quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Morro do Saboó – 5 de outubro de 2011


É engraçado – para não dizer preocupante – como a evolução tecnológica nos deixa à mercê de suas passadas. Temos que, a cada dia, consumir mais e mais para não sermos dragados para o subsolo da exclusão digital. Como diria meu grande pai, hoje em dia é mais fácil encontrar alguém portando dois celulares do que um pobre infeliz sem nenhum. Não que isso seja ruim ou desumanizante. Pelo contrário, a evolução deve acontecer, isso se agir em prol da perpetuação da espécie, como prerroga o darwinismo em relação ao todos os seres vivos. Contudo, estamos nos habituando ao comodismo, ao “ter tudo às mãos” com o simples deslizar de dedos pelo touchscreen, e temos nos olvidado que, para um completo desenvolvimento, precisamos nos utilizar de nossos músculos e articulações, de movimento, esse que nos fará passar por dificuldades, desequilíbrios, momentos que nos colocarão à prova, obrigando-nos a agir, aprender e, consequentemente, evoluir. Por isso, embora eu ainda desfrute de momentos totalmente informatizados, ainda prefiro me valer daquela velha dupla pregada como emancipadora e benfeitora da alma e dos olhos pelo diligente amigo Fernando Santarrossa: uma moto e uma câmera fotográfica. Uma me provê o tão estimado e supracitado movimento; a outra, o congelamento e a imortalização desse movimento, pois se eu parar, um dia, essas imagens, embora estáticas, me mostrarão que outrora estive evoluindo.
Companheiros de aventura
O Morro do Saboó, em São Roque, é uma elevação montanhosa facilmente identificável pelos frequentadores da região de São Roque, nas proximidades da chamada Grande São Paulo, visto ser esse o ponto culminante do município. O grupo que fez esta pequena incursão (inclusive eu), entretanto, o viu pela primeira vez do alto do Morro do Voturuna (link), entre Santana do Parnaíba e Araçariguama. Apesar de ser ligeiramente mais baixo que o morro citado, não deixa de ter sua dominância no relevo irregular da região. O que mais nos motivou a subi-lo, não obstante, foi a total falta de informação sobre as vias de possível acesso ao seu topo. Os relatos são escassos e simplesmente não tínhamos ideia de como abordá-lo, se seria possível subi-lo de moto ou somente a pé a partir de certo ponto. Poderíamos tentá-lo à maneira do parceiro Kássio Massa, como publicado em seu excelente blog Rota Massa Ecoturismo (link para esse roteiro em questão), mas isso nos tomaria muito tempo e energia, o que vai na contramão de uma viagem motociclística de apenas um dia. Enfim, Levi Vieira, Rodrigo Costa Gil, Thiago Lucas, Luiz Paulo Blanes, Luana Romero e eu nos deixaríamos levar pelas estradas da zona rural da Estância Climática de São Roque na esperança de atingir nosso objetivo. Seriam cinco motos, seis almas e um naco de possibilidades de dar tudo muito certo. Ou tudo muito errado, para os mais pessimistas (meu caso).
São Roque
Luana e eu partimos de Americana, das imediações do vale do córrego do Sítio Anhanguera, por volta das 7:30 da manhã. Seguimos pela rodovia Anhanguera até o pedágio de Nova Odessa, onde nos encontramos com Levi, Thiago e Luiz, que já nos aguardavam. O séquito só se completou quando deixamos a Anhanguera, acessamos a Bandeirantes e, na sequência, a Santos Dummont, onde Rodrigo se juntou a nós. Daí foi só continuar rumando para o sul em um caminho enfadonho, sonolento. Uma guinada para o leste, pouco antes da grande Sorocaba, e pela Castello Branco fomos rapidamente avançando. Só descemos para o sul novamente ao avistarmos a primeira (e única) indicação para São Roque. Já na estrada municipal Lívio Tagliassachi, derrocamos os 10 últimos dos 135km desde Americana. Dela se avistava, a oeste, o altivo Morro do Saboó. Localizamos, inclusive, a Estrada do Saboó, uma vicinal que com certeza nos carregaria para bem próximo dele. Como ainda era cedo, aproveitamos o tempo para conhecer melhor o centro urbano de São Roque. Devo dizer que não nos arrependemos. A chamada “Cidade do Vinho”, com seus 80 mil habitantes, preencheu a lacuna histórica da viagem. Afinal, é uma cidade fundada no século XVII, com mais de 350 anos de bagagem. A Igreja de São Benedito, por exemplo, foi erigida por escravos em 1855. Tanto sua estrutura (à base de taipa de pilão) quanto seus adornos interiores são simples, rústicos, e sua localização, entre prédios comerciais e uma agência bancária, a camufla entre os traços duros da arquitetura moderna do século XXI, feita mais para ser prática do que vistosa. Na mesma rua, um pouco mais para baixo, uma outra, na praça central da cidade. Tratava-se da Matriz de São Roque, de meados do século XX, que se não pode ser celebrada pela sua idade, pode sê-la pelas suas dimensões. É simplesmente a maior do Brasil dedicada ao santo de origem francesa.

