domingo, 26 de outubro de 2014

Piauí e sertão nordestino – de 16 de junho a 03 de julho de 2014


Antes que os escassos, mas encarecidos e atentos leitores, possam pôr em cheque o título da presente postagem, adianto-me no intuito de esclarecê-lo. Sim, o Piauí é um estado nordestino, muito embora alguns acreditem erroneamente que pertença ao norte (com certeza aqueles mesmos que pensam ser o Tocantins uma cidade, como apontado na aventura do Jalapão). Contudo, assumo, sem medo de ser taxado de redundante, a ignomínia por dispor lado a lado os termos Piauí e sertão nordestino, pois do primeiro não desfrutei apenas do seu sertão, mas também da garbosa área de transição entre caatinga e cerrado e de seu luzidio litoral de águas esverdeadas, que embora seja o menor dentre todos os Estados praianos do Brasil, não deve ser negligenciado por nenhum viajante que se arrisque por aquelas paragens. Dos outros seis Estados, por outro lado, aprofundei-me apenas no flanco oeste, onde o sertão de caatinga é o único e imponente soberano da paisagem. O litoral destes, com exceção de Jericoacara, no Ceará, foi propositadamente deixado de lado. Se retornar ao nordeste é inevitável, que seja para locais ainda desconhecidos. Que as praias, famosas pela beleza cênica e pelo turismo predatório, me aguardem. Por ora me contento com a solicitude gratuita e sincera do povo sertanista.
Vale da cachoeira do Buracão
Em plena copa do mundo saía eu de Americana, no dia 16 de junho, logo cedo, rumo a Patos de Minas, em Minas Gerais, onde pretendia pernoitar. Minha aversão ao futebol comercial (ou “futibol”, como a grande maioria vocaliza) só não é maior nessas épocas porque sua existência foi a responsável por eu dispor de um mês inteiro para viajar. Mesquinharias pessoais à parte, percorri toda a extensão da rodovia Anhanguera no trecho compreendido entre Americana e Igarapava, repassando mentalmente, para burlar o tédio imposto pela paisagem quase que inteiramente dominada pela cana-de-açúcar, os pontos que meu longo planejamento me levaria a visitar durante a viagem. Por volta do meio dia eu adentrava o antigo Sertão da Farinha Podre, hoje conhecido por Triângulo Mineiro, contornando Uberaba pelo anel viário e chegando a Nova Ponte, um pequeno município às margens da represa homônima. Aliás, a rodovia passa sobre a barragem da hidrelétrica, mas de nenhum ponto dela se obtém alguma vista ampla do vale – modificado pelo homem – do rio Quebra Anzol. Mesmo a partir de dois mirantes, bem indicados por placas, a visão é apenas parcial. Em Guimarânia a sorte mudou. Obtive com transeuntes coordenadas para a Cachoeira dos Borges, ou do Buracão, famosa na região. Como o sol ainda raiava alto e Patos de Minas estava próxima, deixei momentaneamente a BR-365, subindo ao norte por uma estrada de terra. Dezessete quilômetros depois eu abria uma porteira, apeava da moto sob uma árvore retorcida típica do cerrado e descia por uma trilha íngreme para o vale, ou “buraco”, onde encontrei a famosa cachoeira de 21 metros de queda livre, cujas águas formam um poço cor de esmeralda, cristalino, tudo com os cumprimentos das pequenas serras que se elevam no extremo leste da mesopotâmia triangulina.


Cachoeira dos Borges, ou do Buracão

Patos de Minas
Foi difícil encontrar um local para dormir em Patos de Minas. Olhavam para a poeira vermelha que recobria meus andrajos e logo diziam não haver vagas, muito embora a cidade e os estabelecimentos parecessem desérticos. Como é uma cidade relativamente grande, com quase 150 mil habitantes, acabei conseguindo guarida nos entornos da Lagoa Grande. O engraçado é que, no dia 17, por volta das 7 da manhã, enquanto eu fotografava as garças e os biguás da área, alguns moradores me confundiram com um jornalista e bradaram algo do tipo “isso! Denuncia essa pouca vergonha”, referindo-se aos aguapés que começam a superpovoar o pequeno corpo hídrico. Com o sol já a pino, despedi-me dali e voltei para a BR-365, onde enfrentaria seu trecho mais calamitoso, compreendido entre Patos de Minas e o entroncamento com a BR-040. Lembro-me de ter passado por essas bandas em 2012, com Rodrigo Gil, e ter penado com as crateras abissais e a sinalização precária. Víamos, à nossa frente, caminhões com mais de 25 metros de comprimento serpenteando na vã tentativa de desviar dos imensos forames. Invadiam até mesmo a pista contrária. Dessa vez, contudo, a história se inverteria, e eu tranquilamente transcorreria não somente esse trecho, repavimentado, mas também o que veio na sequência, entre a BR-040 e Montes Claros. Agora na BR-135, aprofundei-me ainda mais no noroeste de Minas Gerais, passando por Japonvar e chegando a Januária. Motoristas visivelmente embriagados, a pouco menos de duas horas do início do jogo do Brasil, trafegavam perigosamente pela rodovia e pelos centros das cidades. Por bem, decidi parar por ali mesmo, às margens do Velho Chico, assoreado, baixo, seco, mas ainda assim o maior rio inteiramente em território brasileiro, com 2830km de extensão.


Rio São Francisco, em Januária

Parque Nacional Cavernas do Peruaçu
No dia 18 segui pela BR-135 rumo a Itacarambi. Porém, não cheguei até ela. No meio do caminho guinei para o oeste, propositalmente, por uma estrada de terra que atravessa o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu. Esse é o verdadeiro norte mineiro, uma área de cerrado muito pouco conhecida pelos brasileiros, que sempre priorizam a serra, os queijos e os doces do sul do Estado. Minas Gerais é muito mais que isso, tanto que a menos de dois quilômetros pilotando pela estrada de chão apeei da moto, adentrei uma picada no cerrado e dei de cara com um paredão de arenito repleto de pinturas rupestres, largadas ao sabor do acaso, sem nenhuma proteção. Tratava-se do Paredão do Malhador. O parque é recente, de 1999, o que talvez explique essa falta de estrutura para a preservação de seu patrimônio natural e cultural, que conta ainda com grutas, cavernas e tribos indígenas, além das pinturas datadas de 11 mil anos já citadas. Retornando à moto e seguindo por mais 1km, larguei-a novamente e subi um morro, de cerrado campo sujo, até localizar, no meio do nada e sem indicação alguma, a chamada Lapa dos Bichos, uma gruta de calcário com estalagmites e estalactites de grande porte. Importantes estudos de arqueologia e botânica são realizados aqui, visto que em seu solo foram encontrados fósseis de plantas domésticas, como milho e amendoim, juntamente com frutos do próprio cerrado, como o pequi e o umbu, demonstrando claramente que pessoas utilizaram esse local como abrigo há talvez 2 mil anos, usufruindo dos leitos de rios próximos para a prática da agricultura.

