quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Morro do Voturuna – 20 de janeiro de 2013


“Um dia como este foi o suficiente para eu momentaneamente ignorar o dorido fato de que, no trabalho, meus superiores têm tentado, durante as últimas três semanas, me escalpelar”. Com essa frase emblemática de Luiz Paulo Bombarda Blanes, confidenciada a mim em uma das breves paradas nas desertas estradas rurais pelas quais nossas galhardas motocicletas se enveredam, esboço mais um daqueles antelóquios utópicos que permeiam todo o conteúdo deste espaço cibernético que, por enquanto, ainda me é “livre de impostos”, algo que pode parecer surreal no desgostoso – e oneroso – janeiro brasileiro. O senso comum do ser humano moderno o incita a nutrir cada vez mais a carreira profissional, elidindo que apenas um terço de nossas vidas é a ela destinado. Nos outros dois terços, uma parte cabe ao revigorante sono (aos que conseguem dormir, logicamente) e outra ao tempo livre, que muitos dispendem simplesmente não fazendo coisa alguma, ou se matriculando em cursos, especializações e outros possíveis potencializadores de nossas carreiras. É aí que pecamos. Obviamente os mais ensandecidos pela nossa economia de mercado vigente podem argumentar que sou louco, já que tudo é voltado para o labor. Não que estudar não seja necessário. É, afinal subsistimos em uma época em que o progresso dita o ritmo da toada. Apenas creio que nos debruçamos em demasia numa questão que não ocupa sequer a metade do nosso dia. Paro por aqui para não me aventurar, com meu pedantismo a tiracolo, pelo campo sociológico. Delego este assunto ao grande mestre Domenico De Masi. E lamento que Luiz e grande parte de meus convivas estejam assim, sofrendo por motivos não meritórios, preferindo o trabalho à vida. E o pior de tudo: viajando pouco.
Companheiros de aventura
A ideia de explorar o Morro do Voturuna, imponente elevação quartzítica, de vegetação rasteira em seus píncaros, compreendida no cerne do triangulo imaginário formado pelos municípios de Pirapora do Bom Jesus, Santana de Parnaíba e Araçariguama, surgiu a partir de recentes incursões pela Estrada dos Romeiros, que liga Itu a Barueri beiradeando o nosso famoso e judiado rio Tietê. Em incontáveis ocasiões eu o contornei pelo asfalto, acreditando que seu cume era de difícil – senão impossível – acesso. Infatigável em minhas pesquisas, que sempre me relegaram à estaca zero, deparei-me com algumas fotos e relatos de Benê Moura, um morador das redondezas que detinha um material interessante sobre o morro. Entrei em contato com o mesmo que, prestativo, me forneceu mapas de trilhas e informações adicionais para que eu tentasse, pela primeira vez, subi-lo, e não apenas observá-lo de longe. Além de sua altivez e importantes valores paisagístico e ambiental, o Voturuna, por sua localização geográfica privilegiada e por estar numa região aclamada como “o berço dos bandeirantes”, incita à releitura de uma das fases mais sombrias e mal estudadas de nossa História: a época bandeirantista. Não precisava de motivos para ir até ele, mas foi bom saber que tinha vários. Restou-me recrutar meus companheiros de outros verões Levi Vieira e Luiz Paulo Blanes, além de minha resistente namorada Luana Romero. O professor Rafael Ferreira também se juntaria a nós, nessa que seria sua primeira viagem sobre duas rodas (e sobre dois pés também). Quatro motocicletas, cinco seres humanos e o Voturuna, além de 150km de surpresas entre eles: completava-se o debuxo.
Luiz Paulo, o letárgico
Partimos de Americana às 6:10h da manhã de um 20 de janeiro que se revelou frio e pouco nublado, a despeito do calor e das chuvas constantes que assolaram a última semana. De plena consciência que temporais vespertinos de verão, mesmo rápidos, poderiam inviabilizar nossa pequena incursão, optamos por arriscar uma saída ainda sob a luz das estrelas e da lua, maximizando nossas chances de chegar ao local pretendido antes que uma líquida blitzkrieg nos dissuadisse de nossos intentos. Luiz Paulo não compareceu ao local marcado e deixamos o bairro da Praia Azul sem o mesmo. Acessamos a rodovia Anhanguera, na qual permanecemos até o trevo de Sumaré. Cruzamos todo o centro da cidade e aguardamos Luiz Paulo, que se atrasara, nas imediações da avenida Rebouças. Às 7h, um ainda letárgico aventureiro se unia a nós, enveredando-se conosco pelo bairro rural do Cruzeiro, com sua singela igrejinha de torre central iluminada pelo halo dos primeiros raios de sol do dia, e pela vicinal Sumaré-Monte Mor, uma estrada de apenas 14km airada por um bucolismo muitas vezes raro de se encontrar em grandes centros urbanos. É uma estrada extremamente fotogênica, pontilhada por lagoas represadas; grandes pastagens; pequenas elevações, que lembram as coxilhas gaúchas;, árvores frondosas, cujos galhos se dispõem sobre o asfalto, formando túneis naturais e cercas vivas coloridas por exuberantes e violetas quaresmeiras; e um desenho sinuoso, cujo serpentear exige cautela do motociclista e uma velocidade moderada se o intuito é detalhadamente admirar tudo o que tem a exibir. Fui apresentado a essa pequena via, que não consta em muitos mapas rodoviários, pelo meu grande camarada Fernando Santarrossa, isso lá pelo idos de 2011, e desde então, sempre que a rota me permite, procuro passar por estas plagas.

Igreja do bairro rural do Cruzeiro, em Sumaré

Encantos da estrada Sumaré-Monte Mor

Igreja de São Benedito
Uma plácida Monte Mor nos recepcionou. Nenhum de seus moradores se arriscara a palmilhar as ruas nos derredores da diminuta Igreja de São Benedito, de um amarelo pálido e, a exemplo de sua não distante parente no bairro do Cruzeiro, de única torre central. Seu simples relógio, arredondado, mas em um quadrado emoldurado, apontavam 7:40h. Uma breve consulta em meus mapas nos indicou que o rio Capivari corria próximo, incitando-nos a um adendo nos planos originais. Rapidamente aceleramos para longe dali, testemunhando a cidade de 43000 habitantes despertar à medida que trafegávamos por suas principais avenidas. Sobrepassamos, nos limites da cidade, a rodovia SP101, e nos mantivemos na terra da Estrada do Rio Acima por pouco mais de 200m. Deparamo-nos com o rio Capivari, como desejado. Corria forte e ligeiramente mais alto que seu nível habitual. Em uma de suas recentes cheias deve ter sacrificado a antiga ponte, visto que as fundações de uma nova se erigiam. Por uma escada de madeira alcançamos o alto da estrutura e obtivemos uma boa vista do rio, cuja mata ciliar, de um lado, não passava de algumas pequenas árvores e, do outro, simplesmente inexistia. É mais um dos degradados afluentes do também degradado Tietê. Como esperar que um gigante caminhe para uma plena revitalização se suas pernas e braços o desestabilizam? Lamentamos ao mesmo tempo em que registramos, pousado à copa da vegetação secundária (ou terciária, ou quaternária), uma biguatinga fêmea, valente sobrevivente desse meio que a mim me pareceu, a priori, tão inabitável. Ademais, Luiz observou, quando já nos preparávamos para abandonar aquele desestimulante cenário, a presença do guaranazeiro, de cujo extrato dos frutos é extraída a guaraína ou cafeína, estimulante leve que, dentre outros propósitos, nos auxilia no difícil ato de acordar cedo, num domingo, para desbravar o Brasil.

Rio Capivari

Biguatinga fêmea

Guaraná

Estrada Parque Itu-Cabreúva
Meros 3km depois, SP101 abaixo, pendemos para o sudeste pela Estrada Municipal Monte Mor-Indaiatuba, que apesar de bucólica, como a Sumaré-Monte Mor, não é tão paisagisticamente encantadora. Alguns lagos represados, vacarias, eucaliptos e vegetação rasteira ladearam o asfalto até Indaiatuba, recentemente rotulada como a melhor cidade para se viver nesse imenso Brasil. Logicamente foram levados em conta, para a consolidação de tal avassaladora posição na classificação, aspectos econômicos e o suposto fino trato em áreas como Educação e Saúde. Não quero subtrair o mérito da pesquisa e nem protrair-me muito nesse assunto, mas friso que a cidade em que moro, Americana, ficou na 18ª colocação, nesse mesmo ranking, e seus veios educacionais não vão nada bem. Nem menciono a Saúde, há muito negligenciada pelo poder público. No fim, os lugares tidos como os mais desenvolvidos são aqueles em que os moradores são capazes de consumir mais. Os caracteres humanos são deixados de lado quando um grupo de pessoas goza de uma boa renda e contribui para o enriquecimento material aparente de uma determinada cidade. Foi a sensação que tive, e que não foi necessariamente a mesma que a de meus companheiros de aventura, quando seguimos o traçado do córrego do Belchior, dentro da área concernente ao Parque Ecológico de Indaiatuba. Aqui, carros importados estacionados, pessoas com indumentárias de grife correndo, cachorros de raças europeias. Ali, não muito adiante, em uma feira livre, o panorama já era discrepante e tudo parecia estarrecedoramente mais humilde. O contraste, portanto, existe a despeito de todo o afamado desenvolvimento. Foi este último que me fez sair logo dali, ciceroneando meus convivas pelas SP075 e SP300, apeando novamente apenas no portal amadeirado da Estrada Parque Itu-Cabreúva.