Igreja de São Benedito, construída por escravos em 1855
 
Interior simples
Torre da Igreja de São Roque

Morro do Saboó
Com o hiato histórico saciado, condição indispensável em algum ponto de toda e qualquer viagem, saímos à caça de alguma trilha, de motocicleta ou a pé, que nos desse acesso ao cume do Morro do Saboó. Retornamos pela estrada municipal Lívio Tagliassachi e adentramos a Estrada do Saboó, sentido oeste. Fomos ganhando altitude pela Serra do Ribeirão enquanto o asfalto nos levava para o norte, rumo ao bairro do Saboó. Aos 800m o morro já era uma presença marcante no cenário, exibindo suas formas arredondadas, inciando-se pequeno, a sudoeste, e findando com seu ponto culminante a nordeste, como que crescendo progressivamente. Dizem se assemelhar ao dorso de um dinossauro. Em um certo momento o asfalto despareceu. Nunca perdendo o morro de vista, contornamos sua face noroeste, por terra, e calhamos em um lago. Enviesando-nos, a partir dele, para o leste, entrecortamos um bairro de chácaras e, mediante coleta de informações de moradores locais, subimos um trecho menos íngreme do Morro do Saboó, ainda sobre nossas motos, pelo lado leste. Em um determinado ponto, um carrinho de comes e bebes demarcava o fim da estrada. Uma placa com os dizeres “essa é uma propriedade particular, mas de acesso livre ao público” não nos deixava dúvidas: era esse o princípio da trilha a pé. Víamos lá no alto o topo do Saboó e nossas pernas se encarregariam de alcançá-lo. Não havia nada mais que nossas motos pudessem fazer.

Vista da Estrada do Saboó
 
Início da trilha a pé. Ao fundo, a Serra da Guaxatuba
Face triangular e rochas de quartzito
Subir o Morro do Saboó, ou Morro Pelado, como os indígenas Saboós o costumavam chamar (de fato, Saboó, em indígena, significa “vegetação rala), não foi das tarefas mais árduas. A trilha, em meio a rochas de quartzito totalmente soltas ou ligeiramente presas pela vegetação rasteira (daí provém o adjetivo “pelado”) pode ser perigosa para quem confia em demasia no chão onde pisa, mas em nenhum momento nos vimos na iminência de um acidente mais grave. A subida é incontestavelmente íngreme, mas o próprio traçado da trilha, sinuoso, foi feito de maneira a suavizar a ascensão de 100 metros de altitude em pouco menos de 1km de percurso. E enquanto se sobe se avista, além do bairro que entrecortamos para chegar ao sopé do morro, a Serra da Guaxatuba, lá pelos lados de Cabreúva, ao norte, e um outro laivo do morro que, da Estrada do Saboó, não estava aparente. É uma porção mais baixa, triangular, pontuda feito uma pirâmide. De longe ele me pareceu tão arredondado que, ao me deparar com essas linhas mais firmes, acreditei estar defronte a outro morro. Mas as cartas topográficas não mentiam: era ainda o Saboó, mas mostrando sua outra faceta. Numa última esticada, vencendo pedras empilhadas (aqui se faz alguns rituais religiosos e, à noite, madeiras são queimadas nessas “churrasqueiras” improvisadas) e revoadas de andorinhões destrambelhados, chegamos aos quase 1000m de altitude, no ápice do Morro Pelado. Havia mais gente ali. Religiosos, principalmente. Homens prostravam-se de joelhos, com paisagens como o Morro do Voturuna, a nordeste, e a cidade de São Roque, a sudeste.

