sábado, 5 de setembro de 2015

Pirenópolis – de 22 a 28 de dezembro de 2014


Divisores de águas, epifanias, revoluções: classifiquem mudanças súbitas como desejarem, caros e raros leitores. Para um motociclista e andejo, como o cidadão que ora vos escreve, tais reviravoltas (outro termo similar) estão correlacionadas inapartadamente com o quanto se pode viajar dispondo de um mínimo de capital. Hoje, oito meses após concluída a incursão que se desvelará nos próximos parágrafos, tenho a infeliz noção de que foi a última em que ainda gozava de condições mínimas de se realizar com um planejamento econômico de curto prazo. O reajuste brutal dos valores de nossos combustíveis somado aos de outros produtos de consumo usual, aliados à defasagem do salário do trabalhador brasileiro, tornaram o ato de viajar com pouco dinheiro, que já era complicado, em algo extremamente houdiniano. Logicamente muitos vão argumentar que gastos podem ser cortados, como a própria moto, que pode ser trocada por caronas, mas em um país em que não há confiança entre compatriotas, e onde campings e albergues são tão caros quanto hotéis, não vejo muitas vantagens, sem contar que o tempo de viagem teria que ser estendido, algo praticamente inegociável na relação patrão-trabalhador.
Hidrelétrica de Volta Grande
Luana e eu planejávamos desde julho de 2014 rumar para a Chapada das Mesas, no Maranhão, e Ilha de Marajó, no Pará, mas infelizmente minhas obrigações profissionais tolheram esse ímpeto. Dispúnhamos de uma semana e nada mais. Pirenópolis, inicialmente no roteiro, passou, portanto, de coadjuvante a protagonista de uma viagem reduzida em dias, mas não menos intensa em paisagens e experiências. Conseguiríamos unir nossas duas maiores paixões, o cerrado e a História brasileira, em uma única aventura pelo centro goiano? Certamente que sim, e com isso em vista partimos de Americana cedo, no dia 22 de dezembro, pela fatídica rodovia Anhanguera, que por tediosos quilômetros nos acompanhou até pouco antes da divisa com Minas Gerais, momento em que, pendendo para o oeste, chegamos a Miguelópolis, cidade muito frequentada por pescadores. De fato, retomando o sentido norte, cruzamos a ponte sobre o rio Grande, registrando a Usina Hidrelétrica de Volta Grande, em cujo lago se aglomeram os peixes que afamam esses confins. Do outro lado da ponte já era Minas, nosso Estado preferido, e rapidamente assomamos em Conceição das Alagoas. Visando ganhar tempo, pegamos um atalho por terra até Campo Florido e, pouco depois, acessávamos a Transbrasiliana, quarta maior rodovia do país. Por ela adentramos Goiás, passando o rio Parnaíba, e assolados por chuvas rápidas calhamos na caótica Goiânia, capital do Estado, onde pernoitamos.
Matriz de N. Sra. do Rosário (1728)
Vinte e três de dezembro, antevéspera de Natal. Não que eu comemore tal data, mas é válido mencioná-la. Deixamos a grande Goiânia, famosa, dentre outros encômios por seu combustível caro, e seguimos para o nordeste pela BR-060. A monótona paisagem ganha outros ares ao passarmos pelos grandes lagos do ribeirão João Leite, represado. Essa carga extra de umidade durou poucos quilômetros, pois Anápolis, terceira maior cidade do Estado em número de habitantes, surgiu na sequência. Saímos de um de seus trevos pela BR-414, que entrecorta um trecho serrano acima dos 1000 metros de altitude. Em Planalmira, distrito de Abadiânia, acessamos a GO-338, já avistando ao longe os Pireneus goianos. Em pouco tempo, e debaixo de chuva, ganhávamos as ruas de calçamento em pedra de Pirenópolis, uma cidade tão histórica quanto as mais coloniais do Circuito do Ouro Mineiro (link). E como primeiro contato, o único avalizado pelas intempéries, registramos um patrimônio cuja data de construção corrobora a secularidade do local: a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, de 1728. Foi edificada próxima ao rio das Almas, de onde se extraía em abundância o ouro de aluvião. Foi esse metal que atraiu garimpeiros para esses rincões, muito embora saibamos que, paradoxalmente, o ouro não goza de propriedades magnéticas.