Ponte sobre o rio Tietê, em Itu

Garça-boiadeira
  
Aracnídeos por todos os lados
Se em Indaiatuba há divergências entre as aquisições materiais, na Estrada Parque Itu-Cabreúva, um curto pedaço da Estrada dos Romeiros que recebe essa denominação por entrecortar uma Área de Proteção Ambiental, há um duelo constante entre o vistoso e o horrendo. Lembro-me das palavras de Ari Fernando Borsetti Jr, que em uma de nossas incursões por essas paragens exclamou: “não há como achar um lugar belo se todos os sentidos não forem satisfeitos”. Disse isso porque o odor fétido do rio Tietê, cujo curso é acompanhado pela estrada, destoa da visão inspiradora proporcionada pela mata atlântica relativamente bem preservada, que sombreia todo o caminho e abaixa em alguns graus centígrados a temperatura ambiente. De uma ponte, no formato da espinha dorsal de um brontossauro ou qualquer outro grande herbívoro jurássico, observa-se a avifauna que insiste em não abandonar o rio mais poluído do Brasil: garças-boiadeiras (que não vivem da pesca como suas parentes, mas dos carrapatos do gado), garças-brancas-grandes e biguás. Aracnídeos se dependuram onde é possível, tomando a obra de engenharia por completo. Quem conhece sua límpida nascente, na Serra do Mar de Salesópolis, e suas transparentes águas nas prainhas de Pereira Barreto e do oeste paulista, na iminência do encontro com o rio Paraná, parece estar defronte a um outro Tietê, que aqui exibe seu trecho mais poluído. Uma outra característica notável desse ponto, e que passaria a ser uma constante até a cidade de Pirapora do Bom Jesus, é a presença de ilhotas de vegetação atlântica, umas enormes, e outras com apenas duas árvores de médio porte e nada mais. Enfim, é um monstro líquido que, no decorrer de seus 1010km de extensão, nasce, fenece e renasce, feito a fênix, e especificamente nesse confim se sustenta numa linha tênue entre a vida e a morte.

Biguás resistindo à poluição

Usina Hidrelétrica de São Pedro
  
Um marco de 1923 na Gruta da Glória
Avançando, deparamo-nos com a antiga Usina Hidrelétrica de São Pedro, construída em 1911 e atualmente desativada. A barragem continua lá, e as águas do Tietê, cheirando a amaciante de roupas, passam livremente por onde anteriormente uma barreira de contenção, que aberta fazia as vezes do vertedouro, inundava a represa. É uma parte bem pedregosa do leito, na qual os biguás pescam e se secam ao sol. Uma aproximação para fotos mais detalhadas não é permitida, e então seguimos, sempre acompanhando o rio contra o seu fluxo, atracando nas proximidades da Gruta da Glória, ou Escalada da Glória, um atrativo natural composto por grandes rochas circulares que rolaram do alto da serra, formando uma pequena caverna sabe-se lá quando. Washington Luiz, governador de São Paulo à época da construção da estrada, em 1922, em suas inspeções de andamento da obra, descansava nesse acidente natural e bestificava-se com a vista proporcionada por ele. O cenário hoje certamente é menos digno de admiração, mas nem por isso passa despercebido. Há de se entristecer apenas com o vandalismo descabido, que marca à tinta rochas seculares, e com o descuido daqueles que produzem lixo e não o descarregam em lugares adequados. No mirante, que se alcança subindo os degraus de cimento construídos para um melhor acesso, visualiza-se a forte correnteza do Tietê e os morros da outra margem, salpicados de pedras graníticas arredondadas e cobertos por uma rala vegetação que, infelizmente, serve de pastagem ao gado local. Aliás, esse é um outro embrolho. Do lado em que estávamos, a mata ciliar, mesmo que não primária, existia. Do outro não há predominância de gramíneas. Preservar a plenitude de algo cada vez mais é uma utopia, inconcebível nos dias atuais.

Gruta da Glória

Rio Tietê visto do mirante da gruta
  
Pirapora do Bom Jesus
Findados os 8km da Estrada Parque, chegamos à diminuta Cabreúva. Contornando-a rapidamente, localizamos em uma de suas saídas a continuação da Estrada dos Romeiros. É um trecho em que o desenho da Serra do Piraí obriga a estrada a afastar-se momentaneamente do rio Tietê. De alguns pontos elevados se avista o vale, magnífico, mas parar é impossível devido à estreiteza da via e à falta de acostamentos. Na descida da serra já era possível avistar, ao longe, a Serra do Voturuna, nosso escopo. Ao norte, uma muralha verde e densa, a Serra do Japi, elevava-se soberana. É a serra com as altitudes mais elevadas na região. Em Pirapora do Bom Jesus, cidade muio procurada por romeiros, encontramos o Tietê salpicado de blocos espumosos densos. Sobre uma ponte fotografamos um cenário que com certeza não perderia em garbo para Veneza, na Itália, se o “água verdadeira”, significado de Tietê em tupi, não estivesse tão desfigurado. As antigas construções beira-rio praticamente mergulham seus alicerces no leito. A Igreja do Bom Jesus e o Seminário Premonstratense, sendo esse último mais elevado que o primeiro, dão a impressão – e a certeza – de que tudo na cidade é derivado da fé catolicista. Há um cruzeiro, subindo em direção ao Morro do Capuava, de onde se obtém uma completa panorâmica da cidade e das serras adjacentes. Vê-se a Serra do Piraí, o Tietê e o conglomerado urbano de Pirapora do Bom Jesus, a oeste; a Serra do Japi, ao norte; e ao sul, agora não tão distante, o Morro do Voturuna, com um de seus flancos desgastado pela extração mineral de quartzo e dolomita. Estávamos perto, mas tentaríamos subi-lo pelo outro lado, o de Santana de Parnaíba.

Pirapora do Bom Jesus e Serra do Japi vistas do Morro do Capuava

Serra do Voturuna

Seminário Premonstratense em destaque

Santana de Parnaíba
Novamente nos enveredamos pela Estrada dos Romeiros, mas agora com o Tietê à esquerda avolumado na forma do Reservatório de Pirapora, alimentador das turbinas da barragem de Pirapora do Bom Jesus, no sopé do Morro do Capuava. Quatorze quilômetros depois a histórica Santana de Parnaíba já nos envolvia, primeiramente com suas construções urbanas modernas e ulteriormente com seu casario colonial das centúrias de XVI, XVII, XVIII, XIX e XX, constituinte do maior acervo arquitetônico tombado do Estado de São Paulo. Utilizamos o largo da Matriz de Sant'Ana, igreja construída em 1892 no lugar da frágil capela erguida por Suzana Dias em 1580, para estacionar as motos e palmilhar as ruas de Cima, do Meio e de Baixo, como são conhecidas as três principais vias do Centro Histórico. Vale frisar que 1580 é o ano de fundação da cidade, e Suzana Dias, mameluca, é aclamada como fundadora. Há inclusive um busto em sua homenagem na praça defronte ao templo católico. Ao lado direito da igreja há uma outra praça: a XIV de Novembro. É em seu muro de sustentação que escravos eram acorrentados, expostos e comercializados nos séculos XVI e XVII. Para se chegar a ele descemos uma escadaria que calha com a casa, erigida na segunda metade do século XVII, do temido Anhanguera (“diabo velho”), nome dado pelos índios ao impiedoso bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, que carregava consigo seu filho homônimo em jornadas pelo Triângulo Mineiro e Goyaz, ensinando-o a árdua faina. Não o confundam com Bartolomeu Bueno de Couto, também bandeirante, sádico colecionador de orelhas de escravos negros. Chegou a ter 3200 pares delas. Por falar em bandeirantes, muitos deles moraram em Santana de Parnaíba. Podemos citar Fernão Dias Falcão, André Fernandes e Domingos Jorge Velho, esse último o desmantelador do Quilombo dos Palmares e responsável direto pela morte do líder negro Zumbi.

Casa do Anhanguera

Neste muro os escravos eram acorrentados e expostos para venda

A História vista a olho nu
Andar pelas ruas de Santana de Parnaíba é ratificar – ou não – o que os livros de História nos contavam em nossa juventude. Casas de taipa de pilão, ruas de paralelepípedos, portas e janelas de grossa madeira e dimensões exageradas, tudo remetendo ao Brasil Colônia. A fiação elétrica moderna polui o visual, mas fora isso é um local digno da visitação de quem admira aglomerados históricos. Muitos paulistas expressam o desejo de conhecer as cidades históricas de Minas Gerais, mas negligenciam essa que é uma das mais antigas cidades do Brasil. Para se ter uma ideia, a primeira povoação efetiva do solo paulista (quiça brasileiro) foi a Vila de São Vicente, hoje Santos e São Vicente, datada de 1532. Menos de 50 anos depois, com a difícil transposição da Serra do Mar e o grassar dos colonos pelo Planalto de Piratininga, surgia a Vila de Santana de Parnaíba. São Paulo, antigamente São Paulo de Piratininga, é-lhe praticamente contemporânea, datada de 1554. Ouro Preto, em Minas, é do século XVIII, bem mais recente. Como supracitado, boa parte de seus moradores se dedicavam ao exercício bandeirantista, organizando expedições que saíam daqui, do “berço dos bandeirantes”, em busca de ouro e escravos indígenas no interior do país, uns visando receber títulos da coroa portuguesa pelos seus achados e outros apenas arrumando subterfúgios para exercitar a crueldade e o ódio inerentes aos seus corações. É aí que o Morro do Voturuna, ao qual nos dirigimos após uma breve visita ao Museu Parnaibano de Música, incrusta suas raízes na História, pois, sendo o morro mais elevado da região, servia de mirante natural aos homens que, à época, desprovidos de bússolas, guiavam-se apenas por referências geográficas no horizonte, como montanhas, planícies e rios caudalosos. Contavam, esporadicamente, com a ajuda de índios, preados ou não. Embora o horizonte de hoje seja totalmente diferente, subiríamos o Voturuna, que sofregamente resiste ao passar das centúrias.

Museu Parnaibano de Música

Adeus, Santana de Parnaíba
  
Estrada de chão para o Voturuna
De Santana de Parnaíba se ramifica uma vicinal chamada Estrada Ecoturística do Suru, e foi por ela que prosseguimos. Deixamos os últimos bairros urbanos para trás, passamos por várias chácaras e sítios e localizamos um pequeno lago, à direita da estrada, do lado do qual se principiava uma estrada mesclada de terra e cascalho. Pilotar por ela aviva uma estranha sensação, já que observamos o Morro do Voturuna se aproximando horizontalmente e se distanciando verticalmente, com a porção norte mais pontiaguda, e não arredondada como a víramos em Pirapora do Bom Jesus. Resumindo, chegar aos seus contrafortes é uma tarefa relativamente rápida; subi-los, a pé, seria outra estória. Nos últimos metros da estrada, uma pouco íngreme, mas barrenta ladeira, fez com que o pneu traseiro de minha moto girasse em falso. Luana e eu esperamos que meus convivas, que já haviam ascendido, retornassem. Por fim regressaram, e com o grupo reunido defronte aos portões do último sítio da estrada, em um local com algum trânsito de moradores locais, abandonamos, por ora, nossas motocicletas, subindo a escorregadia via a pé. Fotografamos, no caminho, um caxinguelê, o esquilo sul americano, serelepe exercitando-se num sobe e desce frenético pelo caule de um pinheiro. Cem metros depois, a estrada para automóveis se encerrava e a mata atlântica se adensava. Por uma picada nos embrenhamos, vencendo troncos crivados por fungos vermelhos caídos sobre ela. Acompanhando o marulhar de um ribeirão, que depois se intensificou, topamos com uma pequena cachoeira, que caía em degraus de uma altura de talvez 10 metros. Suas águas queimavam a pele de tão frias.

