sábado, 14 de abril de 2012

Três Marias – de 05 a 08 de abril de 2012


Como se fosse um rio, a vida segue seu curso. Ao som de acordes dissonantes a existência humana se arraiga cada vez mais profundamente no fértil solo da Terra. Temos comprovado vangloriosamente, vez sobre vez, nosso domínio sobre a natureza, mesmo que em muitas oportunidades as respostas nos venham à altura: catástrofes ambientais, como grandes tsunamis e portentosos terremotos, não são assim tão raras e, pelo menos enquanto são veiculadas por algum meio de comunicação, as tememos. Elas – e somente elas – deveriam ser a prova cabal de que o mundo é um organismo que independe da nossa existência. Se as águas dos revoltos mares precisarem abrir caminho através do continente, não pedirão permissão ao “grande” ser humano. Na verdade, nós, como todas as outras espécies de seres vivos, somos dependentes diretos do que foi naturalmente edificado pela história natural, ou a história do Planeta Terra. Desde os primórdios alicerçamos nossas povoados às margens dos rios que nos proviam maior abundância de água e peixes. Hoje parece que perdemos o respeito por eles, pois simplesmente temos tudo às mãos, bastando que se compre no local mais conveniente. Portanto, por mais que manipulemos a natureza com o único intuito de evoluir – entenda-se “evoluir” como consumir, ostentar – ainda pagaremos um preço maior por toda essa degradação. Como se fosse um rio, a vida seguirá seu curso, é bem verdade. Resta saber até quando este rio permanecerá, sereno, em seu leito.
Dois aventureiros e um destino
Minas Gerais novamente: eis o destino da mais recente incursão. Os escusos motivos que nos levaram a escolher a cidade de Três Marias como escopo poderiam ser muitos, mas Rodrigo Costa Gil e eu os sintetizamos em apenas dois: o primeiro, conhecer o Rio São Francisco, ou “Velho Chico”, simplesmente o maior rio inteiramente em território nacional (o Amazonas nasce no Peru e, portanto, não é estritamente brasileiro); o segundo, desbravar a região noroeste do Estado mineiro, esta até então desconhecida por nossos intrépidos espíritos. Olhando de soslaio esta região no mapa de Minas Gerais, saltou-nos aos olhos uma respeitável mancha azul entre os municípios de Três Marias e Morada Nova de Minas. Pesquisando mais intensamente, tomamos conhecimento de que era uma represa insuflada pelas águas do rio supracitado. Estávamos, portanto, decididos a enfrentar a dura realidade das vicinais mineiras para suprir essas lacunas. Certamente nos maravilharíamos com a beleza dos desenhos de seu complexo relevo, mas pretendíamos ir além disso. Colocaríamo-nos também de frente a um bombardeiro de grosso calibre, que de suas entranhas cospe grandes quantidades de informações históricas. Estas, garanto, muito nos fazem evoluir como alunos. Quem viaja, com interesse e abertura a dados, aprende mais do que em qualquer escola. Isso quem diz é um incansável viajante que, nas horas vagas, tem sido professor por carreira.
Rodovia Anhangüera
Rodrigo e eu partimos da altitude de 623 metros do portal de Americana em uma quente manhã de outono. Com os termômetros acusando pouco mais de 30ºC, enveredamo-nos pela fastidiosa Rodovia Anhangüera, errando através das enormes plantações de cana-de-açúcar em sua primeira centena de quilômetros. Em Leme, um Cristo Redentor ao alto de um aparentemente elevado morro nos saudava com um ar distante. O morro, porém, não era tão grande quanto os imponentes tonéis onde o conhaque e a cachaça repousam, aguardando a retirada para o envase, nas imediações de Pirassununga. O horizonte escasso de nuvens nos exortava a prosseguir, e devo dizer que a ausência dos mares de cana após adentrarmos os domínios de Santa Rita do Passa Quatro não foi muito lamentada. Uma tímida vegetação, deste ponto em diante, parecia hastear a bandeira e demonstrar a força da estação mais amarelo-esverdeada do ano. Toda a volúpia, não obstante, logo se esvaneceu, pois alcançamos uma área extremamente urbanizada e, portanto, visualmente poluída. Tratava-se das imediações do município de Cravinhos. Para elongar ainda mais o visual urbano, atravessamos um bom pedaço de Ribeirão Preto. Deste município para frente tudo começaria a ficar mais interessante.

