Ladeira do Amendoim é uma pequena rampa de terra que te leva para cima ao invés de te levar para baixo. Pessoalmente achei o local plano; não vi ladeira alguma. Também não senti nada quando estacionei a moto e a desengatei. Mas que fique registrado que passei por ali. Na volta para a pousada não deixamos de visitar a Cachoeira de São Thomé, situada num campo mais aberto e acessível dois quilômetros antes do portal da cidade.

Gruta do Carimbado

Matriz de São Thomé
O território de São Thomé das Letras era habitado por índios cataguases, sendo estes expulsos dali pelos bandeirantes paulistas em 1770. O nome da cidade, segundo uma lenda, é originário de um causo curioso: um escravo fugiu e se escondeu em uma gruta após seu senhorio descobrir que o infeliz tinha um caso com sua filha. Nessa gruta surgiu um homem que lhe entregou um bilhete e pediu para que voltasse e o entregasse ao amo. O escravo assim o fez e o senhorio, com um bilhete perfeitamente escrito em papel nobre (que não poderia ser obra de um escravo), perdoou-lhe após visitar a gruta e encontrar uma imagem de São Thomé entalhada em madeira. O senhorio levou a imagem para casa repetidas vezes, mas a mesma insistia em voltar para a gruta. A solução encontrada foi, então, construir uma capela ao lado da gruta, que em 1785 foi substituída pela Igreja Matriz. Nesta gruta há algumas marcas, que muitos dizem ser letras; outros alegam ser apenas líquens. Daí o nome São Thomé das Letras.
O regresso
No dia 30 acordamos cedo novamente, montamos as tralhas e enfrentamos o nevoeiro para principiar o regresso. Voltamos por Três Corações, cruzando-a para alcançar novamente a Fernão Dias. Nela descemos “toda vida”, tomando a direita na primeira entrada de Bragança Paulista. Cruzamos até a rodovia que a liga a Itatiba, e de Itatiba seguimos até Louveira. Fizemos esse caminho de modo a evitar os abusivos pedágios da Rodovia D. Pedro. Em Louveira acessamos a Anhanguera e rapidamente me vi em casa. Foram, ao todo, 1270km percorridos sobre duas rodas. E muitos outros sobre dois pés, logicamente.
Fazia algum tempo que eu não viajava sozinho em minha própria moto. Mesmo com o parceiro a alguns metros de distância, também sozinho em outra moto, o sentimento de solidão se apossa dos devaneios em alguns momentos, o que não é necessariamente ruim. Repensei muitos acontecimentos de minha vida e guarneci o meu caráter. Dizem que um homem só conhece a si mesmo quando resolve morar sozinho. Acredito que talvez isso possa ser verdade, mas também há uma boa chance de nos conhecermos quando fechamos a viseira e nos concentramos na estrada. Nesta situação os pensamentos naturalmente se afloram, e o vento gelado da serra oxigena com mais eficácia o nosso “centro pensante”. O que eu era já não sou mais. Vejo o passado, pelo retrovisor, ficando para trás. Bom, talvez seja por isso que nunca faço a mesma rota na ida e na volta. Algumas coisas é preciso deixar nas curvas da serra; e para esse lugares às vezes é preferível nem voltar.


Mais fotos aqui.

Aproveitando para elongar ainda mais a presente postagem, gostaria de finalizar os relatos desta viagem com um blues que compus em homenagem ao estado de Minas. A qualidade da gravação é ruim e a perua que conserta panelas fez um barulho tremendo enquanto eu gravava. Infelizmente moro numa cidade ruidosa e nunca desfrutarei de silêncio absoluto. Mesmo assim, confiram este blues rusticamente, assim como deve ser.