Destrinchando caminhos. Escancarando o Brasil. Compondo quimeras e melodias sobre duas rodas.
sábado, 4 de junho de 2011
São João del Rei, Tiradentes e São Thomé das Letras – de 27 a 30 de maio de 2011
O título desta postagem não poderia ser menos abrangente. As três cidades mencionadas merecem sem dúvidas maior atenção de nossa parte, mas durante todo o trajeto conhecemos algumas que, se não são assim tão famosas, pelo menos tornaram-se conhecidas por nossos espíritos desbravadores e angariam certo valor. Podemos citar, correndo o risco de olvidarmos uma ou outra, Jacutinga, Borda da Mata, Ouro Fino (cidade imortalizada pela música O Menino da Porteira, composta por Teddy Vieira e Luizinho e entoada por Sérgio Reis), Lambari, Cruzília, Caxambu, São Vicente de Minas, Madre de Deus de Minas, Três Corações (cidade natal de Pelé), Lavras, Pouso Alegre, Bragança Paulista, Itatiba e Louveira.
Ouro Fino
Rodrigo Costa Gil e eu partimos com nossas motocicletas carregadas na manhã gelada de 27 de maio. Paramos em Jacutinga, já no querido estado de Minas Gerais, para um desjejum à base de café preto e biscoito “mineiro” (aqui obviamente chamado apenas de biscoito). Seguimos pela rodovia que cruza todo o Circuito das Malhas, passando por Ouro Fino (aqui realmente há um grande menino e uma grande porteira aguardando o viajante no portal da cidade), Borda da Mata e Pouso Alegre. Um breve trecho na Fernão Dias foi necessário para que chegássemos à entrada do Circuito das Águas, mais precisamente à cidade de Lambari. Novamente uma parada para alimentação. A nostalgia das estradas mineiras secundárias começou a me envolver a partir deste ponto e foi a tônica durante toda a viagem. Montes verdes, céu azul e ar fresco correndo pelas entradas de ar do capacete: prazeres incomensuráveis somente sentidos neste estado maravilhoso. Caxambu foi a próxima parada, seguida por Cruzília, Minduri, São Vicente de Minas e Madre de Deus de Minas. Alcançamos São João del Rei, primeiro destino, às 16h. Acomodamo-nos no Albergue da Juventude e dispusemo-nos a caminhar pela histórica cidade.
Ponte da Cadeia
A primeira impressão ao palmilhar as ruas de paralelepípedo de São João del Rei é a de que o novo se mistura com o antigo. A cidade conta com uma universidade federal – a UFSJ – e as repúblicas estudantis fazem rebuliço em prédios construídos no Brasil colônia. Um canal estreito com várias pontes – uma delas é a famosa Ponte da Cadeia – ao longo de seu curso divide a cidade ao meio. O comércio fervilha, como em qualquer cidade turística. Tropeçar aqui é cair dentro de alguma igreja católica. São muitas, de variados tamanhos e estilos. O Theatro Municipal é interessante, assim como a Estação Ferroviária, da qual uma maria-fumaça transporta o turista a Tiradentes se o mesmo não quiser enfrentar o asfalto. Jantamos no restaurante Pantanal, isolados do agito de começo de noite de sexta-feira. Fomos gentilmente atendidos e logo fizemos amizade com o pessoal do estabelecimento, que nos deixou à vontade para que adentrássemos a cozinha e nos servíssemos como bem entendíamos, sem formalidades, como se estivéssemos na casa de alguma pessoa há muito conhecida. Aconselhei a cozinheira a adquirir uma moto, já que a flagrei num severo ato de maldição da própria vida. Ela disse que pensaria no assunto. Satisfeitos, voltamos ao albergue e dormimos o merecido sono dos cavaleiros sobre duas rodas.
Uma das diversas igrejas de São João del Rei
São João del Rei
São João del Rei é habitada por aproximadamente 85 mil pessoas. Suas origens remontam à ocupação do local em 1701 – por Tomé-Portes del-Rei – e à descoberta de ouro na região, hoje conhecida como Região das Vertentes. Com essa descoberta surgem vários Arraiais e a disputa pelo ouro começa a conflitar os interesses de paulistas e portugueses, culminando na Guerra dos Emboabas, entre 1707 e 1709. Os portugueses vencem a disputa e, em 1713, com o desenvolvimento conduzido pela exploração aurífera, a Vila de São João del Rei é criada, sendo o nome uma homenagem a D. João V, rei de Portugal. O título de cidade foi oficializado em 1838. Em 1943 todo o seu conjunto arquitetônico foi tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Cultural. Alguns cidadãos ilustres da história brasileira nasceram aqui, como Tiradentes e o ex-presidente Tancredo Neves.