Rio Sapucaí em processo de assoreamento

Primórdios da Serra da Canastra
Acessamos, ainda em território ribeirão-pretano, a Rodovia Cândido Portinari, e nesta permaneceríamos até a divisa com o Estado de Minas Gerais. Logo em seu princípio descemos o vale do Rio Pardo, subindo-o ulteriormente em direção a Brodowski, cidade onde foi concebido o grande artista plástico brasileiro que emprestou o seu nome à rodovia. Os cafezais passaram a ser a cultura dominante, livrando-nos por ora da mesmice proporcionada pela monocultura canavieira da Região Metropolitana de Campinas. A apenas poucos quilômetros de Franca, o núcleo da indústria calçadista paulista e quiçá do Brasil, aproveitamos para apear de nossas motocicletas às margens do Rio Sapucaí. Por uma leve trilha consegui visualizá-lo mais proximamente e, infelizmente, o cenário não se descortinou muito nobremente. Seu leito se encontra em um avançado processo de assoreamento, o que pude notar na margem oposta a que eu estava. As gloriosas águas barrentas desse importante afluente do Rio Grande, nascido entre Cássia dos Coqueiros e Cajuru e com curso total de 240km, dividem naturalmente os municípios de Batatais e Franca. Fotografá-lo foi um alimento a mais para a minha misantropia. Como as águas deste tortuoso rio, carecíamos de prosseguir, pois procurávamos um caminho rumo ao Rio Grande.
Vale do Rio Grande
As fazendas coloniais à beira da rodovia, bem como o perímetro urbano de Franca, foram ficando para trás. A estrada se embruteceu, adquirindo um ar mais rústico e, portanto, mais condizente com o nosso espírito. Sorrateiramente avançamos em direção à divisa de São Paulo com Minas Gerais, visualizando a nossa direita algumas elevações montanhosas com um desenho interessante. São os primeiros morros da grande Serra da Canastra, mesmo que aqui eles não estejam teoricamente dentro dos limites do Parque Nacional. Quanto mais belo o caminho, mais o tempo voa, e no rastro da umidade do Rio Grande uma bela paisagem se descortinou no alto da serra: a cidade de Rifaina, banhada pela águas de Represa de Jaguara, mostrava-nos o seu cartão de visitas. Era o derradeiro ermo do Estado de São Paulo. Do outro lado, Minas Gerais. A cidadela com cerca de 3000 habitantes e munida de muito garbo, mesmo que artificial, foi alvo de nossa primeira duradoura parada para descanso. Digo artificial porque o curso do Rio Grande, às margens deste município, foi represado e potencializado em 1971, possibilitando que a Hidrelétrica de Jaguara, construída no lado mineiro, passasse a gerar uma maior quantidade de energia.

Rifaina e a Represa de Jaguara vistas do alto da serra

Ponte para Minas sobre Jaguara
Descemos a serra para o grande “mar doce” de 30km². Chegando à cidade, logo nos enturmamos com alguns comerciantes e com um séquito de Conselheiro Lafayete, que resolvera aproveitar o feriado neste local. A uma altitude de 580 metros, demos um descanso às nossas motocicletas e caminhamos a pé pela orla da Praia Artificial de Rifaina. A limpidez da água, que ondulava docemente ao soprar do zéfiro, nos chamou a atenção. Coqueiros aparentemente recém-plantados contribuíam ainda mais com o aspecto litorâneo deste recôndito. Do Teatro de Arena, construído nos moldes do Coliseu romano, uma magnífica visão da ponte sobre a Represa de Jaguara, que ulteriormente nos levaria ao querido Estado de Minas Gerais, nos instava a prosseguir. Volvendo ao portal da cidade, em construção, dirigimo-nos à ponte, voando baixo feito os suiriris e os bem-te-vis que gorjeavam no topo das árvores de Rifaina, e logo em seu princípio apeamos novamente para mais uma sessão de fotos. Eram os últimos passos em solo paulista. Fotografando ao lado de pescadores, já me familiarizava com o distinto sotaque do povo mineiro. Do outro lado da ponte, o antigo Sertão da Farinha Podre, hoje Triângulo Mineiro, nos aguardava. Aproximávamo-nos do verdadeiro objetivo de nossa empreitada, que começara a 400km atrás.
Hidrelétrica de Jaguara
Transpassamos a ponte. Os pneus de nossas motocicletas se atritavam agora com o solo de onde os índios Caiapós extraíam o seu sustento, isso muito antes de corajosos paulistas abrirem este caminho a facão para escoar o café de São Paulo para Goiás e Mato Grosso. A rodovia prosseguia paralela as chamadas Serra da Cana Brava e Serra do Palmital, à direita, representantes também excluídas da Serra da Canastra. Adentramos uma estreita via asfaltada, poucos metros após passarmos a represa, e as cancelas do Balneário da Vila de Jaguara foram içadas para a nossa passagem. Intentamos alcançar a barragem da Hidrelétrica de Três Marias, mas um truculento vigilante, do alto de sua guarita, nos dissuadiu de tal empreitada. Fotografamos a partir da cerca mesmo, registrando de relance o escoadouro. Sem permissão para seguir adiante, voltamos um naco de estrada e nos embrenhamos por uma ramificação da mesma, deparando-nos poucos metros depois com um templo católico abandonado. De formato piramidal, a edificação contava com um guardião de olhar desconfiado: um urubu. Aparentou estar debilitado, mas não arredou pé em momento algum. Por detrás do templo, vidraças quebradas nos permitiram uma invasão. Belas luzes de teto, uma cruz, um oratório e um púlpito, conservados apesar do abandono. Descendo uma escadaria localizei uma espécie de almoxarifado recheado de morcegos. Com um rio como o Grande por perto, não havia motivos para permanecer ali. Debandamos prontamente.