Pinturas rupestres no Paredão do Malhador

Lapa dos Bichos

Buraco dos Macacos
Era ainda meio dia quando topei com o primeiro veículo vindo em minha direção desde que adentrara o PARNA Cavernas do Peruaçu. Era uma moto, de baixa cilindrada, velha, e sobre ela vinham três adolescentes. Como se aproximavam em baixa velocidade, parei minha moto e acenei com a mão para que fizessem o mesmo. Em seguida, interpelei-os sobre algum ponto próximo que merecesse um registro, visto serem moradores de uma fazenda da região. Informaram-me que havia uma imensa furna a poucos quilômetros dali, e dentro desta uma outra imensa caverna com a maior estalactite do mundo. A dica foi boa. Dois quilômetros depois, subindo um pouco para o norte na primeira bifurcação da estrada que corta o parque, cheguei ao famoso Buraco dos Macacos. De sua borda realmente se vê a entrada de uma caverna de 200 metros de altura, que soube depois se tratar da Caverna do Janelão. Quanto à informação sobre a maior estalactite do mundo estar ali, não pude comprová-la, nem mesmo mediante pesquisa posterior. O que eu realmente sabia é que não havia meios de descer ao fundo da dolina sem equipamentos de rapel. Há guias que trazem os turistas para visitação nessas cavernas, inclusive a do Janelão, mas entram por outro local, cobrando, logicamente, um preço por isso. Como o PARNA Cavernas do Peruaçu não era meu escopo, contentei-me com uma vista por cima e segui meu rumo. E esse prosseguimento foi complicado. Foram 52km de muita areia atê Cônego Marinho e depois mais 70km até Miravânia, sendo 12 destes dentro do terriório indígena Xacriabá, por terra, e o restante em asfalto. Em Miravânia fiz um desvio de rota de 4km e conheci uma pequena cachoeira, apenas para recuperar as energias para enfrentar mais 40km de areia até Montalvânia, trecho em que levei meu primeiro tombo. Pernoitei ali, naquela cidadezinha do norte mineiro com 15 mil habitantes, já próxima da Bahia e, portanto, da região nordeste.


Cachoeira de Miravânia

Lavadeiras no rio Carinhanha
Veio o dia 19 e com ele o meu ingresso em um mundo novo: o sertão nordestino. Atravessei uma ponte de madeira sobre o rio Carinhanha, que demarca naturalmente a divisa entre Minas Gerais e Bahia, e observei moradores de ambos os Estados lavando suas roupas nesse importante afluente do São Francisco. No lado baiano o asfalto desapareceu. A areia, a terra e a poeira voltaram a me acompanhar. O cerrado ia desaparecendo paulatinamente à medida que eu subia para o norte. Assim é todo o oeste da Bahia, uma imensa área de transição entre a savana brasileira e a caatinga. A sequidão da paisagem não me deixava olvidar desse fato. As poucas casinhas de pau-a-pique que despontavam eram cercadas pela matéria-prima mais abundante da região: galhadas secas. Percebe-se, pelo desarrimo, que muita gente já deixou esse recôndito. O gado bovino, cercado, já não é a preferência, mas sim caprinos, criados soltos. Desviar dos mesmos não chegou a ser um embrolho, visto que minha tocada por areia é sempre pautada pela cautela. Depois de Cocos fui por asfalto até Jaborandi, mas após quase atropelar uma cabra fui obrigado a arrefecer meu ímpeto e seguir mais manhosamente. Esse seria um problema recorrente durante toda a incursão pelo nordeste. De Jaborandi a Correntina encarei mais terra, para cortar caminho, e aproveitei para visitar as Sete Ilhas, uma obra natural do rio Correntina descaracterizada pela ação humana ao tentar viabilizá-la (e lucrar em cima dela) para o turismo. Lamentei e prossegui, chegando a São Desidério, onde pernoitei para, no dia seguinte, tentar encontrar um guia que me levasse a Gruta do Catão e a Lagoa Azul.

Moradia típica do sertão baiano

Sete Ilhas, em Correntina (BA)

São Desidério (BA)

Parque Municipal da Lagoa Azul
A madrugada do dia 20 sacramentou minha primeira pernoite no sertão nordestino. E para que o dia germinasse todo o seu potencial, carecia eu de um guia, uma vez que todos os atrativos de São Desidério demandam-no. Exigências da prefeitura. Na praça central conversei com Junior do Jatobá, um guia credenciado que estava de partida para a Lagoa Azul, onde se encontraria com um pessoal da UNEB (Universidade do Estado da Bahia). Em duas motos seguimos por uma estrada de chão, a mesma que eu utilizara para ir de Jaborandi a São Desidério, por cerca de 15km, e então adentramos uma arenosa via rural até a portaria do Parque Municipal da Lagoa Azul. Aguardamos um bocado e o ônibus com 30 universitários assomou. Fomos divididos então em dois grupos e comecei a caminhada juntamente com o primeiro, numa trilha bem demarcada em meio ao cerrado do oeste baiano. Existe aqui uma grande incidência de barrigudas, uma árvore de grande porte, algumas chegando a 20m de altura. O curioso é que, quando despencam, são extremamente leves. Quatro homens medianos são suficientes para carregá-la. Em menos de 500m estávamos derredoreando a Lagoa Azul, verde, na verdade, um imenso e plácido manto d'água com 15 metros de profundidade, formado no curso do rio João Rodrigues. É parcialmente emoldurada por paredões de calcário, lapiás e cactus. Toda essa água, logicamente, não fica estagnada aqui. Ela subterraneamente passa pela Gruta do Catão, uma galeria natural calcária de mais de 100m de comprimento, ressurgindo no extremo oeste do parque, onde um outro cânion a guarnece.
A verde Lagoa Azul
Gruta do Catão
 
Cânion

Universitários da UNEB
Só tenho a gratular a hospitalidade do pessoal da UNEB. Ao terminarmos as trilhas fui convidado para me juntar ao grupo para uma galinhada em um sítio próximo ao Parque Municipal da Lagoa Azul, gratuitamente. Para quem não almoçara desde o começo da viagem, beliscando algo aqui ou acolá nas paradas compulsórias para abastecimento, foi um grande desjejum, isso sem contar nas novas amizades que com certeza me farão voltar àquelas bandas algum dia. Na mesa pude conhecer uma tradição local, a loa, na qual uma ou mais pessoas tecem, na hora, pequenos versos com os fatos ocorridos no dia, sempre com rimas. Despedi-me desse povo carismático sabendo que poderia aproveitar muito mais se permanecesse por um ou dois dias extras em São Desidério, que dispõe de incontáveis grutas, sumidouros e distintas belezas cênicas. Porém, eu ainda estava a centenas de quilômetros do Piauí, meu maior objetivo, e precisei partir. Obtive êxito ao chegar, nesse dia, a Santa Rita de Cássia, já perto da divisa com o Estado pretendido. Pernoitei por lá, às margens do rio Preto, buscando paz interna para dormitar enquanto uma cidade pequena, porém barulhenta por estar sob o jugo da aura festiva de uma sexta-feira, celebrava lá fora.

Adeus, São Desidério

Rio Preto, em Santa Rita de Cássia (BA)

Açude seco chegando a Júlio Borges
Dia 21: um sábado atípico. De fato, só percebi que era sábado porque encontrei um posto fechado. Eu poderia ter optado por entrar no Piauí por asfalto, via Formosa do Rio Preto, mas minha preferência por estradas rurais me instou a seguir o caminho em que ora me encontrava. Até aí, nada novo. O problemas é que em meus mapas de papel constava uma estrada de terra entre Santa Rita de Cássia e Júlio Borges, no Piauí, mas meu gps a desconhecia. O jeito foi tocar à velha maneira, informando-me com quem porventura topasse comigo. Isso me tomou muito tempo. Demorei cerca de 3 horas para vencer 90km. Não me arrependo, contudo. À medida que ia me aproximando do Piauí e saindo da Bahia, fui “mergulhando” em um bioma exclusivamente brasileiro e ainda novo para mim: a caatinga. Seus arbustos secos, solo arenoso, ausência de rios; açudes, lagos artificiais ou represados que o povo do nordeste cultiva – ou pelo menos tenta cultivar – em épocas de estiagem despontam, alguns ainda cheios e outros completamente tragados pelo solo do semiárido, formando aquele típico solo rachado que alguns jornalistas sensacionalistas veiculam nos noticiários do sudeste. Todos esses detalhes me acompanhavam enquanto eu subia a Serra da Tabatinga , que demarca naturalmente a divisa entre os Estados. No alto da mesma há uma fazenda, a Guatambu, onde me deram uma boa golada de água. Estava eu no Piauí, sorrindo sozinho e descendo para Júlio Borges, onde cheguei por volta das 13h, com o sol me desfazendo. Acelerei pela PI-413, asfaltada, que me apresentou à imponente e ressequida Serra do Gado Bravo, e alcancei Curimatá. Pela esburacada PI-257 fui calhar em Redenção de Gurguéia, onde acessei a BR-135, que me levou até Cristino Castro, onde pernoitaria pela primeira vez em solo piauiense.