Caxinguelê

Trilha a pé

Cachoeira do Voturuna

Primeira vista de São Paulo
Retrocedendo alguns metros, localizamos uma ramificação da trilha, que antes nos passara despercebida pela premência de chegar à cachoeira, e por ela subimos a parte mais verticalizada de todo o percurso a pé. Enormes pedras faziam a vez de degraus. Raízes sobressalentes da exuberante mata atlântica, corrimões naturais, auxiliavam no equilíbrio. Beiradeamos a cabeceira da cachoeira, vencendo perambeiras que, se não relevássemos a umidade da trilha e a possibilidade de escorregões abruptos, poderiam ser fatais. Muito acima, a densa vegetação perdeu sua força, dando lugar a um cerrado recoberto de samambaias selvagens e pequenas árvores de caule retorcido. O aroma, emanado com a ajuda do calor do sol, deixava-se propagar com a ajuda do brando vento, atingindo nossa narinas e incitando-nos a descansar sobre um amontoado de pedras, uma espécie de mesa natural, ao lado do ribeirão que desce o morro, formando a cachoeira. Foi nesse momento que consultei meus mapas e descobri que, na verdade, estávamos a poucos passos de uma nascente. Avançamos, cruzamos um brejo e, num capão, uma pequena poça d'água não nos suscitou dúvidas. Ali estava uma das nascentes do Ribeirão Santo André, que deságua, em território parnaibano, no rio Tietê. Mais à frente, detendo nossos olhos a leste e envolvidos pelas amarelas cascaveleiras e outras flores de tons violetas, a cidade de São Paulo, ao longe, exibia sua imensidão. É tão bela vista de longe! Tem ares de uma ambiciosa maquete, guarnecida pela Serra da Cantareira e o seu ponto culminante e mais famoso, o Pico do Jaraguá. Gosto da cidade de São Paulo assim, distante, aparentando organização e harmonia.

Área da nascente do ribeirão Santo André

Transição entre cerrado e mata atlântica

Pico do Jaraguá

Alcançando o topo
Nas últimas pernadas, ainda subindo, cruzamos uma outra parte de mata fechada e o cume ao qual pretendíamos chegar, visível há algum tempo, aproximou-se ainda mais. A trilha sumiu, mas já não carecíamos dela. Entre as ásperas samambaias ascendemos pelos últimos metros, e um campo rupestre, fragoso, nos acompanhou até o topo. Meu altímetro, sobre uma espécie de marco feito com pedras do próprio morro empilhadas, marcava 1092m de altitude. Não é o ponto culminante do Voturuna (ou Boturuna, ou Ivoturuna, nomes com o qual também é conhecido), que em uma porção que meus mapas não conseguiriam nos levar tem 1238m. Ainda assim é uma estonteante vista da região. Vê-se Santana da Parnaíba, com a torre da Igreja de Sant'Ana sobressaindo-se em meios às baixas construções adjacentes, apontando de onde saíramos três horas atrás; a cidade de São Paulo, distante 30km em linha reta; um flanco do próprio morro “roído” pela mineração; e o Morro do Saboó, duas corcovas de camelo pertencentes a São Roque, ao sul. A vista norte, contudo, foi a que mais me impressionou. O rio Tietê, na forma do Reservatório de Pirapora, emparedado a nordeste pela Serra dos Cristais, e ao norte por um conjunto de serras que começam em baixas altitudes e vão aumentando à medida que se distanciam do “água verdadeira”. É um dos cenários mais estratificados que já vi, na falta de um termo mais condizente. Grudado ao rio, a Serra do Porto, com média de 800m de altitude; após um vale, a Serra da Sapoca, com 900m; outro vale e a próxima é a Serra da Guaxinduva, com altitudes beirando os 1200m; e por fim, quase obstruída pela antecessora, a Serra do Japi, com aproximados 1300m em seu ponto mais elevado. Enfim, é uma escadaria de montanhas que parte do rio em direção ao horizonte. Posso estar enganado, mas imagino que todos estejam com a vegetação nativa ainda intacta, preservados como o Tietê nunca foi. Teriam os bandeirantes dos séculos XVI e XVII, que aqui subiam para estudar o caminho para as bandeiras, a mesma admiração por esse cenário? Ou será que viam a natureza como um empecilho às suas tarefas de apresamento de indígenas e conquista de títulos reais na forma de sesmarias? Talvez ambos. Não dizem que o belo emana do perigoso?

São Paulo novamente, no Planalto de Piratininga

Morro do Saboó, em São Roque

O Tietê e as serras que o emparedam

Equídeos em área de nascente
Foram 2,6km palmilhados e um desnível de 202 metros derrocado. Era chegada a hora de regressar. Com o objetivo cumprido, tomamos o caminho de volta, admirando pela última vez a superfície do Morro do Voturuna. Ao passarmos pela nascente topamos com cerca de dez equídeos, entre mulas e cavalos. Não sei como vieram parar aqui, e também não sei se essa parte do morro é propriedade particular. Tomara que não, pois é um ermo tombado e considerado um refúgio forçado da fauna e da flora paulista, pois tudo ao seu redor foi explorado e ocupado. Ele vem resistindo, e acredito que a criação de um Parque Estadual seja necessária para protegê-lo das constantes investidas da raça humana. Senti a falta de pássaros. Não fotografei e nem vi um espécime sequer. Li os relatos de Benê Moura sobre a retirada de pássaros para engaiolamento e comercialização por ignorantes que não respeitam a avifauna. A era bandeirantista, que aprisionava indígenas, ficou para trás, mas a consciência humana pouco mudou com o passar dos séculos. Apenas aprisiona-se seres vivos diferentes, esses menores, numa mostra irrefutável de que desfrutamos de mais recursos materiais que os bandeirantes, mas perdemos em galhardia. Somos mais covardes que os maltrapilhos andejos do sertão. Enfim, o Voturuna, de onde se partia em exploração ao desconhecido, subsistirá enquanto a vontade de poucos em preservá-lo perdurar. Eu, que já perdi a fé no ser humano há muito tempo, colaboro com minhas críticas pedantes, denunciando pormenorizadamente o que vejo de errado e esperando que minhas palavras sejam lidas por pessoas capazes de agir com força.

Extração de quartzito, à direita. Apesar de tombado, o Voturuna "sangra"

Adeus, Morro do Voturuna

O regresso
Um último adeus ao ribeirão (seria nessas águas que encontraram ouro?) e aos rubros fungos da trilha da cachoeira. Reavemos nossas motos e partimos, de costas para o morro do qual nos tornamos íntimos. Em meio à quiçaça, uma derradeira fotografia de sua face leste. Continuamos pela Estrada do Suru, pela Estrada da Capela Velha e pela rodovia Castello Branco, acessando a partir dessa última uma vicinal que contornou a face oeste da Serra do Voturuna. A estafa se estampava na feição de todos, mas ainda pensávamos em levar a cabo uma tarefa: localizar a Cachoeira do Guaxinduva, em Cabreúva. Serpenteamos pela Estrada dos Romeiros até esse município, subindo posteriormente por uma via de ligação com a SP300. Adentramos uma vicinal e uma curta estrada de terra, mas fomos barrados nos portões fortificados de uma fazenda. O porteiro nos informou que desconhecia existir qualquer cachoeira na região. Restou-nos abortar o intento, seguir pela SP300 até Jundiaí e rumar pela Bandeirantes até Campinas, onde nos enviesamos pela Anhanguera. Às 19h, com o sol ainda raiando, apeávamos na Praia Azul após 330km rodados. Não foi uma grande viagem em termos de distâncias, mas foi uma das mais satisfatórias dentre todas as curtas incursões ensejadas pelas brechas da terrível rotina cosmopolita. Destarte, foi a primeira de um ano que promete muitas surpresas, boas e más. Eu sigo, sem dinheiro e sem regalias, vestindo os mesmos andrajos há mais de 10 anos, mas procurando conhecer ao máximo esse nosso país cada vez mais carente de viajantes. Cada vez mais carente de nós, que vivemos como se não existisse nada histórico e natural ao nosso redor.
 “Não há palavras para descrever o que vejo”. Iniciei a postagem com as palavras de Luiz, e termino-a com as de Rafael. Talvez houvesse palavras, meu caro amigo, se a observação do que realmente nos convém fosse a regra, e não a exceção. Somos capazes de minuciar todo o nosso ódio, em português compreensível e embargado, contra o governo, o sistema e outras pessoas que afetam negativamente nossas vidas. Quando estupefatos, maravilhados ou dispostos em frente ao belo, simplesmente não conseguimos expressar nossas sensações. Esse, a meu ver, é o grande mal da humanidade. É o grande leviatã que tentamos arpoar para reaver o simples e não apenas sobreviver, mas viver.

 
Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.
 

Um agradecimento especial a Benê Moura, idealizador do site trilhas.info, pelos mapas e informações fornecidos. Sem eles sería impossível um desfecho satisfatório para essa aventura.