Templo católico abandonado às margens da Represa de Jaguara

Represa de Jaguara no lado mineiro
Localizei, saindo do perímetro do templo, uma trilha em meio à vegetação. Desci por ela, através do cerrado e de belas flores arroxeadas, e deparei-me novamente com as águas da Represa de Jaguara. Contudo, agora eu estava do lado mineiro. Rodrigo criou coragem e poucos minutos depois se juntou à contemplação do local. Olhando por sobre as pedras conseguimos enxergar a barragem da Usina de Jaguara. Foi um alento para quem tentara o mesmo momentos antes. Aliás, aproveitando o ensejo, é realmente uma pena que grande parte das usinas hidrelétricas não tenha uma estrutura para recepcionar visitantes. Quando são construídas, modificam a vida de vários municípios e dos ecossistemas adjacentes. O mínimo que poderiam fazer é propiciar o conhecimento ao povo, para que o mesmo sofra com as modificações impostas pela demanda cada vez maior de energia, mas que saiba porque sofre. É preciso entender que o progresso acarreta mudanças que nem sempre serão benquistas. Lamúrias à parte, unimo-nos às nossas motocicletas e, à sombra de um abacateiro, ao som dos assovios de uma choca-da-mata, repousamos por alguns minutos e repensamos a rota que faríamos a partir dali. O Sertão da Farinha Podre nos mostrava sua falta de indulgência descarregando 35ºC sobre nossos desgastados corpos.
Estação de Cipó
Deixamos a Represa de Jaguara, retornando à rodovia principal que, pensávamos, nos levaria a Sacramento, onde resolvêramos pernoitar. No entanto, eu ainda pretendia conhecer a Estação de Cipó, construída em 1889. Segundo meu mapa, ela poderia ser acessada por uma estrada de terra paralela ao Rio Grande. Localizamos esta poeirenta via e, sob o olhar do gado mineiro e protegidos pela Serra da Rifânia, meia hora depois nos deparávamos com esta antiga ramificação da Mogiana. Alguns cachorros de uma propriedade vizinha à estação nos deram uma certa dor de cabeça, mas os esparvalhados canídeos se mostraram dóceis ao atracarmos em frente aos escombros de Cipó. Vencemos uma cerca de arames farpados e presenciamos a depredação imposta a este local histórico. Simplesmente não consigo entender o porquê de se fazer tão pouco caso com a história de nosso povo. Telhados em ruínas, pichações por sulcos, o matagal invadindo: eis alguns dos agravantes da situação. Das janelas o Rio Grande era visto em todo o seu esplendor, bem como um casal de corujas que atentamente nos observava. Toda aquela degradação me abateu, tal como o Rio Sapucaí o fizera na manhã do mesmo dia. Precisava deixar aquele ambiente. Subindo a Serra da Rifânia, seguimos por terra rumo a Sacramento.