Casario colonial do Centro Histórico de Pirenópolis

Antiga cadeia
O casario colonial de todo o chamado Centro Histórico, nos arredores da Matriz, é pouco mais recente, com exemplares do fim do século XVIII e de toda a centúria de XIX, em numa época em que construir igrejas era a ignição de um novo povoado. Inicialmente chamado de Minas de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte, tanto prosperou que mais duas grandes igrejas foram construídas: a de Nosso Senhor do Bonfim e a de Nossa Senhora do Carmo, ambas datadas de 1750. Felizmente estão bem conservadas, sendo que a última transformou-se em museu de arte sacra. E como toda grande aglomeração gera criminalidade, em Meia Ponte não era diferente. A primeira cadeia do Estado de Goiás foi construída aqui. O prédio original, erigido no largo da Matriz em 1733, foi demolido em 1919, mas replicado à beira do rio das Almas, na chamada Ponte Velha, onde resiste até hoje sob os cuidados do IPHAN. O motivo da demolição foi inverso ao da sua construção: falta de presos. Na decadência da extração aurífera, em meados do século XIX, muita gente debandou, estagnando o povoado que, em 1890, mudou da designação Meia Ponte para Pirenópolis. Por estar posicionado geograficamente em um sertão bravio de cerrado, ficou por muito tempo isolada. Voltou a figurar entre as importantes cidades goianas somente a partir da década de 1960, quando construiu-se Brasília e se redescobriu as cidades circundantes ao planalto central.

Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, de 1750

Igreja de Nossa Senhora do Carmo, de 1750

Ponte velha sobre o rio das Almas e cadeia

Pirenópolis: natureza e História
Como dito no prólogo, Pirenópolis não é unicamente História, nem tampouco é somente lembrada como a cidade natal da dupla Zezé di Camargo e Luciano (não sou fã, mas é um fato digno de menção). É, ademais, um complexo de montes comparáveis aos Pireneus, cadeia de montanhas entre a Espanha e a França. Muitos espanhóis viveram em Meia Ponte, o que explicaria a designação da serra que circunda o centro urbano. Em 1890 a cidade se utilizou do radical para a outorga de seu novo nome, que se mantém até os dias de hoje. Retomando a linha paisagística, é uma incubadora de nascentes e pequenas cachoeiras, grande parte delas infelizmente situadas em propriedade particulares. Até aí, tudo bem, visto ser esse um fato corriqueiro no país. Contudo, o grande diferencial de Pirenópolis, e um diferencial negativo, são as altas taxas de visitação. À exemplo de Bonito, na Serra da Bodoquena (MS), tudo é centralizado em comerciantes que vendem os ingressos em seus comércios. Essa dinâmica encarece o processo, visto que há mais pessoas envolvidas na transação até a chegada do dinheiro na mão dos donos das propriedades. Ter que pagar R$20 por cabeça para desfrutar de uma cachoeira é algo inconcebível para um casal de motociclistas que viaja com um orçamento restrito.
Cachoeira das Andorinhas
Nos comércios supracitados víamos fotos e mais fotos das cachoeiras em banners com seus respectivos valores. Uma, entretanto, constava nas minhas anotações e não figurava em nenhum desses impressos. Imaginei que fosse de visitação aberta ou talvez de difícil acesso. Arriscamos. No lado leste da cidade, saímos pela estrada que sobe os Pireneus, mas pouco antes de terminar o asfalto acessamos uma outra, de terra, à direita, ainda para o leste, entrecortando um cerrado bravio e exigindo muita concentração por conta do quartzito que se esfarelam com o tempo e com o trânsito de automóveis. Menos de 1km depois de deixado o asfalto não havia mais condições de prosseguir sobre a moto. Rapidamente localizei uma trilha e seguimos por um campo aberto de capim-estrela. Quinhentos metros depois chegamos a um pequeno vale, o do córrego Barrigudo, e nele encontramos uma cachoeira que, se não impressiona pelo tamanho, impressiona pela forma peculiar. Desaba no interior de um cânion de cerca de 12 metros, caminha serena e tortuosamente e sofre uma outra queda de 3 metros até livrar-se da claustrofóbica situação e ganhar uma área aberta do vale, formando um poço esmeralda e mel de 10 metros de diâmetro. É de visitação gratuita e, por não constar nos impressos, como já dito, poucos turistas a conhecem. Luana e eu ficamos mais de uma hora no local e ninguém apareceu.