E abaixo, um blues para o rio Tietê e para a vista do Morro do Voturuna.


sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Rota das Missões e Chuí – de 18 a 27 de dezembro de 2012


Não me reconheço quando apartado estou dos caminhos que me fazem ir adiante. Sou, na reclusão da estática, o refúgio da apatia, dos nervos constritos e das órbitas tremelicantes. Ansio pelo porvir, pelo amanhã, pelo minuano libertador de todos os males, que me fará, de alguma forma, afrouxar os elos milimetricamente moldados para meus pulsos e que, sem cerimônias, me permitirá alguns plenilúnios de solene liberdade, regados por sóbrias divagações e detentores do poder de eternizar memórias que o dia a dia enfadonho não é capaz de servir à mesa da mesmice. Enfim, ainda não perdi meus mais primitivos instintos, ao contrário dos desgraçadamente hirtos, prostrados diante do trono da imobilidade inconsciente que é, para a alegria do neoliberalismo, o requisito básico à disseminação de todo esse torpe conformismo cavador de sua própria cova. Obviamente sou um alienado, como todos os viventes desse enorme feudo chamado Brasil, mas isso não é motivo para assentar-me e reivindicar uma gleba que, desde o começo, nunca foi minha. Cobram-me por ela, sol após sol, e se disponho de um lugar ao qual retornar, dele posso me apartar ocasionalmente. O direito de ir e vir, pelo menos no meu caso (infelizmente no de muitos brasileiros não), ainda é verossímil. Ainda tenho para onde ir. Ainda tenho para onde “vir”. Ainda.
Duas motos rumo ao Estado gaúcho
O Rio Grande do Sul sempre me foi um Estado distante, inexplorado. Conhecia-o apenas pela leitura do livro Viagem ao Rio Grande do Sul, de Auguste de Saint-Hilare, que sobre o lombo de muares desbravou o mais europeu de todos os Estados brasileiros em sua época colonial, e também pelos relatos de meu pai, que meses antes desbravara um pedaço dos pampas gaúchos nas fronteiras com o Uruguai e a Argentina. Não tinha ideias visuais de seu relevo, fauna, cultura e, por ser uma paragem longínqua de Americana, adiara em muitas oportunidades uma incursão a esse local que, se palavras e acordos fossem honrados, hoje não pertenceria ao Brasil, de acordo com o Tratado de Tordesilhas, firmado entre espanhóis e portugueses em 1494, seis anos antes do nosso “descobrimento”. Enfim, palavras são distorcidas, papéis são incinerados e a evolução social segue seu curso em uma progressão tão desenfreada que Darwin e Weber se pasmariam ao ver, na atualidade, nossa sôfrega flutuação pelo processo. Não obstante, novos tratados, como o de Madrid, de 1750, foram consolidados, e batalhas como a Guerra Guaranítica e outras tantas entre espanhóis, portugueses, jesuítas e indígenas demarcaram, ao custo de muito sangue, nossas fronteiras, e hoje podemos chamar essa nesga de terra de Brasil. Para lá iríamos, portanto, eu e meu intrépido camarada Rodrigo Costa Gil. Seriam duas motocicletas, um Estado completamente novo aos nossos olhares e, peremptoriamente, duas mentes abertas ao desconhecido.
Companheiro de viagem
A saída de Americana ocorreria às 4h da manhã do dia 19 de dezembro, um horário que nunca antes fora deliberado. A viagem seria longa e almejávamos aproveitar o primeiro dia para vencer a maior quilometragem possível, visto que cruzaríamos dois Estados antes de adentrar definitivamente o Rio Grande do Sul. No entanto, grandes aventuras usufruem de uma margem de erro quanto a datas e horários, e dessa feita não poderia ser dessemelhante. Terminamos deixando as imediações do portal de Americana às 5:30h, enviesando-nos pelas rodovias Anhanguera e Luiz de Queiroz, contemplando nada a não ser lanternas e faróis dos veículos que ousavam transitar a essa hora em meio a penumbra das plantações de cana-de-açúcar. Na Rodovia do Açúcar e na Estrada do CEASA, em Piracicaba, o perigo aumentou consideravelmente, pois além da escuridão desviávamos dos caules de cana que se desgarravam dos treminhões canavieiros. Afinal, era época de colheita. Já na Cornélio Pires os primeiros raios de sol despontavam, revelando uma névoa pouco densa sobe a vegetação composta pela sempre presente cana e pelos tufos de mata atlântica que ainda subsistem às demandas cada vez mais crescentes por etanol. Cruzamos o rio Tietê, entre Tietê e Cerquilho, avançamos por Tatuí e apeamos em Itapetininga, berço do grande compositor Teddy Vieira. Na Raposo Tavares, uma passagem por um ainda incipiente rio Paranapanema e rumamos a Capão Bonito, de onde pendemos para o Paraná pela rodovia Francisco Alves Negrão, com pequenas entradas em Taquarivaí e Itapeva.  

Cachoeira do escoadouro da Usina Matarazzo, em Jaguariaíva

Cachoeira Lago Azul

Pedra do Boné
Enquanto São Paulo ficava para trás e a região sul se tornava uma realidade, observávamos a transição entre a mata atlântica e o cerrado. À nossa direita o rio Verde, de leito pedregoso, granítico, corria em direção ao rio Itararé, que divide, nessa altura, a região sudeste da sul. Cruzamos sobre o mesmo, no município de Itararé, e entramos no Paraná, terra de meus avôs maternos, mais precisamente em Sengés. É uma região linda, com cânions, cachoeiras, corredeiras e um cerrado que ainda demonstra galhardia apesar dos ataques constantes do pinus. Entretanto, ficaria para uma outra ocasião o desbravar dessa área. Como acepipes para um futuro retorno, adentramos uma estrada rural no município de Jaguariaíva, colada a Sengés, para as primeiras fotos da incursão que até então se estendera por 400km. Em direção a Usina Matarazzo, registramos primeiramente a Pedra do Boné, envolta por pequenas árvores retorcidas e por um imenso capão de samambaias, lar de diligentes gibões-de-couro. Em seguida, uma cascata seminatural, semiartificial formada pelo canal escoadouro da usina. Mais à frente, deixando as motos de lado e acessando uma picada, desfrutamos da cachoeira Lago Azul, que descia suavemente por pequenos degraus, derrotando um desnível de 20 metros. Tratava-se das águas do rio Lajeado Grande, que em seu curso oferece muitas belezas a serem apreciadas. Deixando a queda e a estrada rural, observamos uma outra, verticalmente pequena mas longitudinalmente extensa. É uma cria do rio Capivari denominada Cachoeirão, localizada praticamente no centro de Jaguariaíva.  
 
Gibão-de-couro

Cachoeirão

Serra da Esperança

Represa de Salto Santiago
Pela PR151 fomos tocando lentamente, agora sob o sol escaldante de término de primavera. Os pedágios, uma triste e onerosa realidade das estradas paranaenses, pontilhavam o caminho a cada 40km. Chegamos a Ponta Grossa, cidade com a altitude mais elevada até então: 960 metros. Dessa grande cidade se ramifica a BR373, e nela permanecemos até Prudentópolis, a terra das cachoeiras gigantes, que novamente deixaríamos para visitar numa outra ocasião. Agora na BR277, subimos a Serra da Esperança, um importante reduto de mata atlântica no coração do Paraná. Apesar de parecer uma forte subida, no fim atingimos meros 1100m de altitude. Guarapuava veio na sequência, e foi nesse município que fui testemunha ocular, assim como Rodrigo, do empilhamento de folhas de fumo sobre um caminhão, prontas para partirem para a indústria que alimenta o vício de inúmeras pessoas pelo mundo afora. Já no último quarto do dia, numa continuação da BR373, descemos o vale do rio Iguaçu, o mesmo que, quilômetros depois, forma as Cataratas do Iguaçu, o espetáculo mais garboso e imponente que a natureza foi capaz de arquitetar até hoje. Sobrepassamos a extensa ponte, não sem antes descermos às fundações da mesma para algumas fotografias. Nessa nesga de curso o Iguaçu é represado para a alimentação das turbinas da Usina Hidrelétrica de Salto Santiago. O reservatório, contudo, estava baixo, seco. Do outro lado se principiava a Reserva Indígena Mangueirinha, na qual remanescentes de guaranis vendem artesanato à beira da estrada para complementar a renda e não depender exclusivamente da agricultura de subsistência. Observando as faces risonhas dos indiozinhos passamos por Coronel Vivida e encerramos o primeiro dia na moderna Pato Branco, onde as luzes de natal na matriz pareciam querer transformar a noite em dia. Foram percorridos, no total, 900km.

Pato Branco

Rio Uruguai, em Itapiranga

Vale do rio Uruguai
No dia 20, o segundo da viagem, deixamos Pato Branco rumo à divisa com Santa Catarina. Localizamos, em Vitorina, a PR158, que nos deixou nos arredores de São Lourenço do Oeste, já no Estado catarinense. As típicas casinhas de madeiramento horizontal e pintadas a cores vibrantes surgiam vez ou outra em pequenos vilarejos e também nas extensas plantações de soja, o forte da região noroeste. Fez-se presente também o vento destrambelhado que, de tão impetuoso, impedia que nossas motocicletas permanecessem na posição vertical, relegando-as praticamente aos 45º. O perigo nos fez diminuir a marcha enquanto cruzávamos por Campo Erê, Anchieta e Guaraciaba. Ao nosso lado esquerdo víamos o território argentino, uma vez que descíamos pela BR163 paralelos a ele. Passamos por São Miguel do Oeste, Descanso e Iporã do Oeste, alcançando, exaustos pela repressão da ventania, Itapiranga, num vale magnífico formado pelo rio Uruguai, que naturalmente divide Santa Catarina do Rio Grande do Sul. Não há pontes para o outro lado, e sob um calor de 37º aguardamos a balsa que, por R$7,00 cada, nos desembarcou do outro lado, às margens do desemboque do rio Guarita no grande Uruguai. Pela primeira vez Rodrigo e eu pisávamos em solo gaúcho. A duras penas subimos o vale por uma estrada de terra, obtendo de alguns pontos uma inspiradora vista do rio de águas barrentas que acabáramos de atravessar. Foram mais 20km de pedras, terra e algum barro até a entrada do Parque Estadual do Turvo, no qual se situa o Salto do Yucumã, a maior cachoeira longitudinal do planeta. Porém, nem sempre podemos contar com a sorte. A decepção em minha face se tornou evidente quando o guarda do parque nos informou de que as comportas das hidrelétricas anteriores ao salto foram abertas devido às fortes chuvas dos dias anteriores, causando uma inundação repentina no curso do rio Uruguai e encobrindo todo o Yucumã. "Perderam viagem, gurizada". Como havia ainda uma estrada dentro do parque de 15km até a cachoeira, resolvemos seguir nela para não "perder a viagem". Barro, preás, teiús e mata atlântica fechada nos acompanharam até a beira d'água. Embaixo daquele turbilhão se escondia, sabíamos, uma cachoeira de 15 metros de queda com 1,8km de extensão. Do outro dela, alcançável a nado ou de barco, se encontrava a Argentina.
  