Fazenda Guatambu. Primeira imagem do Piauí


Serra do Gado Bravo

Serra da Semitumba
Dia 22 de junho. Adeus, Cristino Castro. Bom dia, primórdios da Serra Semitumba. Do asfalto do oeste piauiense me furtei, por ora. Acessei uma estrada de areia, como não poderia ser diferente, a leste de Santa Ana, esperando que a mesma cruzasse todo o Parque Nacional da Serra das Confusões, criado em 1998 e ampliado em 2010, tendo hoje uma área de pouco mais de 800 mil hectares. Em um determinado momento, pouco após amargar meu segundo tombo da viagem e entortar o pedal do freio, deparei-me com uma bifurcação. Segui pela estrada que sumia leste adentro. Contudo, algo não estava certo. Abri várias porteiras, quase atolei em bancos cada vez maiores de areia e paulatinamente a via se transformou em uma trilha. Uma porteira trancada a cadeado foi a gota d'água. Voltei até uma palhoça pela qual passara, no meio do nada, mas não encontrei vivalma para pedir informações. Vi-me obrigado a retornar à bifurcação e seguir sentido sudeste. A estrada ali não era melhor, mas pelo menos era espaçosa. Um motociclista vinha em sentido contrário e me afirmou que essa via me levaria a Guaribas. Três horas depois, vencendo toda aquela “caatingueira”, coloquei meus olhos no cinza com toques arroxeados dos cumes arredondados da Serra das Confusões, justamente no ponto em que a Serra Semitumba se encerra, dando lugar à cadeia de morros que nomeia o Parque Nacional. Guaribas é testemunha de sua concepção. Essa cidade, que já foi a mais pobre do Brasil, a tem como uma fortaleza natural, um símbolo de resiliência. Foi aqui que o Fome Zero começou. Seus 5 mil moradores há pouco conhecem a comodidade de ter água encanada, não necessitando andar quilômetros à procura dela sob a quentura do semiárido. E justamente esse povo humilde, num domingo, ofertou uma sombra e um almoço farto para um viajante que, a essa altura, já tinha o pó piauiense incrustado em suas roupas e poros. Tudo o que levo dessa família que me amparou é uma foto mal tirada. Minha indiscrição paulista me fez olvidar seus nomes, mas jamais esquecerei suas feições.

Estrada no Parque Nacional da Serra das Confusões

Palhoça no sertão piauiense
 
Serra das Confusões, em Guaribas
Família guaribana
Guaribas é realmente isolada. Foram 90km de areia, buracos e pedras desde Santa Luz. Até Caracol, onde eu almejava encontrar a PI-144, foram mais 50km de terra, mas “piçarrada”, como dizem por lá quando os tratores fazem a devida manutenção, deixando a estrada tão transitável quanto o asfalto. Foi sorte. Ganhei tempo. Chegando em Caracol, localizei a base do ICMBio, que regimenta e controla o Parque Nacional. Por ser um domingo estava fechada. Procurei por alguém na praça central que pudesse pelo menos me indicar um local que valeria a pena visitar, justificando minha passagem pela Serra das Confusões. Não souberam me apontar algo. Desapontado por não desbravar mais profundamente a região, mas feliz por ter tido pelo menos um breve contato com o sul do Piauí, sumi para o norte pela PI-144, desviando de cabras, porcos e jumentos, ainda em tempo de aportar em São Raimundo Nonato para uma merecida noite de descanso. Na segunda-feira, cedo, eu trataria de cumprir uma difícil missão. Encontrar um guia, em dia de jogo do Brasil na Copa do mundo, que topasse me apresentar a Serra da Capivara.

Adeus, Serra das Confusões

Gruta Pilã
Oito da manhã do dia 23 de junho e eu já estava na estrada de terra que me levaria ao Parque Nacional da Serra da Capivara. São 20km por asfalto a partir do centro de São Raimundo Nonato e mais alguns por terra. Ao contrário do que eu poderia prever, o trecho em terra estava bem batido, e rapidamente cheguei ao primeiro atrativo da região, que por estar fora da área do parque não está bem cuidada e sinalizada: a Gruta Pilã. As passarelas que permitem que o caminhante a adentre estão todas destruídas. De seus altos arredores, contudo, obtêm-se uma ampla vista dos chapadões do extremo sul da Serra da Capivara, bem como a caatinga circundante ainda verde-amarelada, apesar da estiagem. Prosseguindo, passei pelo Sítio do Mocó, um bairro pertencente ao município de Coronel José Dias, e apeei à portaria do parque. A entrada, porém, exige a contratação de um guia. Não há como seguir sozinho. O guarda passou um rádio para um guia do Sítio do Mocó, que após uma hora apareceu. O valor de R$100 é oneroso para uma pessoa, mas não para um grupo de 8 pessoas, por exemplo. Como eu estava sozinho, arquei com todo o montante. Em uma segunda-feira de jogo do Brasil pela Copa do Mundo, certamente ninguém aparecia para dividir a conta. Ao som de gralhas e jacus partimos, então, por uma leve caminhada por um pequeno naco dos 130 mil hectares do Parque Nacional da Serra da Capivara, todos eles comandados à mão de ferro pela arqueóloga brasileira de ascendência francesa Niède Guidon.

Parque Nacional da Serra da Capivara
 
Arenitos
Paisagem do parque
A locomoção dentro do parque seria cômoda se não fosse o calor acachapante do semiárido. Há uma ressalva, entretanto. Perto das chapadas de arenito e conglomerado a caatinga é mais alta e verde, visto que essas rochas retêm a umidade e sombreiam os arredores, deixando o clima mais ameno. É perceptível uma diferença de pelo menos 5º C entre as áreas abertas e os contrafortes. Nas partes baixas o mandacaru é o vegetal mais imponente, enquanto nas trilhas que levam aos cumes da serra estão presentes outros cactáceos como coroa-de-frade e rabo-de-raposa. Olhando por cima a caatinga ainda está conserva seu verde, e o guia Djaílton me explicou que em meados de setembro, no fim da estiagem, praticamente todos os vegetais se desfolham. “Demanda muita energia e água para a planta manter suas folhas, fazendo-a se livrar delas na seca. Quando chove, mesmo que somente um pouco, em questão de dias tudo fica verde novamente”, assegurou ele. Cenicamente falando, o alto dos arenitos revela a vista de um relevo de formas garrafais, de bases arredondadas e cumes estreitos, contrastando a cor avermelhada do arenito e o tom cinza dos conglomerados, semelhantes ao concreto envelhecido. Lá embaixo, tímida entre montes maiores, a Pedra Furada se discerne, ela que é o cartão-postal do parque. Em sua volta foi construído uma espécie de Teatro de Arena, onde apresentações de grande importância se sucedem. “Já recebemos até a Camila Pitanga”, afirmou Djaílton.