Poço da cachoeira das Andorinhas

Queda do cânion

Elaenia
Voltando para as motos, registramos algumas aves do gênero elaenia, de difícil identificação. Nesse instante começou o ingrato jogo de escolher as cachoeiras que conheceríamos a partir dali. Há várias mas, pelos meus cálculos financeiros, teríamos o privilégio de conhecer apenas mais duas. Optamos, então, por nos dirigirmos às mais próximas do centro urbano de Pirenópolis, a da Usina Velha e a da Fazenda Bonsucesso, também em função do tempo, uma vez que eram passadas 13h. Da cachoeira das Andorinhas à entrada da Usina Velha foram 4km, voltando para a cidade e entrando ao norte sentido Pedreira Pirenópolis. Lá obviamente havia um senhor cobrando R$20 por cabeça (também há vendedores itinerantes nos principais pontos turísticos), o que nos deu o direito de palmilhar os poucos metros de trilha rumo ao leito do ribeirão do Inferno. Subindo seu curso, sobre as pedras, constatamos se tratar de não apenas uma, mas várias quedas laterais ao ribeirão, provenientes de pequenos afluentes. No ribeirão propriamente dito há apenas uma cachoeira de 10 metros, seminatural semiartificial, pois nela foi erigida uma barragem de concreto para a produção de energia elétrica. Hoje não produz mais nada, a não ser uma harmonia entre águas e rochas digna de ser apreciada e registrada, mesmo que o preço a se pagar por isso seja alto.


Quedas da Usina Velha
Pica-pau-verde-barrado
A Fazenda Bonsucesso, elencada a próxima e derradeira da véspera de Natal, tem sua sede ao norte do centro urbano de Pirenópolis, nos contrafortes dos pireneus. Tivemos, portanto, que retornar à cidade, cruzá-la e pilotar por uma estrada de terra de apenas 4km, essa ladeada por pastagens que parecem há muito ter inibido o cerrado nativo. Não é problema para o pica-pau-verde-barrado ou o corocoró, aves comumente vistas na região. Na sede, pagamos R$15 por cabeça e seguimos a trilha que seguia para o norte. Inusitadamente palmilhamos, poucos passos depois, um trecho calçado e conservado da Estrada Colonial, um caminho aberto em 1736 a mando do rei de Portugal. Ligava, à época, Bahia, Goiás e Mato Grosso, possuindo aproximadamente 3 mil quilômetros de extensão. O ouro produzido em povoados desses Estados, como Meia Ponte (atual Pirenópolis), era escoado por essa via até Salvador, onde adornava obras barrocas. Com tanta História, a primeira das seis quedas da fazenda, a do Açude, quase passou despercebida, mas não nos olvidamos que é uma obra do ribeirão Soberbo bem mais primitiva que um caminho de pedras.

Corococó

Cachoeira do Açude

Calçamento da Estrada Colonial, de 1736

Pireneus
As outras cachoeiras da Fazenda Bonsucesso são também crias dos Pireneus, que podem ser vistos de algumas partes da trilha, e todas no curso do ribeirão Soberbo. São pequenas, para a nossa decepção, mas há de se destacar principalmente as duas derradeiras: a da Lagoa Azul e a do Bonsucesso. A primeira por seu amplo poço de águas esverdeadas; a segunda por seus 12 metros de altura e único feixe de fluxo de água, constante. Se o escopo do visitante é banhar-se, são cascatas perfeitas. Se a meta é cair de queixo mediante a imponência, não há porque procurar essas paragens. As outras quedas, por fim informativo, são a Landi, Palmito e Pedreira, além da Açude, mencionada no parágrafo anterior. No que se refere à avifauna, não é difícil registrar os inúmeros tucanos que saqueiam ninhos alheios na mata adjacente à trilha.