Serra do Lenheiro
Na manhã de 28 de maio subimos a Serra do Lenheiro, que envolve a parte oeste da cidade. Os paredões gigantescos deste local são utilizados pelo Exército Brasileiro para exercícios de escalada. O clima contribuiu para que o trajeto, todo em terra, rendesse belas fotos e visuais marcantes. Exigimos bastante de nossas “poderosas” e elas não nos deixaram na mão. Uma amiga – que deve estar tomando um tererê com limão a essas horas – havia me exortado a visitar esta serra dias antes de eu comentar que viajaria para estes confins, afirmando que os desenhos da mesma resplandecem mistérios. Não me arrependi de incluí-la no roteiro. Misteriosa ou não, a paz de espírito proporcionada por ela foi proporcional à imponência de suas elevações rochosas. Para um ateu e fanático por tudo o que é esculpido pela natureza, e que até então apenas fotografara templos religiosos, a Serra do Lenheiro veio bem a calhar.
Serra do Lenheiro vista da estrada
Tiradentes
Um pouco antes do meio-dia deixamos São João del Rei e pendemos para Tiradentes, a pouco mais de 20 minutos dali. Já sabendo que mais igrejas saltariam à vista, acabei deixando o preconceito inocular o seu veneno e me desanimar um pouco. Utilizando-me de uma abordagem diferente, optei por fotografar as ruas antigas e os becos íngremes da pequena cidade. O comércio aqui também é forte, e a movimentação nas ruas parecia ser maior quando comparada à de São João del Rei. A Serra de São José, ao fundo, não pôde ser alcançada via duas rodas, e tivemos que nos contentar em contemplá-la de longe.
Serra de São Francisco
A história de Tiradentes é paralela à de São João del Rei, dada a proximidade de seus territórios. O local onde hoje se encontra a cidade também surgiu a partir de um arraial de garimpeiros de ouro que deu origem à Vila de São José del-Rei, em 1718. Passa a ser chamada Tiradentes em 1864, em homenagem ao mártir da Inconfidência Mineira Joaquim José da Silva Xavier, vulgo Tiradentes. Seu patrimônio arquitetônico foi tombado em 1938. Devo admitir que passamos pouco tempo nesta cidade, e portanto não adquiri maiores informações sobre ela. Todas as cidades históricas de Minas Gerais merecem relatos pormenorizados, mas a falta de tempo e a vontade de mudar o foco da viagem para algo mais natural nos instaram a deixar este belo pedaço mineiro e partir para outro.
Matriz de Santo Antônio
Rio Grande
Deixamos Tiradentes e partimos, pela BR-265, para São Thomé das Letras. No caminho passamos por vários pontos de ônibus com a inscrição LIBERTAS (liberdade) e pelo Rio Grande. É a segunda vez que passo sobre este rio (a primeira foi em junho de 2010, quando o atravessei na divisa SP/MG, da Anhanguera para a BR-050, indo para Brasília. Vale ressaltar que este rio nasce na Serra da Mantiqueira, em Bocaina de Minas, e deságua no rio Paranaíba, em Carneirnho/MG, percorrendo um total de 1360km. Passamos também por Lavras, dentre outras cidades menores. Descemos a Fernão Dias até a entrada de Três Corações e cruzamos boa parte desta cidade, alcançando então uma bela estrada que nos levaria diretamente a São Thomé. Ao longe, sobre um monte de quartzito, já era possível avistar a “mística” cidade. Mística, na verdade, é a subida que fomos obrigados a enfrentar para chegarmos aos 1440m de altitude do local.
São Thomé das Letras
Aqui tudo é de pedra: a pavimentação das ruas, o “reboco” das casas e os enfeites vendidos nas pequenas e estreitas lojas de artesanato. Instalamo-nos na Pousada do ET e logo indagamos o proprietário acerca de OVNIS que supostamente aterrissam nas montanhas (também de pedra) de São Thomé das Letras. Ele relatou nunca haver visto nada, mas que alguns moradores afirmam ser uma informação verossímil. Hippies vendem seus “trampos” por todos os cantos, enquanto jovens e anciães, por outro lado, consomem “deturpadores de sentidos”. Gostaria de dizer que isso acontece somente aqui, mas sabemos que seria uma frivolidade de minha parte.
Pedra da Bruxa
Pirâmide
Visitamos o Parque Municipal Antônio Rosa, com seu mirante, cruzeiro e pirâmide. As formações rochosas abstratas lembram alguma coisa e depois já não lembram mais nada. O visual do alto das montanhas de pedra é indescritível. Com o tempo limpo é possível visualizar centenas de quilômetros ao norte com uma nitidez considerável. Ao sul o sol se põe magistralmente, sendo aplaudido por todos os que acompanham o espetáculo no topo da pirâmide. A hospitalidade dos comerciantes e donos de pousadas é de se admirar. Não poderia ser diferente, já que o turismo é a segunda maior fonte de renda da cidade, perdendo apenas para a extração de pedras. O frio é outro ponto a se considerar. Na primeira noite o termômetro marcou 6 graus Celsius; no segundo 3.