São Roque vista do Saboó

Morro do Voturuna

Mais um dos topos do mundo

Descendo o Morro do Saboó
Há aqueles que são religiosos, devotos, e há aqueles que são extremistas, doentes, fanáticos. Esse extremismo foi o que nos fez deixar o cume do Saboó poucos minutos após nossa chegada. Dois homens, por motivos que eu não saberia apontar, discutiam acaloradamente sobre Deus e a bíblia, tanto a ponto de um afrontar o outro com o dedo em riste. É difícil ter paz e aproveitar o torpor do vento morno em um dos vários topos do mundo (como costumo chamar nossas montanhas) com dois seres digladiando a poucos metros de você. O que me alegrou, por um momento, foi voltar meus olhos para o oeste e discernir no horizonte, mesmo que tímida, a Serra de São Francisco. Um dedo de prosa com os meus companheiros e não foi difícil convencê-los a nos dirigirmos para lá, visto que também começavam a se incomodar com a querela dos “detentores da verdade”. Como “para baixo todo santo ajuda” (especialmente aqui, recorrer a homens beatificados pode soar uma ironia ou uma demonstração de religiosidade, meu caso sendo o primeiro), rapidamente descemos o cerrado do Saboó e reavemos nossas motos, partindo incontinenti para o sul, visando encontrar, em algum momento, a rodovia Raposo Tavares. Por continuarmos em estradas de terra, algumas surpresas ainda nos acometeram. Passamos, por exemplo, pelos prédios antigos do bairro rural Moreiras e por um túnel desativado da FEPASA. Não há mais trilhos, mas a estrutura ainda subsiste. Do outro lado a trilha continua, passando por perigosas áreas em desmoronamento. Quinze quilômetros depois encontrávamos o asfalto da Raposo Tavares no trevo de entrada da cidade de Mairinque.

Bairro Moreiras


Túnel desativado da FEPASA

No alto da Serra de Inhaíba
A Raposo Tavares foi nos conduzindo para o oeste em velocidade de cruzeiro. Passamos pela entrada da cidade de Alumínio e 15km depois deixávamos a rodovia para adentrar as ruas do distrito sorocabano de Brigadeiro Tobias, nome dado em homenagem ao patrono da Polícia Militar do Estado de São Paulo, o Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, nascido em Sorocaba no ano de 1795. Apesar de ser parte integrante de Sorocaba, o distrito conta com mais de 15 mil habitantes, número superior ao de muitos outros municípios do interior paulista. Apesar desses números e História impressionantes, não era ali nosso escopo. Utilizamo-nos dele apenas como atalho para acessar as zonas rurais de Sorocaba e Votorantim, ao sul. Por estradas de chão fomos avançando pela Serra de Inhaíba entre chácaras, sítios, plantações de milho, cana e mata fechada. Por falar em canaviais, perdida em meio a um, recentemente cortado, jazia em reforma a Capela de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, lugar de devoção dos moradores do bairro rural sorocabano de Inhayba. Prosseguindo, em uma estrada ladeada por eucaliptos julgamos ter escutado uma queda d'água. Apeamos das motos e descemos por uma curta trilha em direção a um raso vale. Por fim encontramos a pequena queda que, pelos mapa do IBGE, se encontra nos domínios da Fazenda Vila Nova. É a água que brota no topo da Serra de São Francisco escorrendo para saciar a sede dos seres que habitam as altitudes mais baixas, como o grupo de quatis que passou tão rapidamente por nós que sequer nos deu a chance de fotografá-los.

Capela de Nossa Senhora da Imaculada Conceição

Cachoeira da Fazenda Vila Nova
 
Capela da Penha
Sem nos darmos conta fomos ganhando altitude suavemente enquanto passávamos pelo bairro de Inhayba, às margens dos trilhos de uma ferrovia, e por áreas úmidas de mata fechada e terreno pedregoso. Na cachoeira o altímetro marcara 700m, e no chapadão onde se encontra a tricentenária Capela da Penha incríveis 1015m. Chegáramos a Serra de São Francisco e nem nos apercebêramos disso. Não é seu ponto culminante, mas está próximo dele. A capela, por si só, é um marco, visto que a partir dela surgiram os primeiros povoamentos na serra. Foi erigida em 1724 por Timóteo Oliveira, uma obra que, à época, custou 200 mil réis. Tem traços barrocos. Foi construída nas proximidades de um poço de água, o que possibilitava molhar a terra e socá-la com pilão, dando forma a sua única nave. Hoje ainda são realizadas romarias que partem de Votorantim em direção a ela. Que lugar pacífico! Até mesmo os cachorros e cavalos que perambulam pelos seus entornos parecem não produzir um ruído. O silêncio foi apenas destronado pelo ranger das portas de madeira quando Luis resolveu adentrá-la, revelando um interior simples, com poucos bancos de madeira e pequenas imagens, umas talhadas também em madeira e outras em argila. Se eu acreditava que a visita à igreja de São Benedito, em São Roque, havia preenchido a lacuna histórica da viagem, agora essa mesma lacuna se elastecera para acomodar a Capela da Penha e sua bagagem de três centúrias.