Cactáceo

Conglomerados

Relevo "garrafal"

Pinturas rupestres
Mesmo com toda essa beleza, capaz de atrair mais turistas estrangeiros do que brasileiros, a Serra da Capivara se destaca sobretudo por seu patrimônio cultural. Existem milhares de “tocas” espalhadas pelo parque, paredes de arenito contendo pinturas e gravuras rupestres, umas com idade estimada de 50 mil anos. São figuras que registram a caça, a vida em bando, animais, sexo, movimentos ginásticos e outras peculiaridades da vida dos homens que habitaram esse território. São desenhos tão antigos que muitos dos animais esboçados nas paredes sequer existem, pois datam de uma época em que essa parte do Piauí ainda era uma floresta tropical. A própria capivara é um roedor já não presente na caatinga. Todas essas pinturas logicamente levaram a escavações arqueológicas, espalhadas por todos os cantos, e alguns achados estão expostos em um pequeno museu. O mais impressionante são ossos de espécimes da megafauna, cujo tamanho era superior aos dos nossos carros populares de hoje. Foi aí que Djaílton relatou que não há, hoje, nenhuma fonte de água dentro do parque, o que fez com que muitos animais migrassem para outras áreas. Os poucos que restaram ainda estão ali porque caminhões-pipa enchem reservatórios artificiais espalhados nas encostas semanalmente. De fato, vi apenas caititus, mas um pesquisador da USP monitorava macacos-pregos. Deve haver muita vida se escondendo por detrás daqueles arbustos, a exemplo do arapaçu-grande, que subia inadvertidamente pelos caules do semiárido.

Beijo

Caça
 
Coito
Pedra Furada
Já eram mais de 16h quando Djaílton voltou para o Sítio do Mocó, onde reside, e eu, a poucos minutos do princípio do jogo do Brasil, subia para São João do Piauí, onde decidi pernoitar. Era dia de São João, e eu estava em uma cidade piauiense com o nome do santo, o que significa que uma festa ocorria por ali. Pena que meu cansaço me fazia dormir diariamente às 20h, por mais que eu teimasse em permanecer vigilante. Despertei cedo, no dia 24, e rapidamente acelerei até Brejo do Piauí, onde acessei a PI-140, permanecendo na mesma até Floriano, onde encontrei pela primeira vez o rio Paranaíba, que divide naturalmente os Estados do Piauí e do Maranhão. Por pilotar somente em asfalto a viagem rendia bastante, e logo reencontrei o rio em Amarante. Do outro lado via as chapadas da Serra de São Francisco do Maranhão. Prosseguindo, por volta do meio dia me deixava envolver pela capital Teresina. Atravessei a ponte sobre o rio Poti e logo zarpei pela BR-343, calhando em Piripiri, onde passei a noite. No outro dia eu conheceria o terceiro Parque Nacional estritamente piauiense: o Sete Cidades. Seria o último no meu caminho rumo ao litoral e ao terceiro maior delta do mundo: o do rio Parnaíba.

São João do Piauí

Rio Parnaíba, em Amarante
 
Matriz de Piripiri
Parque Nacional Sete Cidades
Como de praxe, às 8h, no dia 25, o guarda da portaria do Parque Nacional Sete Cidades abria a cancela e eu acelerava pela estrada de chão até uma espécie de casa de apoio ao visitante. Lá me informaram que, a exemplo da Serra da Capivara, eu necessitaria de um guia para conhecer os atrativos do parque. A diferença é que esses são funcionários do próprio parque. Ganhei um tempo valioso. O guia foi comigo, na garupa da moto, sem capacete, indicando o caminho. Uma boa estrada de chão interliga as Sete Cidades, ou sete agrupamentos rochosos separados por centenas de metros. Na primeira em que paramos, por exemplo, avistamos formações de arenito como a tartaruga e o elefante. Na sequência deixamos a moto em uma sombra do cerrado (aqui a mata predominante é o cerrado, mas também há “manchas” de caatinga) e partimos em uma caminhada para o alto da chamada Biblioteca, passando pelo Arco do Triunfo e pela Pedra do Americano, essa com inscrições rupestres semelhantes aos da Serra da Capivara. Voltando à moto, passamos pela Gruta do Índio, onde há várias também pinturas rupestres, entre elas um cachimbo, cuja fumaça sorvida pelo líder do clã o auxiliava na tomada decisões importantes. E por falar em fumaça, poucos metros depois o guia me apresentou a Gruta do Catirina, um abrigo natural rochoso com um cilindro sulcado no solo de seu interior. Ali viveu, por 13 anos, José Ferreira do Egito, vulgo Catirina, com seu filho Martinho, bem doente, por sinal. Nesse cilindro citado Catirina preparava ervas na esperança de curar Martinho. Quando o menino morreu, Catirina mudou-se para a cidade.



"Cidades" no interior do parque

Mocó
Vários mocós, em algumas regiões conhecidos como preás, são vistos sobre as rochas de todo o parque. “O Catirina deve ter comido muitos deles”, teorizou o guia. “Muitas pessoas traziam alimentos para ele e Martinho e, em troca, esperavam ter seus males curados por suas 'poções'”. As plantas utilizadas eram todas da região. E como que a consolidar toda a mística envolvendo essa figura, a poucos metros da gruta encontramos formações rochosas como os Três Reis Magos, o Dedo de Deus e o Oratório, todas remetendo ao universo cristão. À parte encontramos o Mapa do Brasil, o busto de Dom Pedro I e a Pedra dos Canhões. Para finalizar o circuito de três horas, o guia me levou às proximidades da portaria norte, onde uma nascente, não importa o quão contumaz seja a seca, sempre jorra. Há outra, mais suscetível a estiagem, que forma uma pequena cachoeira, mas nessa altura do ano por ela já não corria água. O que corria era minha vontade de ainda aproveitar o resto do dia, e como os atrativos por ali se findaram, não vi outra alternativa a não ser continuar para o norte rumo ao Delta do Parnaíba. Pelo caminho, uma parada estratégica em um dos lugares mais conhecidos do Piauí, entre Batalha e Esperantina: a Cachoeira do Urubu.

Gruta do Catirina

Pinturas rupestres de Sete Cidades

Saindo do PARNA Sete Cidades

Jumentos soltos: problema recorrente
 Da portaria norte do Parque Nacional de Sete Cidades a Piracuruca são apenas 18km por asfalto. De Piracuruca a Esperantina mais 86km. Do centro de Esperantina até a Cachoeira do Urubu são meros 20km, todos por vias também asfaltadas. Fácil. Pensava eu que teria dificuldades em chegar a uma cachoeira tão afamada. Surpreendi-me ao me deparar com uma área de lazer, bares, restaurantes e uma passarela de 400m ligando as margens do rio Longá uma a outra. A cachoeira, em si, é a união de várias cascatas, sendo que a maior delas despenca de nada vertiginosos 12m. A largura do rio, a velocidade do turbilhão e o formato das quedas, por outro lado, são seus aspectos mais cativantes, um cenário parecido as Cataratas de Itaguaçu, em Goiás (link). Pescadores tentam a sorte nos profundos poços formados pelo incessante contato da cachoeira com o leito rochoso do rio Longá, o que me fez lembrar da origem de seu nome. Em épocas de seca, quando o rio baixa, muitos peixes ficam presos nas fissuras e buracos dessas rochas. Ao morrerem, atraem o carniceiro dos céus protegido por lei e tão desprezado nas grandes cidades por estar presente em meio à sujeira que o próprio ser humano produz: o urubu.



Cachoeira do Urubu

Rio Parnaíba, em Parnaíba
Meu principal objetivo se materializava. Cento e sessenta quilômetros após Esperantina eu cruzava o centro de Parnaíba na tentativa de adquirir informações sobre a melhor maneira de conhecer o Delta do rio Parnaíba, o terceiro maior do mundo. Fui abordado por um motociclista quando transitava pela rua Doutor João Goulart, bordejante a um dos braços do rio Parnaíba. Em locais turísticos todos parecem saber quem são os “forasteiros”. Não era preciso muita adivinhação, pensei eu. Bastava olhar para a placa de minha moto. Por fim o homem de meia idade me acompanhou a uma agência próxima dali para negociarmos uma volta de barco pelo delta. Eu pesquisara a fundo e infelizmente não encontrara outro meio de desbravá-lo. Mergulharia no sistema ou iria embora sem nada conhecer. Já se foram 4 mil km, raciocinei. Preferível pagar R$55 e dar uma de turista a chupar dedo por um dia numa cidade de 150 mil habitantes. Uma ressalva é que o barco sairia alhures, do Porto do Tatu, em outro braço do rio Parnaíba, no município de Ilha Grande, a oeste de onde eu me encontrava, às 8h do dia 26. Tendo que esperar pelo nascer do sol, encontrei um lugar para pernoitar e decretei o encerramento do dia 25.