Cachoeira do Bonsucesso

Cachoeira da Lagoa Azul

Tucano

Pirenópolis vista dos Pireneus
Passado o Natal em Pirenópolis, levantamos acampamento e nos dispusemos ao óbvio: subir os Pireneus. Não há vias asfaltadas para esse fim, então encaramos a terra, o que nos deu um alento para os fiascos financeiros dos dias anteriores. Luana registrava aves, como o acauã, e eu observava a cidade do alto de mais de 1100m de altitude. Lá embaixo, a 700m, uma “maquete” que outrora nos dera guarida a um alto custo. No planalto, quando a altitude se estabilizou, nos aproximamos rapidamente dos limites do Parque Estadual dos Pireneus, uma área de cerrado protegida. No entanto, desviamos um pouco para o sul para conhecermos a Reserva do Abade, uma área de proteção particular anexa ao parque. O bom desse lugar é que os valores são diferenciados para cada trilha. Pagamos o valor proporcional ao caminho para a Cachoeira do Abade, que alcançamos vale abaixo 20 minutos depois. É, com seus meros 20m de queda, a maior de todos os Pireneus, e também a mais agradável aos olhos dentre todas as que visitamos, talvez pela imponência e por ser a única que cai livremente, sem ter suas águas abstraídas por rochas dispostas entre sua cabeceira e seu poço.

Acauã


Cachoeira do Abade

Parque Estadual dos Pireneus
Voltando para a principal estrada dos Pireneus, seguimos para o leste e adentramos de vez os domínios do Parque Estadual dos Pireneus, uma área preservada, pelo menos em teoria, de quase 2900 hectares. Nele está, por exemplo, o ponto culminante dos Pireneus, o alusivo Pico dos Pireneus, com 1385m de altitude. Para se chegar ao topo dele, atravessa-se, na sequencia da mesma estrada de terra que começou a 20km, no centro urbano de Pirenópolis, um cerrado vistoso, salpicado de rochas quartzíticas e areníticas. São todos empilhamentos, a priori, mas à medida em que nos embrenhávamos mais para o leste discerníamos o famoso Morro Cabeludo, uma estrutura rochosa larga e chamativa, rodeada por várias dezenas de buritis. É a última grande visão antes do início da subida, a pé, para o Pico dos Pireneus, o mais alto de um conjunto de três montes pontiagudos. Deixa-se a moto a seus pés, e vinte minutos depois, subindo vagarosamente devido à aguda inclinação, alcança-se uma capelinha dedicada a Santíssima Trindade. De lá é possível observar algumas cidades da região, como Cocalzinho de Goiás e Corumbá de Goiás. Fora isso, cerrado campo limpo, cerrado campo sujo e outras formas de cerrado. Nos limites do parque, bem visíveis, estão pastagens e terras destinadas à agricultura.

Morro Cabeludo

Vista do Pico dos Pireneus

Capela da Santíssima Trindade a 1385m de altitude

Salto do Corumbá
Descendo o Pico dos Pireneus e reavendo a moto, tocamos mais um tanto para o leste e deixamos em definitivo o pequeno Parque Estadual dos Pireneus. Foram poucas horas de aventuras por essas terras e escassos registros fotográficos, mas suficientes para manter viva minha paixão pelo cerrado brasileiro, bioma que entapeta mais de 30% de nosso país. Saímos em Cocalzinho de Goiás, encontramos o asfalto da BR-414 e rumamos para o sul para o último registro natural da região dos Pireneus: o Salto do Corumbá. Ele está ali, com seus 70 metros de portentosa queda, despejando incessantemente as águas do rio Corumbá, cria da Serra dos Pireneus (embora não seja considerada uma cachoeira pertencente a essa serra). Dali começaríamos a regressar, cortando o velho Goyáz do centro para o sul praticamente pelo mesmo caminho que viéramos. Naquele momento em que a cabeça do motociclista, dentro de seu capacete, se obriga a refletir, conclui que deixáramos muita coisa a ser vista para trás. Um misto de serenidade e decepção, que volta e meia se faz presente e se é característica perene de minha personalidade, me acompanhou até Itumbiara, às margens do rio Paranaíba, onde pernoitamos. Essa cidade de 100 mil habitantes, cantada em músicas sertanejas, foi nosso último contato com o Estado.