Rio Grande visto através das ruínas do antigo Sertão da Farinha Podre

Vista do alto da Serra da Rifânia
Do alto da Rifânia o panorama era outro. De uma clareira em meio à mata fechada visualizamos uma boa parte do vale do Rio Grande. Mais à frente, na mesma estrada, um riacho apressado descia serra abaixo sobre uma ponte de madeira. Os tucanos e as gralhas cancans que sobrevoavam nossas cabeças pareciam nos indicar o caminho. Em menos de dez minutos estávamos em frente à portaria da Gruta dos Palhares, a maior gruta de arenito das Américas. Contudo, os relógios marcavam dezessete horas e cinco minutos. O local fora fechado às dezessete. Sem ter o que fazer, deixamos as cerradas grades da gruta e partimos, agora via asfalto, rumo ao centro de Sacramento, cidade com pouco mais de 20 mil habitantes construída a 870 metros de altitude. Pernoitamos neste município hemiiespírita, hemicatólico. O primeiro colégio kardecista do Brasil, o Alan Kardec, foi edificado aqui em 1905, e até hoje subsiste. Para os aficionados por turismo religioso, o que não é o meu caso, Sacramento é um prato cheio. Fomos dissuadidos pelos moradores da ideia de visitar a Gruta dos Palhares no dia seguinte, visto que seria feriado religioso e, segundo consta, o povo da cidade não trabalha em tais datas.
Sacramento
Como era de se esperar, contrariamos todas as prerrogativas e, logo pela manhã de sexta, dia 06, debandamos do centro de Sacramento e regressamos a Gruta dos Palhares. Para a nossa sorte, alguns jardineiros cuidavam dos bem floridos jardins nos entornos do atrativo, o que nos possibilitou a entrada. Um chafariz no centro de um lago circular, com uma espécie de confessionário ao fundo, nos indicou o caminho para a única parte acessível desta que é a maior gruta de arenito das Américas, como já frisado. Pela “porta de entrada” de 22 metros de altura, seu interior, pano de fundo perfeito para a nidificação de aves, como as andorinhas, pôde ser acessado. Diz-se que sua primeira parte, a que estávamos, é capaz de abrigar 5 mil pessoas. Existem outras ramificações não abertas à visitação, que juntas se introduzem por aproximadamente meio quilômetro rocha adentro. O que nos deixou boquiabertos foram as tonalidades do interior da gruta, variando de vermelho para verde, e os maracanãs que, de cabeça para baixo, descansavam agarrados aos ramos da vegetação que se excedia sobre as bordas do imenso “batente” natural. É realmente um ermo marcante, e o trabalho meticuloso dos jardineiros o embeleza ainda mais. A umidade do interior de Palhares veio bem a calhar numa quente manhã mineira. Do teto goteja, ininterruptamente, a água que, nesta viagem e durante toda a história natural do mundo, tem possibilitado a vida.

