Certa vez fui interpelado por um aluno quando já encerrara minhas atividades docentes e cruzava o enegrecido pátio da escola a passos largos, augurando montar em minha moto e dar prosseguimento ao estafante dia. O menino de 7 anos, munido de sua inocência sem máculas (isenta de futilidade e ignorância por se tratar de uma criança), questionou-me abruptamente: Professor, o senhor trabalha? Aquela pergunta me atingiu na mandíbula, tonteando-me a ponto de me hirtar-me por alguns segundos, tendo minha expressão (ou a falta dela) acompanhada pelos atentos olhos do infante, que aguardava uma resposta. Após um breve momento de introspecção, obtemperei que sim, que dar aulas é um trabalho tão nobre quanto o de seu pai, possivelmente um operário, como 98% das pessoas daquela comunidade. A curiosidade do menino foi satisfeita, aparentemente, mas devo admitir que não a minha. Tal questão retumbou em minha cabeça pelo resto do dia, obrigando-me a reflexões semelhantes às daqueles tempos de universidade em que os pensamentos rebeldes do marxismo ocupavam minha cabeça. Ocorreu-me que dei uma resposta socialmente aceita e sensata para o pequeno, mas que em nenhum ângulo realmente demonstrava a maneira como vejo a questão do trabalho e da vida, propriamente. Logicamente eu não teria condições de explicar, numa linguagem juvenil, que todos somos engrenagens no motor de um sistema que, ironicamente, parece não funcionar em nosso prol. Mesmo com adultos é uma tarefa quase impossível, especialmente se estão subsistindo por inércia, olvidando-se da História da humanidade. Ocorreu-me que sou um hipócrita, pois não falo e não faço o que penso, mas o que convém dizer sem causar alarde. Em outras palavras, dissemino o conformismo (como se ele já não estivesse assentado em nosso ideário há muito tempo!). Por fim, conclui que, apesar de “dançar conforme a música” no dia a dia, quando viajo sou inteiramente eu, sem máculas, sem hipocrisia, sem medo de encarar e questionar como o menino que me "destroçou" naquele dia. Viajar ainda é um dos últimos exercícios de liberdade, e é por isso que já desisti de muitas coisas, mas continuo viajando.
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Rumo ao noroeste paulista |
A ideia de conhecer Altinópolis, no noroeste paulista, é originária da viagem ao Jalapão, que pode ser conferida neste link. Thiago Lucas Santos, Luana e eu cogitamos passar por lá, na regresso, mas optamos por postergar a visita para a desbravarmos com mais calma em uma outra ocasião. Pois bem, esse dia chegara, e sem Thiago Lucas, mas com a companhia de Rodrigo Gil, Luana e eu partimos, na manhã do dia 18 de janeiro, pela fatídica rodovia Anhanguera, sentido interior. Foram 160 enfadonhos quilômetros até os entornos do munícipio de Cravinhos, onde guinamos para o leste pela SP-271, uma estrada de mão dupla, sinuosa, pouco movimentada e que dá acesso a antigas fazendas de feições coloniais. Infelizmente, ao tentar aproximarmo-nos dessas para algumas fotos, deparamo-nos apenas com porteiras trancadas. Rapidamente, então, passamos pela movimentada Serrana, cruzamos o rio Pardo e, após 220km rodados desde Americana, calhamos em Altinópolis, cidade conhecida por suas grutas e cachoeiras e que, apesar do nome, não se encontra a uma altitude muito elevada. São meros 900m, segundo meu altímetro. A designação correta não tem a ver com sua altura em relação ao nível do mar, mas sim com o nome do presidente do Estado de São Paulo à época de sua elevação a município, em 1918, o doutor Altino Arantes. No centro urbano há cerca de 15 mil habitantes e, apesar da típica e convidativa praça central com a igrejinha católica, onde tudo parece acontecer, procurávamos algo mais e, portanto, um amontoado de domicílios, comércios e gente simpática se preparando para uma festa não nos segurou por muito tempo. Corremos para o mato.
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Gruta do Itambé |
Optamos por nos dirigir primeiramente ao atrativo mais próximo do centro urbano: a Gruta do Itambé. De fato, regressamos 8km pelo caminho que nos levara até ali e adentramos uma estrada de chão batido ao sul, bem sinalizada. Permanecemos nela por meros 2km, visualizando o Morro do Seladinho, ao leste, e topamos com o portal de entrada do Parque da Gruta de Itambé, de chancela municipal. Nele fomos obrigados a deixar nossas motos, assinar uns papéis e caminhar mata dentro por uma área muito bem preservada. A vegetação de porte médio, que na verdade se trata da mata ciliar do córrego Água da Prata ou do Itambé, proporciona uma caminhada repleta de surpresas meritórias de menção, como as imensas teias de aracnídeos, que usam galhos de diversas árvores para as ancorarem, dando a impressão de estarem flutuando sobre nossas cabeças; a aparição tímida da ariramba-de-cauda-ruiva, uma ave relativamente pouco vista, assemelhando-se a uma andorinha, mas de porte maior e com cores bem mais vivas; e o cruzamento pela trilha de grandes teiús, primitivos lagartos que elevam seu sangue frio nas clareiras da mata, sobre o chão aquecido da trilha. Apesar de tudo, chegar à gruta foi a maior das gratificações, o que conseguimos após 300m de caminhada. É uma imensa estrutura de arenito, com 28m de altura e uma galeria que se estende por 350m a partir de sua entrada. Um regato de uma mina que nasce ali dentro a entrecorta calmamente, ora iluminado pelos raios solares que conseguem adentrar os primeiros metros ora totalmente obscurecido pela negritude das áreas mais profundas. Seria um cenário perfeito se não fosse pela sempre esmagadora de prazeres mão humana, pois cerca de 20 metros gruta adentro foi edificada uma capelinha em louvor ao Pai João. Não estou aqui reclamando do homem homenageado em si, mas da poluição visual causada por tal obra. Como purista, acredito que a identidade visual original de toda e qualquer obra da natureza tenha que ser compulsoriamente mantida, com o mínimo possível de interferência humana.