Itumbiara e o rio Paranaíba

Dolcinópolis
No dia 26, logo pela manhã, passamos a ponte para Minas Gerais, pela BR-153, e seguimos até Prata, cruzando a terra dos melhores palheiros do Brasil: Centralina. Esse caminho, na verdade, não era parte de minha rota. Luana, com um tempo maior de férias, passaria o resto do ano com sua família, em Aparecida d'Oeste, no velho oeste paulista, e fiz esse desvio para baldeá-la. Aproveitei o ensejo para conhecer a Usina Hidrelétrica de Água Vermelha, no curso do rio Grande, altura de Iturama, e a pequena Dolcinópolis, já no Estado de São Paulo, cidade natal de meu pai. Às 14h entrávamos na também minúscula Aparecida d'Oeste, lar da família paterna de Luana. Pernoitamos por lá e, no dia 27, logo cedo, demos uma boa volta pela região, sempre por estradas de terra, registrando importantes espécimes da avifauna como o polícia-inglesa-do-sul e o caboclinho. É uma área bem devastada por pastagens e canaviais, mas que ainda preserva o bucolismo da vida no campo com os pequenos sítios que despontam em intervalos irregulares desde Estrela d'Oeste até Ilha Solteira, às margens do rio Paraná, e da Usina Hidrelétrica de Três Irmãos, nos quilômetros finais do rio Tietê, até Pereira Barreto.

Pescadores à jusante da barragem da Hidrelétrica de Água Vermelha
 
Hidrelétrica de Três Irmãos, a última do rio Tietê
Polícia-inglesa-do-sul
Adeus, calmaria
No dia 27 despedi-me de Luana e de sua família e regressei para Americana. Sozinho enfrentei quase 700km de asfalto, um tédio sem limites mas necessário para o cumprimento da jornada. Assim são os motociclistas amantes da natureza: para visitar o natural, quase sempre camuflado em estradas de terra e vales de difícil acesso, é preciso encarar o artificial, um labirinto de rodovias rápidas e truncadas que nos permitem, embora muitas vezes não queiramos admitir, usufruir do escasso tempo de que muitas vezes dispomos. Em Americana, no fim da tarde, descarreguei minhas tralhas e concluí, naquele breve momento de introspecção que é rapidamente sobrepujado pelo cansaço e pelo sono oriundo do fim de uma viagem, que apesar de ter sido uma incursão que prometia mais, foi um importante demarcador do fim de um ano de boas viagens e de importantes mudanças na maneira como encarara a vida até então, inclusive no âmbito profissional. Os Pireneus, que deturparam os pensamentos de tanta gente que a eles se dirigiram à caça do eldorado, de uma forma ou de outra também exerceram sua inexorável influência sobre mim.
Flutuando entre a razão e a vontade, ainda vagamos, apesar do caótico estado em que se encontra nosso país. Talvez a partir de hoje eu tenha que andar mais sobre meus calcanhares e relegar minha motocicleta ao ócio, ou talvez eu tenha que observar por mais tempo para enxergar o garbo dos escassos lugares em que me será permitido estar. Não sei. O certo é que vemos muito sendo mudado em nós e pouco sendo mudado por nós. Marx, no fim das contas, estava certo em seu materialismo dialético. O problemas do meio nos transformam. O que ele não sabia, entretanto, é que esses problemas não têm sido fortes o suficiente para que tentemos mudá-lo. A preguiça é maior. São, infelizmente, motivos para mudarmos não uma sociedade toda, mas apenas nosso pequeno mundo, almejando manter apenas o que mais nos alegra. No caso do viajante, ele não precisa mudar o Brasil. Precisa mudar apenas seu modus operandi para continuar viajando. Se isso é bom ou ruim, o fim da vida de cada um dirá.


Mais fotos aqui.