Porto do Tatu

Dunas do Morro Branco
Às 7:30 do dia 26 de junho eu deixava minha moto no Porto do Tatu, a 10km de Parnaíba, e subia a bordo, juntamente com outros turistas, do barco que nos carregaria pelo delta. Zarpou no horário combinado, às 8, e lentamente foi avançando pelo braço do rio Parnaíba margeado pelas Dunas do Morro Branco. Em seguida adentrou um sinuoso igarapé, ou rio pequeno, apresentando-nos a uma imensa área de manguezal, feita de lar por um grande contingente de caranguejos-vermelhos. Os “caranguejeiros”, que sobrevivem da cata e da venda desses crustáceos, são, por lei, obrigados a coletar apenas os machos adultos, segundo um funcionário do barco que, em um determinado ponto do mangue, chafurda a lama e salienta as diferenças entre os gêneros para os turistas. O barco voltou ao movimento, singrando para o norte, e logo estávamos em mar aberto, esgueirando-se ao lado de “currais” de pescadores, armadilhas rústicas que prendem o peixe no estuário com o objetivo de criá-lo em um ambiente controlado, pescando-o sem muito esforço no momento adequado. Aportamos na Ilha dos Poldros, um imenso banco de areia compacta de onde se vê as hélices da Usina Eólica na praia da Pedra do Sal, ao leste. A curiosidade é que é pertencente ao Estado do Maranhão. São, ao total, mais de 70 ilhas e ilhotas como essa formadas pelos tentáculos do delta que, juntos, totalizam uma área de aproximadamente 2700km quadrados, divididos entre os dois Estados. Como já frisado, é o terceiro maior delta do mundo.

Caranguejos-vermelhos

"Curral" de peixes

Ilha dos Poldros, no Maranhão

Ilha das Canárias
Da Ilha dos Poldros o barco zarpa para o retorno ao Porto do Tatu. Uma parte do caminho de volta, entretanto, é diferente, visto que passa mais próximo aos canais do rio Parnaíba que ficam do lado maranhense. Essa rota possibilitou que víssemos a Ilha das Canárias, a segunda maior do delta, onde há uma comunidade de pescadores. Não paramos, contudo. A última parada se deu já nas proximidades do Porto do Tatu em um local conhecido como Dunas do Morro Branco. Na vinda passamos por elas, mas agora pudemos explorar a pé os bancos de areia que estão sempre sendo remodelados pelos fortes ventos que afetam a região. Entre eles há lagoas intermitentes formadas pela água das chuvas. Reembarcados, finalizamos o trajeto por água na Ilha Grande de Santa Isabel, a maior do delta, onde se encontra, além do próprio Porto do Tatu, o município de Ilha Grande e a praia da Pedra do Sal, cujos ventos impiedosos de até 15 metros por segundo giram as turbinas da Central Eólica Pedra do Sal, produzindo energia elétrica limpa. Esse cenário eu conheceria no próximo dia, quando pretendia percorrer todo o litoral do Piauí, o menor dentre todos os litorais brasileiros.

Sobre as Dunas do Morro Branco

 
Lagoa intermitente

Farol da Pedra do Sal
Dia 27 de junho. Faltava encaixar apenas uma peça no meu meu quebra-cabeças do Delta do Parnaíba, e ela se encontrava no cenário paradisíaco da Praia da Pedra do Sal. Saí de Parnaíba, atravessei a ponte sobre um dos braços do rio Parnaíba e acelerei por uma imensa reta de 12km que rapidamente me levou ao extremo norte do território parnaibano. Passei literalmente pelas sombras das hélices dos “cataventos” da Central Eólica da Pedra do Sal, entre dunas e restinga, e cheguei ao Atlântico, à única praia de Parnaíba. Nela há um totem, distinguível entre incontáveis bares notívagos. É o Farol da Pedra do Sal, construído em 1873 para alertar as embarcações sobre uma trilha de rochedos graníticos que se principia na areia da praia e some mar adentro. Farol e rochedos dividem a praia em duas: na porção oeste, a calmaria impera e embarcações pesqueiras de pequeno porte se ancoram; na porção leste, o mar revolto ataca ininterruptamente a orla por uma extensão de 8km. Se eu seguisse para o leste, pela praia (não há estradas), chegaria ao município litorâneo de Luís Correia. Contudo, a ausência de uma ponte sobre um dos canais do rio Parnaíba, o Igaraçu, me dissuadiu de tal intento. Tive que retornar a Parnaíba e seguir pelo asfalto da BR-343.

Praia da Pedra do Sal: porção leste

Praia da Pedra do sal: porção oeste

Lagoa do Portinho
Ir pelo asfalto não é tão emocionante quanto pela areia, mas me oportunizou conhecer um local ao qual eu não me atentara durante o planejamento: a Lagoa do Portinho. Cercada por dunas em constante movimento, suas águas escuras dividem naturalmente os território de Parnaíba e Luís Correia. Tem uma área total de 5km², envoltos por coqueiros e carnaúbas. O vento provoca pequenas ondas em sua superfície. Prosseguindo, cheguei a Luis Correia e rapidamente me dirigi a um molhe no canal de Igaraçú, braço leste do rio Parnaíba e, portanto, o extremo leste de seu delta. Esse “braço de terra” de 3km parte das areias da praia e ganha o mar aberto. Há uma estrada sobre ele. Dela se observa “different shades of blue”, como diria o mestre Joe Bonamassa: o azul turvo das águas do Parnaíba; o azul esverdeado do mar de Luis Correia; e o azul vívido do céu piauiense. Apesar de toda esse garbo, friso que o local é uma obra estagnada desde a década de 1970. O molhe foi a primeira estrutura construída no projeto de um porto, e até agora a única. O Piauí é um Estado litorâneo brasileiro que não recebe grandes quantidades de produtos via mar justamente pela falta de um local adequado para o atracamento de médias e grandes embarcações.

Molhe em Luís Correia, separando o mar (à esquerda) e o rio Parnaíba (à direita)

Mar de Luís Correia

Lagoa do Sobradinho
Deixei Luís Correia pela PI-116, sempre para o leste. Uma placa me levou ao sul para a Lagoa do Sobradinho, parecida com a do Portinho, mas maior em área, muito embora eu não tenha como precisar esse número. O que sei é que são altas dunas douradas encarcerando água doce. Muita água doce. O povoado de Sobradinho, que vive às suas margens, cria porcos em seus arredores. Para subir em algumas dunas tive que afundar meus pés no chafurdamento lamoso desses suínos. De volta à moto, dirigi-me à última praia de Luis Correia, Macapá, e de lá segui para Barra Grande, onde há muitos restaurantes à beira-mar e, consequentemente, turistas. Eu, que já não sou tão adepto a praias, e muito menos a locais com excesso de gente, segui para Cajueiro da Praia por uma estradinha de calçamento beiradeante ao Oceano Atlântico. Por fim cheguei à última praia do Piauí, e também ao seu último município do leste: Cajueiro da Praia. A maré estava tão baixa que evidenciava os rochedos de calcário a mais de 300m da areia. As tralhas dos barcos pesqueiros eram levadas e trazidas por carroças. Essa cena icônica foi meu derradeiro registro do menor litoral brasileiro, com apenas 66km, e marcou também o término de minha estadia no Estado do Piauí. Encararia eu, a partir de agora, o sertão dos demais Estados nordestinos.