Véu da Noiva
No dia 29 acordamos cedo, como bons senhores que dormem antes das 22h, e “rasgamos” a densa neblina na estrada velha, de terra, que liga São Thomé ao Circuito das Águas. Nela conhecemos três cachoeiras: Véu da Noiva, Cachoeira do Flávio e Eubiose. Água cristalina, pequenas quedas e um alento para quem vive numa selva de concreto. Voltamos para a entrada “asfáltica” e subimos à Gruta do Carimbado e Ladeira do Amendoim. Reza a lenda que essa gruta, se desbravada em toda a sua extensão, é um atalho para Macchu Picchu, no Peru; a Ladeira do Amendoim é uma pequena rampa de terra que te leva para cima ao invés de te levar para baixo. Pessoalmente achei o local plano; não vi ladeira alguma. Também não senti nada quando estacionei a moto e a desengatei. Mas que fique registrado que passei por ali. Na volta para a pousada não deixamos de visitar a Cachoeira de São Thomé, situada num campo mais aberto e acessível dois quilômetros antes do portal da cidade.
Gruta do Carimbado
Matriz de São Thomé
O território de São Thomé das Letras era habitado por índios cataguases, sendo estes expulsos dali pelos bandeirantes paulistas em 1770. O nome da cidade, segundo uma lenda, é originário de um causo curioso: um escravo fugiu e se escondeu em uma gruta após seu senhorio descobrir que o infeliz tinha um caso com sua filha. Nessa gruta surgiu um homem que lhe entregou um bilhete e pediu para que voltasse e o entregasse ao amo. O escravo assim o fez e o senhorio, com um bilhete perfeitamente escrito em papel nobre (que não poderia ser obra de um escravo), perdoou-lhe após visitar a gruta e encontrar uma imagem de São Thomé entalhada em madeira. O senhorio levou a imagem para casa repetidas vezes, mas a mesma insistia em voltar para a gruta. A solução encontrada foi, então, construir uma capela ao lado da gruta, que em 1785 foi substituída pela Igreja Matriz. Nesta gruta há algumas marcas, que muitos dizem ser letras; outros alegam ser apenas líquens. Daí o nome São Thomé das Letras.
O regresso
No dia 30 acordamos cedo novamente, montamos as tralhas e enfrentamos o nevoeiro para principiar o regresso. Voltamos por Três Corações, cruzando-a para alcançar novamente a Fernão Dias. Nela descemos “toda vida”, tomando a direita na primeira entrada de Bragança Paulista. Cruzamos até a rodovia que a liga a Itatiba, e de Itatiba seguimos até Louveira. Fizemos esse caminho de modo a evitar os abusivos pedágios da Rodovia D. Pedro. Em Louveira acessamos a Anhanguera e rapidamente me vi em casa. Foram, ao todo, 1270km percorridos sobre duas rodas. E muitos outros sobre dois pés, logicamente.
Fazia algum tempo que eu não viajava sozinho em minha própria moto. Mesmo com o parceiro a alguns metros de distância, também sozinho em outra moto, o sentimento de solidão se apossa dos devaneios em alguns momentos, o que não é necessariamente ruim. Repensei muitos acontecimentos de minha vida e guarneci o meu caráter. Dizem que um homem só conhece a si mesmo quando resolve morar sozinho. Acredito que talvez isso possa ser verdade, mas também há uma boa chance de nos conhecermos quando fechamos a viseira e nos concentramos na estrada. Nesta situação os pensamentos naturalmente se afloram, e o vento gelado da serra oxigena com mais eficácia o nosso “centro pensante”. O que eu era já não sou mais. Vejo o passado, pelo retrovisor, ficando para trás. Bom, talvez seja por isso que nunca faço a mesma rota na ida e na volta. Algumas coisas é preciso deixar nas curvas da serra; e para esse lugares às vezes é preferível nem voltar.
Aproveitando para elongar ainda mais a presente postagem, gostaria de finalizar os relatos desta viagem com um blues que compus em homenagem ao estado de Minas. A qualidade da gravação é ruim e a perua que conserta panelas fez um barulho tremendo enquanto eu gravava. Infelizmente moro numa cidade ruidosa e nunca desfrutarei de silêncio absoluto. Mesmo assim, confiram este blues rusticamente, assim como deve ser.
Adorei os comentários principalmente pq me citou e feliz pq gostou da indicação, quem sabe um dia vou para lá com vcs, um dos lugares que com certeza voltarei, parabéns pelo Blues, pelo texto e principalmente pelo estilo de vida beijos Marry...
Quando vc voltar em São João, volte na serra do lenheiro e veja uma escultura de uma mulher, feito durante o período da escravidão, foi um escravo se apaixonou por esta linda mulher, que era filha do dono da fazenda, como este romance seria impossível de se realizar, este escravo apaixonado esculpiu o rosto desta jovem e após esta homenagem se suicidou. Dando origem a mais uma lenda da Serra, vale a pena.
Adorei os comentários principalmente pq me citou e feliz pq gostou da indicação, quem sabe um dia vou para lá com vcs, um dos lugares que com certeza voltarei, parabéns pelo Blues, pelo texto e principalmente pelo estilo de vida beijos Marry...
ResponderExcluirQuando vc voltar em São João, volte na serra do lenheiro e veja uma escultura de uma mulher, feito durante o período da escravidão, foi um escravo se apaixonou por esta linda mulher, que era filha do dono da fazenda, como este romance seria impossível de se realizar, este escravo apaixonado esculpiu o rosto desta jovem e após esta homenagem se suicidou. Dando origem a mais uma lenda da Serra, vale a pena.
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