Salto do Yucumã, inundado

Estrada do Parque Estadual do Turvo

Chuva em Santa Rosa
Na saída do Parque Estadual do Turvo, o mais antigo do Estado, nosso infortúnio ganhou uma nova companheira: a chuva. Minha tristeza era tamanha que vesti minha capa, em silêncio, e fui acelerando pela lama descuidadamente, com Rodrigo, cauto, na retaguarda. Felizmente não caí. Não aceitava o fato de viajar 1100km para ver algo e, de repente, ele não estar lá. E saber que o agravante responsável por esse fato é o progresso e sua voraz e cada vez mais premente carência de energia elétrica! Com isso, o curso dos grandes rios, nesse caso o Uruguai, é modificado para a disposição de barragens e usinas hidrelétricas de grande porte, afetando desde piracemas a acidentes geográficos naturais, como o Salto do Yucumã. O aguaceiro dos céus, que nunca me foi um empecilho, a princípio me encolerizou, mas enquanto nos distanciávamos daquelas paragens supostamente maravilhosas do Rio Grande do Sul, tornou-se um aliado, diminuindo a elevada temperatura ambiente e esfriando minha cabeça. Internalizei que restava-nos seguir rumo à região das Missões, nosso segundo escopo nessa aventura pelo Rio Grande do Sul, e objetivando esse fim cruzamos por Derrubadas, Padre Gonzales e São Martinho, sempre com a soja e esporadicamente o milho ladeando o asfalto. O vento, obstinado, soprava com pujança, e assim o faria durante toda a nossa estadia no Estado. A ausência quase total de montanhas, serras e grandes rios extraíam toda e qualquer forma de carisma da paisagem. Outra coisa curiosa que notei foram os pequenos e bem adornados cemitérios que, diferentes dos do Estado de São Paulo, estão dispostos fora da área urbana dos vilarejos e cidades. Era comum vermos um cemitério e, dois quilômetros depois, chegarmos aos municípios, como se quisessem manter seus mortos bem longe do convívio citadino. A solavancos, molhados, decepcionados e exaustos, chegamos a Santa Rosa, já na região das Missões, e nela decidimos pernoitar. Foram rodados 430km nesse segundo dia.

Porto Internacional de Porto Xavier

Santuário de Assunção do Ijuí

Cerro do Inhacurutum
Santa Rosa pertencia a Santo Ângelo, uma das cidades em que havia uma redução jesuítica, isso lá pelos idos de 1706. Contudo, nada havia nela de histórico. Amanhecemos, então, augurando zarpar o mais rapidamente possível, mas uma forte chuva, mais uma vez, intentou nos retardar. Com muito custo partimos em direção ao nosso primeiro sítio arqueológico, ainda bem distante dali. Seguimos pela BR472, observando ao longe as cidades de Santo Cristo e Porto Lucena, onde novamente se via o rio Uruguai e o lado argentino. Apeamos em Porto Xavier, na sequência, e não nos deixaram passar a pé a cancela para fotografarmos o movimento das balsas do Porto Internacional, que transporta veículos entre um país e outro. Aqui se vê a importância do rio Uruguai, pois além de ser um divisor de terras entre Santa Catarina e o Rio Grande do Sul, por um trecho, também separa o Brasil da Argentina, até formar, juntamente com o rio Paraná, o grande estuário do rio da Prata, entre a Argentina e o Uruguai, provendo o sustento e a logística de milhões de pessoas em seus mais de 2000km de extensão. Saindo de Porto Xavier, rumamos ao sul, e em menos de 30km acessávamos uma estrada de terra para o Santuário de Assunção do Ijuí, uma simples capela erigida ao Padre João de Castilhos, morto pelos índios guaranis a mando do Cacique Nheçu em 1628, que primeiramente havia aceitado a instalação de uma missão jesuíta para catequizar os índios, mudando de ideia ulteriormente e ceifando a vida do religioso. Diz-se que a primeira missa foi rezada aqui pelo Padre Roque Gonzalez também em 1628. Obviamente nada restou da redução. A capela é uma simples construção moderna, bem como a cruz missioneira, com dois braços abertos, simbolizando a fé redobrada, mas o local, em si, é histórico. Ovelhas pastam solenemente nos gramados aos seus derredores. Ao longe, o Cerro do Inhacurutum, uma pequena elevação de cume arredondado no terreno quase plano, é cultuado como o posto de observação dos índios que, do alto dele, antecipavam a aproximação dos jesuítas. Cerro, em espanhol, é monte, montanha. Essas terras pertenciam à coroa espanhola. As missões eram a mando da coroa espanhola. Anteriormente a dominância era dos nativos indígenas.  

Caprinos

Posto médico de XVI de Novembro

Pilcha
Pela BR392 elongamos, no sentido sul, até a cidade de Roque Gonzalez, batizada com o nome do padre paraguaio, de ascendência espanhola, que comandou a primeira leva de jesuítas para a banda oriental do rio Uruguai na segunda década do século XVII, ou seja, para o solo atualmente riograndense. Ressalto aqui que o fenômeno da catequização indígena pelos jesuítas não se limitou apenas ao Brasil, mas também a Argentina, Paraguai e Uruguai, numa época em que fronteiras eram difusas e a luta por terra entre indígenas, espanhóis e bandeirantes portugueses era ferrenha e imposta mais pela força do que por acordos assinados em pergaminhos. O rio Ijuí corria caudaloso ao nosso lado esquerdo, e acompanhando-o pelo Lago da Usina Hidrelétrica São João topamos com o trevo de acesso a São Nicolau e XVI de Novembro. Quando contornei a rotatória, chamada de rótula pelos gaúchos, olhei automaticamente pelo retrovisor, procurando Rodrigo, e senti o sangue correr gelado ao vê-lo caído no canteiro gramado. Retornei alguns metros, encostei minha moto e constatei os danos de meu camarada: mão esquerda esfacelada, capacete raspado, carenagens laterais destruídas e pedal de câmbio totalmente torto em razão da queda. Dois cidadãos de uma residência próxima me ajudaram a levantar a moto e contataram uma ambulância que, da cidade de XVI de Novembro, vieram resgatar Rodrigo. Um curativo e bandagem nas mãos e o intrépido já estava pronto para seguir viagem, ao contrário de sua moto, que pôde apenas rodar em terceira marcha devido ao pedal retorcido. A 40km/h chegamos a São Nicolau, 30km depois, onde o filho de um mecânico gentilmente desentortou a peça para que a troca de marchas fosse possibilitada.


Ruínas da redução de São Nicolau
   
O que restou da igreja
Em São Nicolau aproveitamos para visitar o primeiro sítio arqueológico com ruínas de uma redução jesuítica da viagem. Não restou muita coisa, visto ser uma obra em pedra altamente suscetível às intempéries, ao tempo e à mão impiedosa e avassaladora do homem. O Sítio Arqueológico de São Nicolau é, bem dizer, uma reminiscência do passado, um amontoado de rochas trabalhadas que foram sendo descobertas em escavações levadas a cabo por arqueólogos gaúchos em busca de sua História. Várias plaquetas informativas dispostas pelo terreno plano explicam a arquitetura de uma redução, com a igreja ao centro sempre construída com a face voltada para o norte, a casa dos padres em sua laterais, o cemitério e uma praça central com as casas dos índios em processo de catequização nos derredores. Do fronte da igreja restaram apenas dois nacos da parede, e do solo e das casas dos índios apenas pedras. Tal redução é integrante dos chamados Sete Povos das Missões, uma segunda leva de missões jesuítas que se espalharam pelo território riograndense no fim do século XVII. A primeira, como supracitado, foi contida pela desconfiança dos índios guaranis. Depois de conjecturado o Tratado de Madrid, em 1750, as reduções, nelas inclusa São Nicolau, passaram a estar em território português. A Espanha trocara a Colônia de Sacramento, no Uruguai, até então propriedade de Portugal, pelo território que hoje compreende o Rio Grande do Sul. As missões nessa área foram, por esse motivo, destituídas de suas terras. Padres e índios foram mortos ou debandados para outras regiões. Alguns foram escravizados. Dos Sete Povos, sete reduções, apenas quatro ainda preservam suas ruínas. Uma já conhecêramos. Faltavam, ainda, mais três.


Catedral Angelopolitana, em Santo Ângelo
   
A cruz missioneira e a lua
Rodrigo insistia que sua moto estava “puxando” para a direita. A minha, por sua vez, amargava pastilhas de freio totalmente gastas. Na cidade de São Nicolau, onde alguns homens mantêm a tradição gaúcha ao vestirem as pilchas, compostas de bota de couro cru, bombachas, guaiacas (cintos), facas e chicotes, não encontramos as peças necessárias ao reparo de nossas companheiras. A opção foi mudar a rota e partir para a maior cidade da região, Santo Ângelo, distante 120km dali. Chegamos na mesma ao cair da noite, ainda em tempo de fotografar a Catedral Angelopolitana, uma réplica da igreja da redução de São Miguel Arcanjo, que visitaríamos no dia seguinte. É de 1971, e em sua fachada estão dispostas sete esculturas referentes aos Sete Povos das Missões: São Borja, São Nicolau, São Miguel, São Luiz, São Lourenço, São João e Santo Ângelo. A cidade de Santo Ângelo foi, portanto, local de uma redução, a de Santo Ângelo Custódio (1707-1756), mas a cidade moderna edificou-se sobre suas ruínas, restando apenas algumas poucas pedras descobertas recentemente através de escavações arqueológicas. Esses resquícios estão expostos em bancadas cobertas por espesso vidro na lateral direita da catedral. Por fim, ajeitamos para o dia seguinte o conserto das motos, restando-nos descansar dos 360km rodados e de uma queda e refazer a rota daquele local em diante. As luzes de natal novamente auguravam derrotar a noite, resplandecendo nada mais do que o puro consumismo das pessoas que corriam atrás de presentes para a data festiva. Tudo o que consumimos, em nossa falta de capital, se resume na fala da farmacêutica que demoramos a entender devido ao sotaque carregado. “Tão vindo de longe, hein, gurizada! Cuidado com essas motos. Vocês são o para-choque. Seu anti-inflamatório ficou 5 com 30”. Em São Paulo dizemos 5 e 30. Bem, estávamos muito longe de São Paulo, e a mão de Rodrigo não estava nada boa.