Praia de Barra Grande

Cajueiro da Praia

Pescadores caminhando "sobe o mar" na maré baixa

Jericoacara
Não sabia o que era chuva desde o princípio da viagem. Deixar o Piauí e adentrar o Ceará trouxe não só uma mudança de Estados mas também uma mudança de clima. Ao aproximar-me de Chaval, primeiro município do noroeste cearense, fui assolado por um forte aguaceiro dos céus, o que me obrigou a buscar abrigo em um posto de gasolina para proteger decentemente minha câmera. Nessa parada encontrei um motociclista que fazia o mesmo. Logo nos apresentamos. Neurimarcos de Oliveira vinha dos Lençóis Maranhenses e estava regressando para Fortaleza, onde reside. Passaria, no caminho, por Jericoacara, o destino litorâneo mais famoso do Ceará. Mesmo não estando nos meus planos originais, decidi acompanhá-lo. Não modificaria muito minha rota e, de quebra, conheceria mais um canto do Brasil. Seguimos, então, até Camocim, agora sob garoa, ulteriormente descendo para o sul contra o curso do rio Coreaú. De Granja pilotamos sentido nordeste até Jijoca de Jericoacara. Lá fomos importunados por muita gente, todos querendo um naco do nosso escasso dinheiro para nos ciceronear até Jericoacara, distante ainda 20km dali por estradas que cortam dunas incertas. Livramo-nos de todos eles e, saindo da cidade, fomos parados por um motociclista que, por R$20, prometeu nos levar a um local de pernoite bem barato em Jericoacara. Por fim aceitamos. Murchamos os pneus das motos, para maior tração nas dunas, e seguimos para o Parque Nacional de Jericoacara. Calhamos lá uma hora depois, estressados por tanta areia, mas ainda em tempo de ver o pôr-do-sol sobre uma duna de nome sugestivo: Duna do Pôr-do-sol.


Pôr-do-sol cearense

Vista do Serrote
O dia 28 de junho revelou o maior contraste da viagem. Jericoacara é realmente linda. Não há dúvidas quanto a isso. Andando pela orla, subindo falésias, não importa o ângulo: todos escancaram sua beleza perene. Não é à toa que foi transformada em Parque Nacional no ano de 2002. Contudo, tal aspecto não trouxe serenidade alguma ao local. Pelo contrário, a Vila de Jericoacara, nos limites do parque, é uma amostra de como uma elite econômica pode mandar e desmandar em algo que poderia ser desfrutado por outras classes sociais. As poucas pousadas em mãos de brasileiros são simples, como gostamos, mas extremamente onerosas, como desgostamos. Escuta-se o hindi, o inglês e o espanhol com facilidade ao se caminhar pelas travessias de areia. Refeições no período noturno são outro absurdo. Para dois simples motociclistas que viajam sempre com dinheiro contado, foi praticamente um Desafio Em Dose Dupla Brasil. Coronel Leite e Léo passariam um perrengue desgraçado aqui com R$50 cada. Excetuando-se isso, há de se destacar paisagens como a Pedra Furada (a segunda da viagem, por sinal), o Serrote (parte mais alta do parque e onde se encontra um pequeno farol) e os rochedos da Praia da Malhada, acariciados incessantemente pelo quebrar das ondas do mar.

Praia da Malhada

Rochedos

Pedra Furada

Pedra das Andorinhas
Era meio-dia quando deixamos, pelas mesmas dunas, a Vila de Jericoacara e toda sua luxúria. Foi mais uma hora de peleja até Jijoca de Jericoacara. Calibramos os pneus e aceleramos de volta para Granja. Em seguida vieram Massapê e a grande Sobral. Estradas praticamente desertas devido ao jogo do Brasil pela Copa do Mundo de Futebol nos acompanharam pelos vários distritos e povoados sobralenses. Passamos pela famosa Pedra das Andorinhas, um maciço rochoso que desponta da Serra do Feijão, no distrito de Taperuaba. A caatinga circundante não negava: estávamos envolvidos completamente pelo sertão cearense. E assim foi até Canindé, uma das cidades do Estado mais castigadas pela seca. Chove aqui apenas de fevereiro a abril. Dialogamos com um senhor em um comércio local e o mesmo nos confidenciou ganhar a vida cavando poços artesianos. A cada 3 que furava, segundo ele, de apenas um vertia água. Deve ser por isso que a religião é tão presente na vida desse município de quase 80 mil habitantes muito frequentada por romeiros. A Basílica de São Francisco é o templo católico mais visitado, seguido pela Igreja de Nossa Senhora das Dores.

Igreja de Nossa Senhora das Dores, em Canindé (CE)
 
Basílica de São Francisco
Basílica de São Francisco: interior

Guaramiranga
Após pernoitarmos na quente Canindé, Neurimarcos e eu subimos a Serra do Baturité, a leste da cidade. Saímos de uma altitude de 150m, vencemos o desenho serpenteante do asfalto e chegamos a Mulungu, onde provei, por indicação de Neurimarcos, o sarrabulho, uma espécie de sopa com miúdos de cabrito servidos com cuscuz, arroz e cheiro verde. Já estávamos nesse ponto a 800m de altitude. É um dos únicos locais do Ceará em que se forma neblina e cidadãos vestem blusas. Prosseguindo, chegamos na cidade mais famosa da serra e a menor do Estado: Guaramiranga. Residem na mesma aproximadamente 5 mil pessoas. Altitude: 865m. Com a ideia fixa de galgarmos um lugar ainda mais alto, pilotamos pelas curvas perigosas do Maciço do Baturité até o Pico Alto, onde o altímetro marcou pouco mais de 1100m. É o segundo ponto mais elevado de todo o Ceará. Infelizmente o excesso de nuvens impediu que nossa vista corresse longe. Fiquei contente em saber, por outro lado, que toda a área é preservada, visto ser um profícuo remanescente de mata atlântica no Estado. Foi uma breve escapada do sertão, e também a despedida de Neurimarcos, que seguiria para Fortaleza enquanto eu me colocaria de volta na rota planejada, seguindo para Quixadá. Que experiência proveitosa ter conhecido parte do Ceará pela ótica de um cearense nato. Com certeza deixo um amigo e uma companhia para novas viagens pelo nordeste, quiçá pelo Brasil.

Serra do Baturité

Pico alto, o segundo ponto mais alto do Ceará

Monólitos de Quixadá
Eu retomava meu caminho solitário após a descida da Serra do Baturité. Passei pela cidade de Baturité e ganhei a CE-060. Permaneci na mesma até Quixadá, a cidade dos monólitos. Monólitos são montanhas formadas por uma única rocha. Para exemplificar, cito a Pedra do Baú, em São Bento do Sapucaí, um monólito paulista, e o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, um espécime à beira-mar. Em Quixadá, contudo, eles estão por toda parte, dos mais altos aos mais baixos. Residências e prédios foram erguidos lado a lado com essas obras geológicas. Antenas e torres de TV as utilizam como base. Além dos monólitos, eu almejava conhecer o Açude do Cedro, reservatório artificial inaugurado em 1906 para amenizar os efeitos da seca na região. Vale frisar que diferentemente dos reservatórios de hidrelétricas, onde a água tem como escopo a produção de energia, nos açudes da caatinga ela presta (no sentido de prestar) principalmente ao consumo humano e à irrigação de plantações. Uma de suas quatro barragens é um espetáculo à parte. Curvilínea, suas grades foram importadas da Inglaterra e a cerâmica dos balaustres de Portugal. É a chamada Varanda. Dela se observa o monólito mais emblemático de Quixadá: a Pedra da Galinha Choca. Dizem os cearenses que, se essa galinha porventura botar um ovo, extirpará a fome no Estado.