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Mina no interior da gruta |
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Ariramba-de-cauda-ruiva |
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Aracnídeo "flutuante" |
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Libélula-azul |
Da entrada da Gruta do Itambé se ramifica uma outra trilha, bordejante ao córrego Seco, correndo livre pela mata mais densa. E o campo de pouso e decolagem de dezenas de libélulas-azuis. Pequenas quedas d'água pontilham o caminho, um pouco mais complicado que o trecho Portal do Parque – Gruta do Itambé, não chega a ser desafiador, mas é preciso estar atento às raízes sobressalentes, possuidoras da capacidade de derrubar os caminhantes mais displicentes. No fim da trilha, praticamente todo em declive, topa-se com a Cachoeira do Itambé, um imenso paredão de arenito com a mesma coloração da gruta homônima. Dele despenca, de 60 metros de altura, as águas do antigo córrego Água da Prata ou Taimbé, hoje conhecido apenas como Itambé (pico ou monte agudo, em tupi guarani). Na verdade, apenas um filete vertia do alto, e isso se deve a dois fatores: primeiro, o janeiro de 2014 foi totalmente atípico, visto que quase não choveu; e segundo, por haver na parte alta do córrego muitos sítios e, consequentemente, plantações, o que vem assoreando seu leito e diminuindo o fluxo d'água. O poço arredondado, por exemplo, tem mais de 30m de diâmetro, mas é evidente na vegetação adjacente que o nível da água está bem abaixo do normal. Não que isso tenha nos impedido de encarar um banho gelado e nos deliciarmos com a massagem natural proporcionada pela delgada cascata. Como primeira cachoeira da incursão, eu diria que nos demos bem. A segunda prometia mais, e rapidamente, antes que o sol se pusesse para as bandas do oeste, nos dirigimos a ela.
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Cachoeira do Itambé |
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PCH do Esmeril |
Localizar a cachoeira do Esmeril não foi uma tarefa fácil. Não detínhamos nenhuma informação mais precisa além da que se situava nas proximidades da vicinal que liga Altinópolis a Patrocínio Paulista, cidade próxima à divisa com o Estado de Minas Gerais. Acontece que essa vicinal é bem extensa. Trinta e seis quilômetros após sairmos do centro de Altinópolis obtivemos uma pista, uma pequena placa empoeirada com os dizeres PCH do Esmeril apontando para uma estrada rural. Aí foram mais 7 ou 8km para o sul até finalmente cruzarmos uma ponte de madeira sobre o rio do Esmeril, um importante afluente do rio Sapucaí. Depois dessa ponte topamos com um canal que desvia parte das águas do Esmeril para alimentar as turbinas da PCH dispostas no fundo do vale. Como o desnível entre o canal e a casa de máquinas é de mais de 100m, dois tubos férreos de grande diâmetro descem entre eles, direcionando a água e potencializando sua torrente para a geração de energia. É pelas laterais acimentadas desses tubos que descemos até a casa de máquinas, que por si só já é uma histórica atração, visto ter sido construída nos idos de 1912, já secular, portanto. De uma de suas passarelas, sobre o rio, vê-se ao fundo os 80m de queda da cachoeira tão almejada. Aí foi só abrir os portões laterais da PCH e embrenhar-nos pela mata ciliar para uma aproximação. Sobre as rochas do leito do Esmeril a vista é espetacular. É uma mesa granítica de onde a água cai com vigor, concentrada num único potente feixo. Posteriormente a esse feixo há um paredão de musgo, negativo, sombrio, esverdeado. Atrevo-me a dizer que é uma das cachoeiras mais espetaculares a que já tive o prazer de direcionar meus olhos. E frias também, diga-se de passagem.