Ruínas de São João Batista
   
Homenagem a Antonio Sepp
Dia 22, quarto dia da incursão pelo Rio Grande do Sul. A parte da manhã foi consumida inteiramente pelo conserto das motos, e após o meio dia deixamos Santo Ângelo em direção a Entre-Ijuís, onde acessamos a BR285, que corta boa parte da Rota das Missões. Rodamos 14km pelo asfalto, sentido oeste, e adentramos uma estrada de chão, na verdade uma mistura escorregadia de terra, lama, pedra e estrume de gado. Os pouco mais de 8km nesse tipo de solo demandaram certa atenção, mas ao chegarmos às ruínas de São João Batista tudo foi recompensado, algo que nem o calor sufocante de 35º envilecia. Ao contrário do sítio arqueológico de São Nicolau, esse nos aguardava totalmente cercado e estruturado para visitas. Na guarita de acesso, onde há vigilantes 24h, alguns cartazes com explicações sobre as Missões e bancadas com objetos dos séculos XVII e XVIII, descobertos em escavações recentes, preparavam os turistas que, naquele momento, re resumiam a Rodrigo e a mim, para o que viria na sequência: as ruínas em si. É verdade que, de 1697, pouca coisa permaneceu na vertical, como as bases do cemitério e a igreja. Uma escultura retangular nos chamou a atenção por estar bem conservada, mas logo descobrimos se tratar obra recente em homenagem a Antonio Sepp, fundador da redução que foi, na verdade, fruto da divisão da redução mais próspera dentre as sete, a de São Miguel Arcanjo, não muito distante dali. Pedaços de pedras e colunas da época ocupam o lugar antigamente dedicado às casas dos mais de 3000 índios que habitavam a redução. Na parte posterior da igreja, seguindo por uma trilha em meio à mata, um imenso descampado revela árvores frondosas e muita tuna, um cactus de frutos comestíveis muito apreciados na época. Além da tuna, cultivavam e consumiam também, em forma de chá, a erva-mate, bebida indígena tida como energética no pré-batalhas. Hoje a tradição continua. O chimarrão, nome popular, é consumido em todo o Estado e em muitas outras áreas anteriormente ocupadas pelos guaranis.  

Estrada entre as ruínas de São João Batista e São Miguel Arcanjo

Ruínas de São Miguel Arcanjo

Igreja inacabada
Das ruínas de São João Batista parte, para o oeste, uma escorregadia e barrenta estrada de terra que demoramos a derrocar. O cenário, a soja, não trazia beleza alguma para um aliviante espairecimento, e nervosamente escorregamos por 18km até o asfalto de São Miguel das Missões, pequena cidade que abriga as ruínas da redução jesuítica de São Miguel Arcanjo, tida como a mais próspera dos Sete Povos das Missões. Por ser o sítio arqueológico melhor conservado dentre os quatro existentes, foi tombado pela UNESCO como Patrimônio Mundial. É de 1687, e possui uma igreja inacabada erigida em pedra grês cujo desenho foi copiado para a construção da Catedral Angelopolitana, que visitamos em Santo Ângelo no dia anterior. É de dimensões magnânimas, sendo cercada pelo que restou da casa dos padres, das oficinas (onde os jesuítas ensinavam diversas atividades de manufatura aos índios) e do cemitério. Da praça e das moradias indígenas nada restou. Há quem diga que todo esse rigor arquitetônico, doutrinamento e supervisão engendrado nas reduções tinha por objetivo final consolidar o domínio espanhol na área através da europeização dos guaranis, mas essa é uma afirmação que carece de evidências sólidas. Os jesuítas estavam presentes em todo os cantos do planeta e faziam um trabalho de cristianização, sendo, talvez, usados pelas monarquias dominantes, no caso a Coroa Espanhola, para manter a posse das áreas das reduções, pois era comum, na época, começar povoados e garantir domínios, a exemplo das invasões e favelas de hoje. Eivadas por motivos escusos ou não, é importante salientar que essas reduções agiram em mão dupla, pois houve um aculturamento indígena e, ao mesmo tempo, o surgimento de uma arte que incorporava elementos europeus e guaranis. Nos pequenos cômodos protegidos por portas de grosso vidro, arquitetados por Lúcio Costa, o mesmo do Plano Piloto de Brasília, e ao lado da cruz missioneira na entrada do sítio, estão expostas esculturas em madeira policromada talhadas na época, bem como objetos feitos em barro, como pias batismais e tigelas. Os Mbyá-Guarani, descendentes dos guaranis remanescentes após o desmantelamento das reduções pelos portugueses a partir de 1750, consideram as ruínas de São Miguel Arcanjo um lugar sagrado. Alguns deles por lá perambulavam, vendendo seus artesanatos. Na primeira metade do século XVIII, mais de 7000 índios moravam na redução.  

Índia Mbyá-guarani

"Esta terra tem dono"

Teiú se aquecendo
Faltava-nos ainda o sítio arqueológico de São Lourenço Mártir. Aceleramos para longe de São Miguel das Missões, pelo asfalto, passando pelo portal das missões, onde a frase Co Yvy Oguereco Yara (esta terra tem dono, em guarani), bradada por Sepé Tiaraju, um dos líderes indígenas que tentou resistir ao fim das reduções e à tomada de suas terras pelos portugueses, e chegando novamente a BR285. Nela foram rodados 14km e, depois, mais 6 de terra até as ruínas de São Lourenço Mártir, a mais tímida de todas. As pedras cortadas em formas de cubo se espalham por todos os lados, muitas numeradas com uma tinta branca para, quem sabe, um melhor controle e organização dos estudos arqueológicos. Ovelhas pastam livremente pelo espaço anteriormente destinado à praça e às casas dos índios, e enormes teiús aquecem seu sangue frio repousados às rochas expostas ao radiante sol do Rio Grande do Sul. É de 1690 e chegou a possuir em seus domínios mais de 4000 indígenas. É também próxima ao Santuário de Caaró, ao qual seguimos na sequência. Neste local, que conta hoje com uma capela singela e 15 cruzes que representam a Via Crucis, bem como uma cruz missioneira, foi morto o precursor de todos os jesuítas que se aventuraram pela região dos Sete Povos das Missões, o padre Roque Gonzalez, num começo de século XVII, mais precisamente em 1628, em que a relação entre hispânicos e índios era ainda baseada em muita desconfiança. Não era para menos. Os bandeirantes portugueses incursionavam por esses confins preando índios para o trabalho escravo. Como acreditariam os nativos na palavra de homens brancos que diziam querer melhorar sua condição de vida?  
Ruínas de São Lourenço Mártir

Santuário de Caaró

Santa Maria
Nossa “missão” na Rota dos Missões se cumprira. Registráramos os quatro sítios arqueológicos que resistem ao tempo e acabamos deixando o calor daquelas terra ainda no dia 22. Partiríamos, agora, em direção ao sul do Estado, ao ponto mais meridional do Brasil, na divisa com o Uruguai: o Chuí. Permanecemos na BR285 até Ijuí, onde a RS342 finalmente nos direcionou para o sul. Passamos por Cruz Alta e descemos a serra até Santa Maria, uma grande e moderna cidade na qual decidimos pernoitar. As prefeituras do Rio Grande do Sul investem pesado na iluminação natalina e em Santa Maria não poderia ser diferente. De tão cansados pelo vento adormecemos, acordando cedo no dia ulterior para vencer os 550km restantes ao alcance de nosso destino. Foram coxilhas e mais coxilhas, ventanias atarantadas, muito sol e revoadas do simpático pássaro cavalaria até Pelotas onde, sobre uma antiga ponte desativada, fotografamos a imensidão do Canal de São Gonçalo, que une as águas da Lagoa Mirim as da Laguna dos Patos. Há ainda um menor, o de Santa Bárbara, ancoradouro de pequenos navios pesqueiros. Olhando para o norte vê-se o Porto de Pelotas, com embarcações de grande porte, e a cidade de Pelotas em si. As coxilhas, a essa altura, haviam sumido. Já estávamos na planície litorânea, e tudo era excessivamente plano, assim se mantendo por todo o caminho faltante que era, em síntese, o perímetro urbano de Rio Grande e uma retilínea estrada de 220km que, cortando o banhado supostamente preservado na forma da Reserva Ecológica do Taim, nos apresentou ao extremo sul do país. Foi uma pena testemunhar animais em extinção, notadamente canídeos, mortos por toda a extensão da BR471. Foi angustiante ver o Taim agonizando aos pés do asfalto, o mesmo asfalto que, muitas vezes, traz vida aos motociclistas. Vivos, porém, vimos somente capivaras, tachãs e emas. Eu, no meu eterno dilema, maldizia o progresso sentado sobre uma moto criada por ele.

Canais de São Gonçalo e de Santa Bárbara, em Pelotas

Ema e seus filhotes, no Taim

Capivaras no banhado
   
Chuí e Chuy
Bem-vindos ao Chuí, uma cidade retangular com 6000 habitantes no lado norte da fronteira seca com o Uruguai. É a mais meridional do Brasil. É onde o país acaba; é onde o país começa. É onde Rodrigo e eu, sem dinheiro para esbanjar, não nos sentimos benquistos. Atravessando o canteiro central divisório entre Chuí e Chuy (Brasil e Uruguai), “cambiávamos” de país e volvíamos passos depois ao constatar que não poderíamos desperdiçar os pífios reais de que dispúnhamos nos colossais free shops uruguaios. Por sorte eu tinha um Plano B. Deixando as motos em Chuí, embarcamos num táxi uruguaio e cortamos 8km da planície do Departamento de Rocha até a Sierra de San Miguel, no alto da qual foi construída pelos espanhóis, em 1734, o Fuerte de San Miguel. É uma construção militar de formato estrelado, guarnecida por canhões, postos de observação e casa de armas e pólvora. Foi tomado e reestruturado por portugueses em 1737, sendo hoje um patrimônio nacional do Uruguai. Seus cômodos internos guardam importantes informações sobre a hierarquia militar e as estratégias de defesa empregadas em uma época em que inexistiam armas de repetição, pelo menos no continente sul americano. Quando as balas de canhão acabavam ou se tornavam ineficazes pela proximidade do combate, os espadins eram empunhados e a luta corporal se desenrolava até que um batalhão finalmente subjugasse o outro. Do lado externo há mais postos de observação, um cemitério e triangulares pedras graníticas, da mesma espécie utilizada para a edificação da fortificação que, em seus primórdios, foi erguida a barro e palha. No fim, foi melhor termos conhecido esse pedaço do Uruguai, tão próximo ao Brasil, do que nos perdermos em meio aos frenéticos consumidores da fronteira seca na cidade de Chuí. Retornamos a ela com o único intuito de dormir, assolados pelos vorazes pernilongos de dupla nacionalidade.