Açude do Cedro e Pedra da Galinha Choca

Rio Jaguaribe
Em Quixadá se ultimava minha empreitada pelo Estado do Ceará. Rumei para o leste, passando por Morada Nova (cidade natal de Neurimarcos) e Limoeiro do Norte. Atravessei a ponte sobre o rio Jaguaribe, bordejei Quixeré e adentrei o Rio Grande do Norte. A primeira cidade do Estado por essa rota é Baraúna, onde pela primeira vez em minha vida vi mamão plantado em larga escala. Em São Paulo geralmente há um pé ou outro, perdido, mas não uma área imensa dedicada à cultura mamoeira. Prosseguindo, alcancei Mossoró, já no fim da tarde, mas ainda tive energia para descer ao sul até Governador Dix-Sept Rosado. Pernoitei nessa pequena cidade e, na manhã do dia 30, continuei minha toada para o sul até Umarizal. Dali eu pretendia subir a Serra de Martins por terra, passando, nesse ínterim, por uma caverna calcária bastante conhecida na região. Do centro urbano de Umarizal foram 16km até os contrafortes da serra citada, onde se localiza um abrigo natural com vários “salões” conhecido como Casa de Pedra. É um afloramento rochoso de uma época em que o sertão era mar. Adentrando-o, observamos muitas estalactites, despontando de um teto de 10m de altura, e apenas uma grande estalagmite no salão principal medindo 18m por 12m. A depredação, infelizmente, é uma realidade. É o que acontece quando o povo brasileiro tem algo gratuito para desfrutar e, consequentemente, conhecer, aprender e tornar-se menos ignorante com relação a própria História Natural.



Casa de Pedra

Serra de Patu
Da Casa de Pedra à cidade de Martins, no alto da serra, são 26km, sendo 12km por terra e o restante, na parte mais íngreme e serpenteante do aclive, por asfalto. Para se ter uma noção de como a ascensão é forte, em Umarizal a altitude fica na centena dos 200m, enquanto no centro da cidade de Martins ela ultrapassa os 700m. De alguns pontos o sertão potiguar é visto com muita clareza. A Serra de Patu, por exemplo, é uma outra cadeia de montes que se sobressalta à monotonia da planície semiárida. Afora o verde da caatinga, o azul dos açudes é deveras realçado. Nós da região sudeste estamos habituados a topar com rios para onde quer que vamos. Mesmo nas grandes rodovias há inúmeras pontes sobre eles. No sertão potiguar, e no sertão de todo o nordeste em geral, quase não se vê rios. Esse é um dos motivos pelos quais a caatinga é tão impetuosa no que se refere à disponibilidade de água. Não é à toa que jumentos são vistos soltos pelas estradas do sertão. São animais que foram utilizados por muito tempo para transportar a terra extraída das valas que armazenavam água que seria consumida na estiagem. Hoje tudo é mecanizado e o jumento perdeu a sua serventia. O ser humano, mantendo a média na sua total ingratidão com o que um dia lhe foi útil, preferiu abandonar esses animais, que hoje sobrevivem soltos, colocando em risco a vida de incautos motoristas.
Vale dos Dinossauros, em Sousa (PB)
Desci a serra de Martins, peguei um atalho sentido oeste por terra e subi novamente a mesma serra, agora pelo flanco noroeste, até a cidade de Portalegre, a 650m de altitude. Pela RN-177 cheguei a Pau dos Ferros, onde iniciei uma cruzada sem paradas pelo oeste potiguar, estreito nessa área, diga-se de passagem. São apenas 45km do extremo noroeste, divisa com o Ceará, para o extremo sudeste do Estado, divisa com a Paraíba. Quando me dei por mim já estava na Paraíba, cruzando Uiraúna e chegando a Sousa. O sertão paraibano me recepcionou com portas fechadas. O Vale dos Dinossauros, que estava em meu planejamento, não abre às segundas-feiras. Eram ainda 14h e eu me vi obrigado a parar. Pernoitei no centro de Sousa e na abertura do mês de julho, dia 1º, era eu o primeiro a adentrar o Vale dos Dinossauros. Embora esse nome remeta a um parque temático, é, na verdade, uma área protegida pelo Estado da Paraíba por conter leitos de rios secos com pegadas jurássicas fossilizadas. Dinossauros, de diversos tamanhos, herbívoros e carnívoros, deixaram suas marcas nesse pedaço de sertão há mais de 140 milhões de anos. O Velho do Rio, senhor que zela por esses frágeis registros, conta que tais pegadas foram descobertas no fim do século XIX, por seu avô, e por muito se acreditou que houvessem sido deixadas por seres de outro mundo que vagavam atrás de almas. Frisou também que por muito tempo o vale ficou abandonado, culminando inclusive com o roubo de algumas pegadas que hoje estão expostas em museus dos Estados Unidos e da Inglaterra. Felizmente hoje parece que houve uma mobilização no sentido de preservar esse importante sítio arqueológico.

Pegadas jurássicas fossilizadas

Velho do Rio

Serra do Teixeira
Debandei de Sousa pela famosa BR-230, conhecida pela graça Transamazônica. Esse trecho é asfaltado, ao contrário do problemático “pedaço” de quase 3 mil km de terra, lama e puaca compreendido entre Aguiarnópolis, no Tocantins, e Lábrea, no Amazonas. Pretendo me aventurar por ela em meados de 2015. Por ora eu rumava no sentido oposto, para o Pernambuco. Permaneci na lendária rodovia até Patos, uma das grandes cidades do sudoeste paraibano. Subi a magnífica Serra do Teixeira, cuja Pedra do Tendor oferenda uma vista ampla do sertão ainda verde. Passei por Teixeira, desci novamente para o calor da planície do semiárido e adentrei o Estado de Pernambuco. Nem mesmo nos dias mais otimistas de meu planejamento eu cria que transitaria tão rapidamente de um Estado nordestino para outro. Nessa nova Unidade Federativa cruzei sem paradas os centros urbanos de Brejinho, São José do Egito e Sertânia, onde quase atropelei um cidadão embriagado em plena BR-110. Além de jumentos, porcos e cabras, agora eu teria que me atentar a transeuntes. No entroncamento da BR-110 com a BR-232 segui a leste pela última, já no perímetro do Parque Nacional do Catimbau, o próximo atrativo de minha lista. Em Arcoverde pendi para o sul até Buíque, cidade onde pernoitei. No próximo dia eu olvidaria por um momento o asfalto e encararia as estradas arenosas do sertão pernambucano.

Pedra do Tendor

Sertânia

Parque Nacional do Catimbau
Dia 2 de julho. O último Parque Nacional elencado seria esmiuçado. Logo às 7 da manhã derroquei os 2km de asfalto e mais 10km de areia até a vila de Catimbau. De lá parte, direto para o norte, uma outra estrada arenosa que entrecorta todo o território do parque. Catimbau, em língua indígena, significa “morro que perdeu a ponta”. Essa designação se solidifica à medida que as simples residências vão ficando para trás e o cenário composto basicamente por morros de arenito circundados por caatinga vão despontando. À exemplo do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Parque Nacional do Catimbau, criado em 2002 para proteger uma área de 62 mil hectares do semiárido pernambucano, existem pinturas rupestres. No quilômetro 5 dessa “estrada parque” localizei o início de uma trilha que prometia me levar a algumas delas. A pé, desci por um vale de suave inclinação e cheguei a um bloco de arenito com inscrições avermelhadas. Bem deteriorado, ao lado do mesmo se encontra uma placa com a lembrança de como o arenito e as pinturas seriam caso tivessem sido preservadas. Pelo que entendi a própria justiça obrigou o antigo proprietário dessas terras a arcar com as despesas dessa placa. O arenito é uma rocha muito quebradiça, altamente suscetível a erosões. Medidas mais práticas e enérgicas deveriam ser engendradas para que esses traços de mais de 6 mil anos de idade não se percam na indiferença do descaso. De volta à moto, subi mais alguns quilômetros, até o término da estrada, e registrei formações areníticas interessantes, das quais destacam-se a Porta da Igreja e as chamadas Pedras em Equilíbrio. Dessas últimas se obtêm uma vista esplêndida da porção norte do parque, uma planície semiárida, mais ainda verde.