Gruta dos Palhares

Rio Quebra Anzol
Já era o segundo dia de viagem e nos encontrávamos ainda na metade do caminho para Três Marias. Incontinenti, então, partimos de Sacramento, contornando a Serra da Canastra pelo flanco oeste e trespassando o Rio Araguari. Errando serra acima e serra abaixo, calhamos na bela estrada de acesso a Araxá, repleta de acácias que contrastavam com as curvilíneas nuvens brancas de um firmamento azul. Em direção a uma região conhecido como Alto do Paranaíba, atracamos às margens do Rio Quebra Anzol, importante afluente do Araguari. A música Cabocla Tereza, na voz de Sérgio Reis, ribombava de algum lugar, mas não conseguimos precisar a sua origem. Prosseguindo, alcançamos a pequena Catiara e a alta Serra de Salitre, onde meus instrumentos marcaram 1220 metros de altitude. Procurando por combustível, descemos para Brejo Bonito, onde felizmente o conseguimos. Enveredamo-nos por uma estrada de chão e cruzamos Aparecida de Fortaleza, na qual acessamos uma vicinal que nos desembocou em Guimarânia. Setenta quilômetros depois passávamos sobre o Rio Paranaíba e contornávamos Patos de Minas, local em que uma região que apelidamos de “vale da lua” se principiava. Isso porque a BR365, deste ponto em diante, era basicamente buracos e areia. Com a chuva e com o tráfego intenso de caminhões serpenteando para desviar das ravinas, levamos mais de duas horas para vencer um trecho de pouco mais de 50km. Cheguei a tombar a minha moto em uma parada no acostamento, precisando da ajuda de Rodrigo para realinhá-la.
Lago de Três Marias
A chuva cessara. A BR040 já era uma realidade. Esta seria a pavimentada estrada que nos apresentaria ao “Velho Chico”. Por 50km permanecemos nesta importante rodovia brasileira, passando sobre o Rio Abaeté e pela cidade de São Gonçalo do Abaeté. Ao término desse curto percurso, uma ponte de aproximadamente 300 metros de comprimento nos serviu como mirante. Ainda sobre nossas motos, contemplamos vagarosamente as águas marrons do Rio São Francisco, o mais brasileiro de todos os rios. Com seus quase 2900km de extensão, nasce na Serra da Canastra e atravessa cinco diferentes Estados brasileiros: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. Deságua no Oceano Atlântico, após fazer a divisa natural entre os dois últimos Estados. Já foi – e ainda é – alvo de inúmeras polêmicas no que diz respeito à transposição de suas águas nas partes mais secas do Nordeste. É muito procurado por pescadores de todo o Brasil, que em seus barrancos ou sobre barcos permanecem por horas a fio com iscas diversas mergulhadas em sua imensidão. Como não havia local propício para apearmos às margens do “Velho Chico”, como é carinhosamente chamado por muitos, entramos no município de Três Marias e seguimos as indicações para a Usina Hidrelétrica de Três Marias, visando, desta forma, topar com a Lago de Três Marias, que é uma área em que o curso do São Francisco foi potencializado e transformado em reservatório para gerar energia.

Rio São Francisco

Cai a noite sobre o "Velho Chico"
Localizamos a Usina. Como previsto, não pudemos adentrá-la. Isso não nos fez abaixar a cabeça pois, de qualquer forma, estávamos próximos a um dos mais importantes rios do mundo. Vimos o lago, a Represa de Três Marias, dançar ao som dos ventos que ameaçavam trazer uma tormenta de grandes proporções, e um pedaço da barragem. Erramos por alguns bairros da cidade e nos deparamos com a represa novamente, em outro ponto. As águas, límpidas como a de Jaguara, mas um naco mais escuras, de um azul mais intenso, nos convidavam a uma contemplação mais próxima. Contudo, a iminência da tempestade e a caída da noite nos exortaram a procurar um local para dormir. Pilotamos pelo centro da cidade de Três Marias, e os trinta mil habitantes da cidade, de repente, pareceram se multiplicar, pois não encontramos sequer uma vaga de albergue. Restou-nos deixar a cidade, regressar à ponte sobre o São Francisco, atravessá-la e procurar guarida nas imediações do próprio rio, mas em território do município de São Gonçalo do Abaeté. No fim das contas, não nos arrependemos de não ter ficado mais próximo a Represa de Três Marias. Por mais que visualmente ela seja mais bela e imponente do que o próprio rio, com mais de 1000km² de superfície, não goza da mesma história do “Velho Chico”. Não tem o seu poder. Escorregando pelos barrancos do grande rio, à noite, tive a sensação de dever cumprido. Não perguntei se Rodrigo sentia o mesmo. Os aventureiros se compreendem calados.
Arara-canindé
O dia 07 rapidamente alvoreceu. Rodrigo ainda repousava quando me uni à imensa multidão de pescadores, nos barrancos às margens do rio, para fotografar o “Velho Chico” com abundância de luz. Já havia notado no dia anterior, mas reforcei a minha impressão de que as águas se tornam mais barrentas após passarem pela barragem de Três Marias. Na represa, menos de meio quilômetro rio acima, as águas eram azul escuras. Questionei alguns barqueiros, mas ninguém soube me responder o porquê disso. Algumas dúvidas permanecem em nossos encéfalos por anos a fio e, de repente, num lampejo, são destrinchadas. Talvez essa seja uma destas. O bom é estar em dúvidas admirando o rasante milimétrico das garças, as araras-canindés nas copas das árvores adjacentes ao leito e o sanhaçu-do-coqueiro saltitando entre os frutos de um mamoeiro, apesar de seu nome o relegar a outra árvore. Quando Rodrigo reapareceu, debatemos sobre o que faríamos em seguida. Era óbvio que havia muito mais a se conhecer na região. Tudo o que viria depois seria uma espécie de bônus, uma recompensa para a lida. Um comerciante local nos informou que no distrito Andrequiçé, de Três Marias, poderíamos encontrar algumas cachoeiras. Incontinenti nos despedimos, por ora, do São Francisco, partindo para o supracitado local. Do acostamento da estrada, em um ponto elevado, tivemos um último panorama, toscamente registrado por minha câmera, da Represa de Três Marias.