Fuerte de San Miguel
   
Marco do extremo sul do Brasil
Dia 24. Hora de começar a voltar para casa. Um último papo com o senhor Alberto, um uruguaio que reside no lado brasileiro da fronteira e que afirma com todo o fôlego de seus pulmões de 80 anos (65 de fumante) que construir no Brasil é mais barato que no Uruguai, uma última passagem pelas avenidas Brasil (lado brasileiro da fronteira seca) e Uruguai (lado uruguaio) e adeus Chuí. Acessamos uma estreita vicinal, ao leste, que nos levou ao Farol da Barra do Chuí e ao Arroio Chuí. Aqui e em boa parte do território sul riograndense o termo arroio (do espanhol arroyo) é usado no lugar de rio, enaltecendo a cultura espanhola que, um dia, foi “dona” dessas paragens. O farol estava fechado à visitação, e então seguimos até uma ponte sobre o arroio na qual o marco Extremo Sul do Brasil se reafirmava. Aqui já não é mais Chuí, e sim Santa Vitória do Palmar, mesmo a sede desse município estando muito distante dali. Demos a volta no farol e atingimos a areia da Praia do Cassino, a maior do mundo em extensão com 240km. Uma caminhada leve sobre a areia e as estruturas de pedra que guiam a última curva do arroio Chuí em direção ao Oceano Atlântico foram tocadas, escaladas e fotografadas. Olhando para o sul, após o rio, o Uruguai e sua orla; a oeste, o Farol da Barra do Chuí, o mais moderno do país; a leste, o mar, imenso, desprovido de ilhas ou qualquer outra “mancha” no cenário; e ao norte, o maior desafio de minha vida, a Praia do Cassino. Digo isso porque querelei por algum tempo com Rodrigo sobre chegar a Rio Grande, na boca da Laguna dos Patos, subindo pela orla e não pelo asfalto, como fizéramos na vinda. Obviamente ele se mostrou inflexível, primeiro por estar inseguro pela queda que sofrera no terceiro dia e, segundo, por insistir que sua moto continuava “puxando” para a direita. Não argumentei muito e rumamos, pelo asfalto, para o Balneário do Hermenegildo, na mesma praia, mas 12km acima. Ali, por fim, me decidi. Iria, pela Praia do Cassino, até Rio Grande. Rodrigo subiria pelo asfalto e me encontraria no posto de gasolina do trevo de entrada da mesma cidade.

Arroio Chuí e Farol da Barra do Chuí


Praia do Cassino

Piru-piru

Farol Verga
Eu estava, agora, sozinho. Minha moto e eu avançávamos pela traiçoeira areia da orla do Rio Grande do Sul sob um calor de 43ºC. No afã que o denodo clama, olvidei-me de levar comigo o básico para uma aventura solitária por um ermo: água doce. Nos primeiros 40km, os mais árduos, pensei em desistir. As dunas, meu maior medo, seguravam minha moto a ponto de quase atolá-la por duas vezes. O panorama não era nada animador. Via apenas água, areia, tartarugas e leões-marinhos mortos, redes de pesca presas ao litoral e que se estendiam para dentro do mar, pirus-pirus, gaivotões e arredios bandos de maçaricos-pintados. A Praia do Cassino é extensa e tudo o mais, mas só. Não é bela, definitivamente. Não há ilhotas, costões rochosos, restinga. Nada. O primeiro ser humano me apareceu como uma miragem após 60km de cansativa pilotagem. Ao aproximar-me, a surpresa me foi grande. Era um outro motociclista, de São Paulo, solitário como eu e rumando para o sul, ao contrário de mim. Marcelo, como se apresentou, cedeu um gole de sua água e trocamos informações sobre as condições da “estrada” beira-mar. Despedimo-nos com um aperto de mãos e um “boa aventura” e continuamos em caminhos opostos. Por incrível que pareça, após esse encontro, a areia se tornou dura a ponto de sequer ser marcada pelos pneus. Abriu-se num “estradão de chão” no qual eu mantinha uma alta aceleração. Para completar, cruzei por três faróis de navegação que quebraram a monotonia da paisagem. O primeiro foi o do Albardão, enfeitado por losangos brancos e pretos e com 44m de altura, cercado por quatro casinhas de teto triangular. O segundo, menor e rústico, com apenas 11 metros, o Verga, composto por uma base sólida de concreto e uma torre de ferro. E o terceiro, o Sarita, vermelho e branco, estendendo-se 37 metros em direção ao firmamento. Chegando ao Balneário do Cassino, uma outra grata surpresa: o navio graneleiro argentino Altair, encalhado desde 1976 por conta de uma tempestade, parcialmente digerido pelas areias do Rio Grande do Sul. Foi depois dessa inusitada cena que voltei a ver seres humanos, excetuando-se Marcelo. E foi nesse ponto, também, que abandonei as areias da Praia do Cassino e me enveredei pela histórica Rio Grande, encontrando Rodrigo no posto combinado. Foram quatro horas de perrengue. Pelo asfalto não gastaria duas.

Farol do Albardão

Farol Sarita

Navio Altair, encalhado desde 1976
  
Cat. de São Pedro, em Rio Grande
Eu, descansado da maresia, e Rodrigo, cansado pela espera, adentramos a cidade de Rio Grande, uma das mais antigas do Estado, remontando ao ano de 1737. Foi também alvo de embates entre espanhóis e portugueses, que chegaram a alternar seu comando em algumas ocasiões até que, em 1777, pelo Tratado de Ildefonso, foi assegurado seu domínio aos lusitanos. Não pretendíamos pernoitar em seu solo histórico, mas a balsa que nos transportaria ao outro lado da imensa Laguna dos Patos encerrara suas atividades na véspera de Natal e, portanto, teríamos que esperar pelo outro dia. Restou-nos “assentar acampamento” e conhecer um pouco da cidade. Destacamos aqui os prédios históricos do Quartel General, de 1894, e a Catedral de São Pedro, construída entre 1755 e 1775, considerada a mais antiga do Estado. A menina dos meus olhos, e certamente a dos de Rodrigo também, apesar de todo o peso histórico da cidade de 200000 habitantes, foi a Laguna dos Patos. Caminhamos pelo porto dos pescadores admirando as águas da segunda maior laguna da América Latina, bailando docemente um corpo de mais de 10000km² ao sabor do vento. Os sempre multicoloridos barcos, atracados ao porto, acompanhavam o ritmo, subindo e descendo pela pequenas ondas formadas com a ajuda das marés e do vento. Foi assim que, na véspera de Natal, findamos nosso dia. De tão exaurido pela travessia da Praia do Cassino, adormeci às 21h. Abstive-me de ouvir os fogos que ribombavam no mundo lá fora, comemorando o pseudo nascimento de Cristo.

Rio Grande e a Laguna dos Patos

Navios petroleiros

São José do Norte

Molhes da Barra
No dia 25, às 8 da manhã, embicávamos as motos na plataforma de embarque para a balsa que nos levaria à outra margem da Laguna dos Patos. Foram pouco mais de 20 minutos de travessia, na qual a grande embarcação de barulhento motor à diesel esgueirou-se pelas boias sinalizadoras repletas de biguás. Dois navios Guaporé, da Petrobrás, enveredavam-se, em sincronia, para o interior do continente. Rio Grande ficou distante, bela como qualquer outra grande cidade vista de longe. Desembarcamos em São José do Norte, pacata, e nos enviesamos por uma esburacada estrada de calçamento até os chamados Molhes da Barra, braços de pedra idealizados para prevenir a formação de bancos de areia e proteger as embarcações que passam do Oceano Atlântico para as águas menos profundas da Laguna dos Patos. Um parte de São José do Norte, e o outro do extremo norte da Praia do Cassino, em Rio Grande, estendendo-se 3km mar adentro. É local de incessante trânsito de navios, bem sinalizado para esse fim. No caminho até ele, por exemplo, passamos pelo Farol da Barra, vestido como um “presidiário” de 31 metros de altura. Aliás, há de se ressaltar a receptividade dos moradores da Povoação da Barra, pertencente ao município de São José do Norte e onde estão um o braço norte dos molhes e o Farol da Barra. Em pleno dia 25, feriado natalino, sob um sol causticante de 40º, os pequenos comerciantes trabalhavam freneticamente como se fosse um dia qualquer. Em uma pequena padaria nos hidratamos e, conversando com o proprietário, descobrimos que “aqui, quando é frio, é frio; quando é calor, é calor”, uma tentativa do humilde homem de nos explicar que as estações são bem definidos nestas paragens. Vestir a jaqueta para prosseguir viagem era um martírio, principalmente quando, a nossa frente, a Rodovia do Inferno nos aguardava.