Mais imagens da obra barroca de 1724
Cachoeira da Escadaria
Por estradas de chão continuamos acelerando na crista da Serra de São Francisco. Quatro quilômetros depois pendíamos para o norte por uma estrada rural que entrecortava um eucaliptal. Meus mapas apontavam que ali havia mais uma cachoeira. Numa descida perigosa encontramos o lago da Represa de Cubatão. Cruzamos o mesmo ribeirão que a alimenta, o Cubatão, por dentro dele mesmo, visto que atravessava a estrada, que nesse ponto já não passava de uma trilha. Por sorte era estreito e raso. Prosseguimos por essa trilha, ainda de moto, até o começo de uma outra que descia para um vale. A mata se fechara totalmente. Abandonamos as motos momentaneamente e descemos, a pé, até nos depararmos com o mesmo rio Cubatão. Daí foi só acompanhá-lo e chegar à primeira queda da Cachoeira da Escadaria, pequena, escorrendo morosamente pelo granito da serra por 15 metros, sombreada por uma densa mata de galeria. Descendo ainda mais pela margem esquerda do ribeirão de Cubatão, localizamos o segundo “degrau”, onde as águas caíam em dois canais separados, embora dividissem o mesmo paredão. O da esquerda mais vigoroso, com maior volume; o da direita mais tímido, procurando caminho entre os vincos do granito. Essa escada de apenas dois degraus foi o último atrativo visitado no alto da Serra de São Francisco. Nem mesmo arriscamos um banho, visto estar já anoitecendo e a temperatura, que se manteve amena durante todo o dia, começar a baixar.


Cachoeira da Escadaria: segunda queda
Atravessando o ribeirão de Cubatão

Barragem de Itupararanga
Chamamos isso de dia e resolvemos ir embora. Não havia mais nada que pudéssemos fazer na região. Voltamos para a estrada de chão da Capela da Penha mas, ao invés de seguirmos para o leste, aceleramos para o oeste, perdendo altitude e encontrando o asfalto da estrada municipal Votorantim-Piratuba 5km depois. Por estarmos próximos a Represa de Itupararanga, passamos por lá para rever a barragem, inspirada no Coliseu romano, do maior reservatório de água doce da região de Sorocaba, com um lago principal com mais de 930km² de área. Satisfeitos, voltamos pela mesma estrada, sentido noroeste, e chegamos ao centro urbano de Votorantim. Acompanhando o rio Sorocaba, o mesmo que alimenta Itupararanga, cruzamos uma boa parte de Sorocaba até localizarmos a SP-075, a que pegáramos no começo do dia. Ela foi nos conduzindo pelas imediações de Itu, Salto e Indaiatuba até Campinas, onde nos despedimos de Rodrigo. Continuamos pela Bandeirantes até Americana. Rodamos, ao todo, cerca de 400km, uma viagem curta mas que, se não agraciou com muitas belezas cênicas, nos deu a dimensão de que, se a natureza é complexa e complicada, o ser erroneamente chamado humano o é em dobro. Enfim, acredito que os homens que arguem no “alto do morro” são aqueles que abrem a boca em prol de uma bandeira, uma causa, e fecham os olhos para o que realmente é magnífico e digno de ser observado, poetizado. É isso o que tento fazer: transformar visões, muitas vezes nem tão belas, em palavras, em imagens. Em português plano: auguro modificar a realidade dura e problemática para algo que a mente possa facilmente assimilar e, no futuro, recordar com saudades.
Na falta de inspiração para uma conclusão digna, termino essa postagem com a frase do viajante Amyr Klink: “Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver”. Aguarde-me, Tocantins.


Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.


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E abaixo, um blues composto especialmente para o Morro do Saboó e para a Serra de São Francisco.