Panorâmica da Represa de Três Marias

Perdidos em Andrequicé
Em Andrequicé, distrito onde viveu Manuelzão, personagem marcante de Guimarães Rosa, apenas algumas casas e uma velha igreja, e nada mais. Há inclusive um museu com o seu nome, idealizado na própria casa onde viveu. O povo, logo nas primeiras horas da manhã, se aglomerava no único bar local com certo rebuliço. Foi em meio a este “tropé” que consegui um mapa de papel, feito à mão por um indivíduo semi-inebriado, para a Cachoeira do Riachão, a mais bonita de toda a região, segundo o próprio. Deixamos o asfalto e, cerrado adentro, erramos pela zona rural de Andrequicé. Passamos por alguns perigosos mata-burros e o terreno foi se complicando. Quando alcançamos uma alameda entre eucaliptos, então, tivemos que cessar a peleja sobre as motos. Tomamos tal decisão ao ver um caminhão praticamente mergulhar numa barrenta poça d'água. Seria impossível sairmos ilesos deste “charco” caso resolvêssemos atravessá-lo com nossas motocicletas. Estudamos um caminho por entre os eucaliptos, mas não obtivemos uma rota satisfatória. Decididos a não desistir, camuflamos as motos em meio às galhadas e prosseguimos pela estrada a pé, acreditando que a tal cachoeira não se encontrasse tão distante. Aos silvos de aviso de um filhote de carrapateiro e pisando sobre grandes pegadas de antas, perambulamos por 4 horas, andando 6km sob um intenso sol e, no fim das contas, não encontramos água alguma, a não ser aquela empoçada nas valas da estrada de chão. Batemos em retirada, reavendo nossas motos e nossa bagagem e voltando a Andrequicé para uma profunda reidratação.
Balsa para Morada Nova de Minas
A hora de regressar, agora para casa, se aproximava. Afinal, já era quase fim de tarde e uma distância de 900km nos separava de nossos lares. Pretendíamos ganhar o máximo de terreno possível até o término do dia, com vistas a tornar a lida do domingo menos esmagadora. Debandamos de Andrequicé, retornamos à BR040 e, ao invés de seguirmos sentido Três Marias, pendemos para a direção de Belo Horizonte. Uma forte chuva desabou sobre nós, atrasando um pouco o ritmo que adotáramos. Com o intuito de pegarmos um atalho, embrenhamo-nos por uma estrada de terra que, depois de 20km, nos deixou às margens do extremo leste da Represa de Três Marias. O local, chamado Porto Novo, dispõe de uma balsa de porte médio para o transporte de pessoas e veículos para o lado sul da represa, onde está situado o município de Morada Nova de Minas. Estacionamos nossas motos sobre a balsa e pudemos contemplar, pela última vez nesta incursão, o lago azulado contrastando com as tímidas elevações da serra adjacente. O sol, ameaçando abandonar-nos a oeste, escondia-se sobre um emaranhado de nuvens dismórficas, airando interessantemente o horizonte. Nossa contumácia aventureira resistiu, como o bambuzal sufocado pelas águas represadas do “Velho Chico” próximo ao ponto de embarque da balsa, às dificuldades, à fome e à impetuosidade dos ermos brasileiros.