Laguna dos Patos

Farol da Barra
   
Vítima da BR101
A BR101 se principia, ou se encerra, em São José do Norte. A famosa rodovia, que beiradeia praticamente toda a costa brasileira, apesar de bem segmentada, neste pedaço do Rio Grande do Sul não provê muito o que se ver. Embora seja uma reta entre a Laguna dos Patos, a oeste, e o Oceano Atlântico, a leste, em raros ensejos chegamos a ver a água de ambos. Por muito tempo foi denominada a Rodovia do Inferno, época em que a pavimentação asfáltica inexistia e os atoleiros e bancos de areia “demonizavam” a progressão de veículos motorizados. Hoje está asfaltada, mas nem por isso a pilotagem por ela requer pouca cautela. O vento lateral, traiçoeiro, incômodo, impossibilita o avanço em linha reta, além logicamente de cansar em demasia o esternocleidomastoideo de qualquer motociclista, por mais resistente que seja. Some-se a ele o calor infernal, abrasando-nos com 52º de sensação térmica. Foi o dia mais quente dos últimos doze anos no Rio Grande do Sul. Animais mortos, notadamente quelônios, completam o cenário, digno de um círculo especial no Inferno fictício do poeta italiano Dante Alighieri. Analogia à parte, passamos pelos pequenos municípios de Bojuru, Tavares, Mostardas e Bacupari, de onde vimos as turbinas cata-vento do Parque Eólico de Palmares do Sul. É bom saber que, de alguma forma, o vento dessa região tem sido aproveitado. Infelizmente um vigilante não permitiu que fotografássemos no interior do parque. Prosseguindo, cruzamos Capivari do Sul e alcançamos a Lagoa dos Barros e o Parque Eólico de Osório. Nesse último uma boa aproximação das turbinas foi oportunizada. Já as vi, de longe, em muitas ocasiões, mas pela primeira vez estive sob essas enormes estruturas geradoras de energia limpa. Daí pra frente apenas permanecemos na 101, que acompanha, a partir de Osório, as grandes lagoas, como a Itapeva, que embelezam a região nordeste do Estado.

Parque Eólico de Palmares do Sul

Parque Eólico de Osório
   
Torres
Nosso plano era pernoitar, no dia 25, em Torres, última (ou primeira) cidade litorânea do Rio Grande do Sul. Contudo, a turística e garbosa cidade apinhava-se de gente. Fotografamos rapidamente sua orla a partir do Morro do Farol, com o único intuito de registrar nossa passagem por ali, e rumamos para Praia Grande, já no Estado de Santa Catarina. Apesar do nome, esse pequeno e aprazível município não se encontra no litoral, mas sim nos contrafortes da Serra Geral, que neste pedaço catarinense recebe o nome de Serra do Faxinal. É intitulada como a Cidade dos Cânions, visto que dela partem estradas de terra que sobem e descem a serra, revelando fissuras abertas pelo tempo nos grandes platôs rochosos compreendidos entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. No cerne da praça central, em frente à matriz, um chafariz e bonecos de neve artificial, em tamanho real, iluminados pelos pisca-piscas natalinos, foram testemunhas de nosso estado lastimável. De barbas hirsutas, desidratados e tisnados pelo sol forte do dia 25, nos recolhemos cedo. no outro dia, se o tempo instável do alto da serra nos permitisse, visitaríamos o Parque Nacional de Aparados da Serra, que guarda, em seus domínios, o Cânion do Itaimbezinho, uma obra-prima da natureza que eu até então vira somente em fotografias. Belas fotografias. Mal sabíamos que, de quebra, acabaríamos conhecendo outro. Proibido, é verdade, mas o que é uma aventura sem afrontas reais contra a lei?  

Praia Grande

Serra do Faxinal

Caminho proibido
No dia 26, cedo, subimos a sinuosa Serra do Faxinal por uma estrada de terra com pequenos trechos asfaltados. Pedras soltas dificultavam a ascensão, mas a visão de cada curva recompensava o perigo. Vimos o litoral, a cidade de Torres, o vale do rio do Boi, chapadões imponentes e uma mata atlântica razoavelmente preservada. No alto da serra, na divisa entre Estados, a vegetação se transforma em um cerrado campo limpo majestoso. Numa base do ICMBio desativada, meu mapa nos fez pular uma cerca, atravessar um riacho cristalino e chegar a um mirante surreal. Era o Cânion dos Índios Coroados, no qual uma cachoeira, gotejante de tão escassa água, caía no vale em dois grandes degraus. O que mais me entusiasmou foi a visualização das “raízes” da serra subindo em 45º e formando o platô onde estávamos. É como aquelas velhas árvores cujas raízes sobrepujam o nível da calçada, rachando-a numa tentativa louca de conseguir mais espaço. Mais tarde descobriríamos que esse ponto, na verdade, está interditado à visitação pública. É de propriedade de um cidadão que aparentemente não tem colaborado muito com os viajantes que vagam pelo alto da Geral em busca de belezas cênicas. Caso fôssemos pegos, arcaríamos com uma multa pesada por invasão de propriedade particular. Por sorte ninguém nos espreitava naquele momento. Reavemos nossas motos, ainda extasiados pela visão do “jardim proibido”, e finalizamos, impunes, o trajeto até a portaria do Parque Nacional de Aparados da Serra.


Cânion dos Índios Coroados
   
Cascata das Andorinhas
Dentro do parque, mais 5km de asfalto, além dos 20 que subíramos desde Praia Grande, e estacionamos as motos. Trilhamos a pé, posteriormente, a Trilha do Vértice, que por 800m nos apresentou ao Cânion do Itaimbezinho. É uma transcendental rachadura na Serra Geral com quase 6km de extensão. A Cascata das Andorinhas, formada pelas águas do rio Perdizes, despenca, em dois filetes, 700m vale adentro, sendo considerada a maior cachoeira do Brasil. Mais ao fundo escorre, pela parede rósea e esbranquiçada do paredão direito do cânion, a cascata Véu da Noiva. Em sua porção mais profunda, o vale, por onde corre o rio do Boi, tem 720m de desnível. É uma imagem que certamente as fotos não conseguem dimensionar. Como se não fosse suficientemente belo o contexto, araucárias gigantescas se verticalizam por toda a borda esquerda, sustentando-se num solo pedregoso onde samambaias amareladas sobrevivem bravamente. Na Trilha do Cotovelo, de 3km, acessamos a outra borda, onde visualizamos os meandros do vale. Há guias que, partindo de Praia Grande, incursionam com turistas no curso do rio do Boi, que neste dia e por algum tempo tem estado com pouco fluxo de água. São as mazelas da seca, a mesma que contribuiu com o céu azul e pouco nublado, perfeito para os nossos propósitos visuais. Já ouvi relatos de viajantes que subiram inúmeros dias seguidos ao cânion e não conseguiram vê-lo devido à neblina densa do alto da serra. Estávamos com sorte, ao contrário do segundo dia de viagem, em que infelizmente não foi possível vermos o Salto do Yucumã. Dizem que um dia é da caça e o outro do caçador. Pois bem, era o dia do caçador e, como que esperando nossa saída do parque, a chuva, ainda uma tímida garoa, se precipitou sobre nós. Víramos uma gralha azul, linda, e o Cânion do Itaimbezinho. Que chovesse canivetes pelo resto do caminho de volta para casa!



Cânion do Itaimbezinho
   
Rio Tijucas
Um último adeus a Serra do Faxinal, a Praia Grande e a Serra Geral. Hora de ir. Na BR101 novamente, em alguns trechos totalmente paralisada devido a obras, não fizemos mais do que engatinhar, conseguindo chegar, às 20:30h, na cidade de Tijucas, pouco além da capital Florianópolis. Pernoitamos pela última noite da incursão às margens do rio Tijucas já em seus últimos metros em direção ao abraço do mar. Logicamente o vimos melhor no dia 27, antes de partirmos em definitivo para o Estado de São Paulo. Chamou-nos a atenção também o prédio histórico do Cine Theatro, de 1925, parcialmente desabado. Mais um caso de descaso com a memória do nosso país. Na 101, deixamos Santa Catarina e entramos no Paraná, subindo até a capital Curitiba. Negligenciando a BR116, enveredamo-nos pelas incessantes curvas da Estrada do Ribeira, também conhecida como Rastro da Serpente. Passamos por Bocaiúva do Sul, Tunas do Paraná e Adrianópolis. Após a ponte sobre o rio Ribeira de Iguape, na divisa de Estados, entramos em São Paulo. Mais uma nota para um futuro lamento: a Serra de Paranapiacaba está sucumbindo perante as plantações de pinus. Algo há de ser feito nestes ermos para preservar o desenho de seus píncaros e o próprio Ribeira, o único grande rio que ainda corre livre, sem barragens, em direção ao mar. Entre os municípios de Ribeira e Apiaí a mata atlântica prevalece, exibindo morros e mais morros forrados de róseos manacás-da-serra. Guapiara e Capão Bonito ficaram para trás, bem como o Rastro da Serpente. Em Itapetininga, vestimos nossas capas pela última vez para enfrentar as chuvas de Cerquilho e Tietê. Piracicaba e seus imensos canaviais reencontrávamos depois de 9 dias de estrada. Santa Bárbara d'Oeste, que foi minha casa por 12 anos, também. Em Americana, um último aceno a Rodrigo, que ainda enfrentaria mais alguns quilômetros até Campinas. Eu estacionava em casa em total depleção de energia após uma jornada de 4600km pelo sul do Brasil. Eu voltava à hirta condição. Voltava a não me reconhecer.

Serra de Paranapiacaba
 
Sempre encerro minhas postagens com alguma divagação pessoal. Desta feita, no entanto, farei diferente. Nesse espaço exporei toda a minha revolta contra a situação das tartarugas-marinhas e leões-marinhos da Praia do Cassino. Hoje, dias após encerrar essa aventura e já traçando rotas para outra, me pego pensando na visão do “holocausto” do qual fui testemunha ocular. Não sei bem certo o que ocorre com esses indefesos seres, mas tudo indica que a pesca (ou sobrepesca?) está envolvida com a sua matança indiscriminada. Quando se contabiliza 27 mortos em 240km de praias é porque algo não está de acordo com o natural. Pesquisando, passei meus olhos em fotos de outros viajantes que se queixam sobre o mesmo tema. Alguns, inclusive, fotografaram animais com marcas de tiro de revólver. Acredito que se enrosquem nas redes deixadas à deriva no Atlântico, prejudicando de alguma forma a coleta dos pescados, e morram por asfixia ou porventura assassinados quando a rede é puxada para a orla. Entrei em contato com o Projeto TAMAR e com o IBAMA a respeito desse caso e espero que, em breve, receba respostas e possíveis meios de sanar essa afronta contra a vida marinha. Que a seguinte foto seja marcante, tanto a ponto de algo ser feito a respeito, e que o Estado do Rio Grande do Sul permaneça belo como o conheci, e preservado como os índios dizimados ou expulsos de suas terras nunca foram.

  
Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui 


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E abaixo, um blues para os ventos do Rio Grande do Sul e para o Cânion do Itaimbezinho.