Pinturas rupestres desgastadas

"Morros que perderam a ponta"
 
Pedras em equilíbrio
Área silvestre ou doméstica?
 Ainda há alguns casebres de pau-a-pique nos domínio do parque. Não sei porque motivo ainda estão ali. Talvez o governo não tenha realocado esses moradores, ou talvez não tenha pago indenizações, ou talvez tenha dado a chancela de Parque Nacional a essa área e permitido que continuem habitando o Vale do Catimbau. Apesar de relativamente novo, já é tempo de se pensar com mais apreço sobre o papel de uma Área de Conservação. No meu humilde alvitre, a vegetação nativa não pode coexistir com plantações; animais silvestres não deveriam disputar espaço com o gado. Essa equação, pelo menos aqui, no Catimbau, não foi resolvida, e o produto disso é um Parque Nacional com feições de zona rural. Para piorar essa sensação de “estar em um lugar que deveria ser algo que aparentemente não é”, ainda sofri o acidente mais grave da viagem. Ao fazer uma curva em uma estreita passagem de areia, eis que me deparo com um velho Del Rey vindo no sentido contrário em alta velocidade. Consegui frear a moto e buzinar, alertando o desatento condutor. Quando finalmente me viu, pisou fortemente no freio e o carro se arrastou por muitos metros na areia, tocando o pneu dianteiro de minha moto com o para-choque. Com o impacto, cai para o lado esquerdo. Minha perna ficou presa. Uma senhora, com uma criança de colo, saiu pela porta do passageiro imprecando o motorista, aparentemente seu marido. “Eu disse pra ir devagar”, bradava ela com toda a melodia do sotaque pernambucano. Passou ao lado de mim, quase pisoteando meu capacete, e sumiu pela estrada. O homem só então se dispôs a erguer a moto e livrar minha perna.

Porta da Igreja

Parte norte do parque

Formação arenítica

Porto Real do Colégio (AL)
Levantei e chequei os danos. Guidão totalmente torto. O homem, com um facão na cinta (é cultural para os povos do sertão), me falava algo sobre eu estar errado. Tergiversei e dei o fora dali, evitando confusão. Rodei mais 2km com a moto toda desalinhada e finalmente parei para uma reavaliação: além do guidão torto, que consegui voltar prendendo o pneu dianteiro com os pés, como uma bicicleta, o pedal do câmbio entortara para baixo do motor, dificultando a troca de marchas. Na Vila de Catimbau, um comerciante me flagrou tentando desentortá-lo e me auxiliou na empreitada. Fora isso, tudo normal. Minha viagem não seria abortada por esse incidente. Dei adeus ao Parque Nacional do Catimbau e também ao oeste nordestino, já que agora eu me dirigiria a uma área agreste, na qual a caatinga já não reina soberana, dividindo o espaço com a mata atlântica. Acelerei até Garanhuns, serpentei pela Serra da Pelada, entre Canhotinho e Quipapá, e fui assolado pela chuva. Adentrei o Estado de Alagoas todo encharcado, e o mau tempo me acompanhou até Ibateguara, onde eu pretendia conhecer a Cachoeira do Roncador. Não detinha coordenadas para localizá-la, contudo, e muito menos os moradores que interpelei. Não vi outra opção a não ser continuar cruzando o agreste pela Serra da Barriga. No fim desse dia cheguei, exausto, a Porto Real do Colégio, na divisa de Alagoas com o Sergipe. Eu reencontrava, já em seus quilômetros finais rumo ao mar, o Velho Chico, que demarca naturalmente a divisão entre os Estados.
Parque dos Falcões
Dia 3 de julho. O último Estado nordestino jazia do outro lado do rio São Francisco. E, para mim, o local mais interessante de toda a viagem estava lá, em meio ao agreste sergipano. Derroquei em pouco mais de uma hora os 130km que separavam Porto Real do Colégio e Itabaiana. Dessa última são mais 12km até o bairro de Rio das Pedras e 3km de terra até o sítio Parque dos Falcões, nos contrafortes da Serra de Itabaiana. Lá pude conhecer o trabalho de José Percílio e sua equipe, que trabalham com a reabilitação de aves de rapina. Sob seus cuidados, falcões, harpias, carcarás, corujas e urubus, inclusive o rei, são curados de suas feridas. Muitos são devolvidos à natureza, enquanto outros, por terem danos que os impossibilitariam de sobreviver soltos, são mantidos em cativeiro ou semi-soltos. Há casos como o de um gavião-de-rabo-branco que chegou ao parque com a cabeça avariada por fragmentos de balas de revólver. O animal tem convulsões esporadicamente. “Libertá-lo seria assassiná-lo”, assegurou Percílio. Indagado sobre como começou a tratar dessas aves, ele confidenciou que foi presenteado com um ovo, aos sete anos. As galinhas do sítio de sua família chocaram-no. Quando eclodiu, tratava-se de um carcará, que ele logo nomeou Tito. “Tito me ensinou tudo, inclusive como acariciar uma ave sem amedrontá-la”. Anos depois lhe disseram que Tito era uma fêmea. “Não mudei o nome dela por causa disso. Continua Tito”, gracejou. Por incrível que pareça, Tito, hoje com 29 anos, ainda acompanha Percílio para onde quer que vá.

Harpia

Coruja-orelhuda

Urubu-rei

José Percílio
Eu não poderia ter encontrado uma forma melhor de terminar minha passagem pelos sertão e agreste nordestino. Ver um homem com tanta paixão pelo que faz é algo que me oportunizou repensar o modo como levo minha vida. Passamos tanto tempo syportando o que desgostamos e agradando pessoas pura e simplesmente por acreditar que um dia dependeremos delas. Um ser humano pode reensinar uma ave a voar e a se alimentar, mesmo desprovido de asas, bicos e garras propícios. Os quase 8 mil quilômetros rodados até Itabaiana foram não somente uma prova de resistência, nem tampouco um mero campo aberto para o conhecimento visual. Foram, sobretudo, um resgate daquela esperança com relação ao ser humano que se perdeu em algum momento de minha juventude. Logicamente eu ainda tenho a noção de que as atrocidades contra o meio ambiente ainda são bem mais numerosas que as medidas pessoais e governamentais para preservá-lo, mas testemunhar trabalhos como os levados a cabo na Serra da Capivara e no Parque dos Falcões me devolvem aquela tímida esperança, uma fagulha que, penso eu, pode se extinguir a qualquer momento, mas cuja perduração não permitirá que o desespero e a indiferença me eivem com a sua misantropia.
A viagem não se findaria ali. Eu ainda vagaria até Camamu, no litoral baiano, para me juntar a Rodrigo Gil e percorrer toda a extensão do vale do rio Jequitinhonha, de sua foz, no município de Belmonte, Bahia, a sua nascente, em Serro, Minas Gerais. Contudo, uma jornada solitária se concluía. Eu me dizia que haviam sido, na verdade, poucos dias em movimento para tantos meses de hirto planejamento. Deixei muitos pontos de lado para, um dia, ter motivos para voltar. O cânion do rio Poty e a Serra Talhada que me esperem, portanto, juntamente com essa hospitalidade do povo sertanista nordestino que tanto me cativou. Que permaneça sendo sua característica mais marcante. Nosso país caminha a passos largos para a penumbra, mas em nenhum momento vejo esses sofridos homens como os responsáveis por isso. São, na verdade, grandes vítimas sobre as quais incide um duplo castigo: a semiaridez da caatinga e a negligência de seus governantes.

 
Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.


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E abaixo, um blues composto especialmente para o sertão nordestino. É, ademais, um singelo agradecimento a todos os que me auxiliaram durante essa viagem.