Um último olhar às águas de Três Marias

Biquinhas
Nada estava acabado. Muito pelo contrário. A barulhenta balsa nos deixou à própria sorte em um local que acreditávamos ser Morada Nova de Minas. Porém, a descoberta de que ainda precisaríamos vencer mais uma estrada de terra exigiu energia extra de nossa parte. Como sempre, resistimos à poeira e à imperfeição do terreno e adentramos Morada Nova de Minas, apenas para novamente nos decepcionarmos. Não havia como dormir por lá. A noite e um frio suportável, então, nos acompanharam até o próximo município. Biquinhas, com seus 3000 habitantes, foi o nosso último local de pouso. A bela lua de Minas Gerais era vista pela última vez. No dia 08, logo pela manhã, fotografei uma típica casa mineira, de barro, nas proximidades da Igreja Matriz. De Biquinhas para frente, por todas as estradas em que erramos, a palmeira-buriti, soberana do cerrado, foi nossa sempre agradável companhia. O capim-favorito dos acostamentos também. Cruzando rapidamente por Abaeté, Quartel Geral, Dores do Indaiá, Luz e Córrego Danta, alcançamos Cambuí, onde nos enveredamos por uma estrada de terra que se ramificava das imediações do CEFET. Descendo sentido Piumhi, contemplávamos agora o flanco leste da Serra da Canastra rumo ao vale do São Francisco, que não demoramos muito a palmilhar. Pela segunda vez na mesma viagem, e a 300km de distância do primeiro ponto, passávamos sobre o “Velho Chico”, agora bem mais próximos de sua nascente. Apresentava-se com águas ainda barrentas, mas com um leito mais pedregoso. De uma margem à outra uma distância de talvez 50 metros, bem menor que os 300 de Três Marias. Parecia mais tranquilo, mais imune à presença quase predatória dos pescadores de Três Marias. Foi nosso último contato com o mais brasileiro de todos os rios.

"Velho Chico" em Piumhi

Hidrelétrica de Furnas
Numa lenta toada, Piumhi, em meio à serra, surgia diante de nossos cansados olhos. Não tivemos o prazer de colocar os pés em seu solo, deixando apenas os pneus de nossas motocicletas sentirem tal gosto. Na MG050, os contornos do Lago de Furnas, o mar de Minas, já eram uma grata companhia. Passamos pelo trevo de Capitólio e, para encerrar a viagem com a visão de pelo menos uma hidrelétrica, acessamos Furnas, onde um mirante possibilita uma panorâmica perfeita da usina e das corredeiras do Rio Grande. Como que nos saudando pela magnífica incursão, um belo carcará, a poucos metros de onde estávamos, se deixou fotografar inúmeras vezes. A ave símbolo de minhas jornadas, e somente ela, foi a minha motivadora para vencer os 400km restantes, pilotando por Alpinópolis, Carmo do Rio Claro, Alterosa e Areado. Deixando a região de Furnas, contornamos Monte Belo, o trevo de Muzambinho e o perímetro da bela e fria região de Poços de Caldas, descendo posteriormente a escorregadia Serra de Andradas. Num estirão final, cruzamos a divisa Minas Gerais/São Paulo, alcançando pouco tempo depois os entornos da cidade de Mogi Guaçu. Daí para Americana, pouco mais de 100km. Rodrigo e eu seguimos caminhos diferentes a partir de Mogi Mirim. Ele permaneceu na mesma rodovia até Campinas, onde reside. Eu, solitário, rumando sentido Limeira e Americana, lembrei-me de que, antigamente, viajava só, e hoje disponho de parceiros para boa parte de grandes aventuras como esta. Recordei-me também de pessoas que, ao invés de tentarem me dissuadir de meus devaneios, realçando o perigo em vez da alegria de viajar sobre duas rodas por esse Brasil afora, me incitam a continuar nesta cruzada sem fim rumo ao meu grande objetivo final: escancarar o meu país, seu povo, suas origens, suas belezas naturais e seus incontáveis problemas. Meu rio segue o seu curso.
Quando o começo e o fim de tudo pouco importam, o meio demonstra sua beleza. Treinar o olho não somente a ver, mas a enxergar em minúcias, é a mais alta forma de adaptação dos sentidos ao ambiente que nos cerca. Vivendo desta maneira, passamos não somente a ansiar pelo fim e a abandonar nossas origens, mas a alcançar um objetivo especial não deixando de lado toda a distância que separa um do outro. Uma reta certamente é o mais curto caminho entre dois pontos, mas palmilhar uma linha sem curvas nos priva de todas as visões proporcionadas pela sinuosidade de uma rota alternativa entre estes mesmos dois pontos. Complicar ocasionalmente é mais prazeroso do que simplificar. Problematizar é não entregar-se ao acaso. Que sejamos, portanto, comparáveis ao “Velho Chico”: tortuosos em nossos caminhos. E que também tentemos abraçar grande parte do mundo com nossos caudalosos sentidos.


Mais fotos aqui.

E abaixo, um blues composto especialmente para o mais brasileiro de todos os rios: o São Francisco.