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Cachoeira do Esmeril |
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Matriz de Altinópolis |
De volta ao centro urbano de Altinópolis, com a noite já começando a nos envolver, encontramos um local para pernoitar e demos uma volta pela Praça da Matriz, onde uma festa típica de mais de quatro décadas de história acontecia. Era a Folia de Reis, ou Festa de Santos Reis, de cunho religioso, voltado para os Três Reis Magos (Melchior, Baltasar e Gaspar) com mesclas de folclore. Há uma presença marcante da viola caipira nessa que é a primeira festividade do gênero no Estado de São Paulo. É mais comum em Minas Gerais que, de fato, não está a uma distância absurda de Altinópolis, compartilhando com a cidade inclusive a vocação para o cultivo do café. Abriu-se algum espaço para novos talentos musicais da cidade, e também para canções que enaltecem a família Frighetto, cujo falecido Tonico Frighetto foi o fundador da festa na década de 1970. Além de todo esse bombardeio cultural, é uma ótima oportunidade para interagir com os munícipes e com moradores de cidades circunvizinhas que vêm prestigiar o evento. Foi dessa maneira que obtivemos informações sobre outras cachoeiras que pretendíamos conhecer no dia seguinte, como a dos Macacos e a de Fortaleza. Um casal de Ribeirão Preto nos informou, infelizmente, que tais cachoeiras só poderiam ser visitadas mediante a contratação de um guia, um gasto a mais que não estava contabilizado em nosso orçamento.
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Festa de Santos Reis |
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Serra da Vazante |
Amanheceu o dia 19 de janeiro e com ele nosso ímpeto em desbravar o que fosse possível, visto que necessitávamos voltar para Americana no período da tarde. Sem delongas saímos pela cidade entrevistando moradores, comerciantes e frentistas de posto na esperança de encontrar algum guia que nos levasse às supracitadas cachoeiras. Chegamos até a Fazenda Vale das Grutas, onde acontece o famoso Forró da Lua Cheia, na esperança de que nos dessem uma luz, mas inúmeras ligações dos recepcionistas tiveram apenas o silêncio como resposta. Sem guias, que devem trabalhar somente em feriados, não nos deixariam adentrar as propriedades onde se encontram as cachoeiras. Restou-nos, ainda antes do meio dia, dar as costas a Altinópolis e principiar o regresso, primeiramente pela rodovia Altino Arantes, sentido oeste, e depois pela SP-338, sentido sul. Dessa última, olhando-se para o leste, discerne-se a Serra da Vazante. Nossa atenção, contudo, canalizou-se para o oeste, onde uma estrada de chão se entranhava pelas fazendas e sítios. Aí foram 24km de terra, pedra e areia, passando por eucaliptais, milharais, porteiras fechadas e um pequeno lago ladeado por goiabeiras nas quais o coleirinho, empoleirado, cantarola maviosamente. Por fim saímos na SP-333, na qual seguimos para o oeste, passando pelo perímetro de Santa Cruz da Esperança e chegando ao município de Serra Azul, que conta com 12 mil habitantes. Tem uma estação ferroviária antiga, construída em 1905. Os trilhos já se foram há muito tempo, mas seus contornos mantêm o passadismo de uma época em que pessoas e sacas de café embarcavam aqui rumo a São Paulo e Minas Gerais.
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Pelas estradas rurais entre Altinópolis e Serra Azul |
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Lago entre eucaliptais |
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Estação Ferroviária de Serra Azul, de 1905 |
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Pipira-da-taoca |
Não havia mais nada que pudéssemos fazer na região de Altinópolis. Da centenária estação de Serra Azul partimos rumo a Anhanguera, que enfadonhamente nos carregaria de volta para casa. Como ainda tínhamos um tempo antes do pôr do sol, resolvemos parar rapidamente às margens da rodovia no famoso Parque Estadual de Vassununga, onde o Patriarca da Floresta, um enorme jequitibá-rosa, sobrevive ao passar das centúrias (confira mais informações sobre Vassununga neste link). Na única trilha observamos a presença da pipira-da-taoca, uma ave relativamente rara de ser vista, além de inúmeros espécimes de lepdópteros, muitos camuflados nas cores da floresta semidecidual. Caminhar pela trilha curta, mas repleta de estimulos sensoriais, foi a nossa derradeira “missão” nesse 19 de janeiro de um ano ainda neonato, mas que promete extensas aventuras pelo nordeste e pelo norte do Brasil. Em uma época conturbada, em que um campeonato mundial de futebol e em seguida as eleições presidenciais darão um novo rumo ao nosso modo de vida, o motociclista desbravador tem que estar consciente das mudanças pois sabe que, quando viaja, pode ser a última vez que tenha visto cada local em sua forma atual. Quando voltar, tudo pode estar mudado. Tudo pode estar perdido. Ou tudo pode ter melhorado. É uma concisa conclusão tecida nos meros 550km dessa aventura.
Existe uma linha na vida de cada um dividindo a vontade de permanecer e a gana de partir. O que a difere de um indivíduo para outro é a tenuidade, a polegada dessa linha. Enquanto em uns o comodismo, as obrigações profissionais e familiares e a pusilanimidade vão a tornando mais sólida, em outros esses mesmos itens são utilizados como fresas para desbastá-la. É aquele velho papo de quem vê o copo meio cheio ou meio vazio, e embora possa parecer uma questão muito filosófica, é, na verdade, uma conclusão bem simples, mas que, se não explica totalmente a conduta do ser humano, em sua singeleza demonstra o quanto pesamos o que nos é imposto na vida em sociedade.
Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.
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