E abaixo, um blues para Goiás, repostado de uma viagem mais antiga para esse belo Estado.


terça-feira, 31 de março de 2015

Bueno Brandão – 13 e 14 de setembro de 2014


Dando procedência ao “duo” Sul de Minas, Quintal de Minha Casa, será relatada nos próximos parágrafos uma curta viagem motociclística pelo território de uma cidade que, de tão íntima, não deveria ser exposta de forma pragmática, o que habitualmente ocorre nesse espaço. Entretanto, seria uma falta muito grave deixar de expor todas as belezas desse pequeno rincão mineiro, colado a São Paulo, omitindo informações importantes para outros viajantes que porventura passarem por aquelas bandas. Segue abaixo, então, o máximo de cachoeiras e paisagens que consegui registrar em dois dias incompletos, maravilhas que nem mesmo a estiagem prolongada de 2014-2015 é capaz de ressequir.
Sítio do Sossego
Partimos de Americana, Rodrigo Gil, Luana Romero e eu na manhã do dia 13 de setembro. Foram meros 170km de rodovias asfaltadas, passando por Engenheiro Coelho, Mogi-Mirim e Lindóia. Chegando em Socorro, a última cidade do Estado de São Paulo em nossa rota, rumamos sentido nordeste, acompanhando o sinuoso traçado da Serra do Bom Jardim e dos cafezais plantados em suas encostas. Quinze quilômetros após o centro de Socorro adentrávamos o querido Estado de Minas Gerais, já em território bueno-brandense. Sítios despontavam aqui e acolá, muitos camuflados nos contornos da serra e outros “ombro a ombro” com o asfalto da vicinal Bueno Brandão-Socorro, que há pouco sequer gozava de pavimentação. Atravessando a porteira escancarada de um desses, o do “sêo” Brás, um indivíduo bem conhecido localmente, montamos acampamento, livrando-nos do excesso de bagagem de modo que pudéssemos perambular livremente pelas estradas rurais da cidade que, no que se refere ao seu centro urbano, ainda não víramos. Por ter registrado em outras oportunidades o Sítio do Sossego, ou Camping do Sossego, não perdemos tempo algum em fotografar as belezas desse pedaço de chão distante cerca de 5km da cidade, acessível a partir da vicinal supramencionada. Meros 300m de estrada de chão batida e a casinha alva e azul, de feições coloniais, entornada por uma pequena represa, um lago e uma pastagem pontilhada por araucárias, onde poucos bovinos ruminam, se distingue no sopé da serra, convidando a uma parada de poucos minutos ou de alguns dias, conforme a necessidade do andejo.
Cachoeira do Machado II
A primeira cachoeira em nossa rota foi um revés. A do Machado II, acessível por uma estrada rural levemente aclivada de meros 600m a 7km a sudoeste do sítio do “sêo” Brás, voltando para Socorro pela mesma vicinal pela qual viéramos, jazia morbidamente seca. Por estar em uma propriedade privada, é cobrada uma taxa por cabeça, mas o proprietário, devido ao estado da cachoeira, permitiu nosso acesso sem a cobrança. Uma curta trilha por uma roça, mangueiras e goiabeiras e um paredão granítico se apresentou. Uma “baba” escorria timidamente por 70 metros até o fundo do vale. É (ou seria) a maior queda d'água de Bueno Brandão, e também foi nossa copiosa decepção. A escassez de chuvas aqui, nas nascentes da Mantiqueira e de outras pequenas serras do sul mineiro, é um dos profícuos causadores da baixa dos reservatórios do nordeste paulista, visto que praticamente todos os rios e ribeirões nascidos nesses píncaros correm para o Estado de São Paulo. Se não chove aqui, falta água lá, e belezas naturais como a cachoeira do Machado II deixam de entusiasmar seus admiradores. O desprazer foi tanto que a Machado I, no curso do mesmo ribeirão mas no lado oeste da vicinal, propositadamente deixamos de conhecer. Preferimos, na ocasião, rumar para o leste, subindo de vez a Serra da Boa vista até outra famosa cachoeira, a dos Félix, com 40 metros de queda e um volume ligeiramente maior que a anterior, mas infelizmente “desfigurada” pela existência de uma pousada nas cercanias de sua cabeceira.


Cachoeira dos Félix

Cachoeira do Davi
Contumazes na caça de cachoeiras, continuamos para o leste por mais 1km, enviesando-nos, em seguida, para o sudeste. Casebres de sítios abandonados, fato corriqueiro no sul mineiro, despontavam em intervalos irregulares até a chegada em definitivo à cachoeira do Davi, distante apenas 4km da dos Félix. Cai de 10m por um cânion estreito de blocos graníticos. A água, afunilada, corre por algumas dezenas de centímetros e se abre em um poço de 5 metros de diâmetro. Logo após tem seu caminho natural retraído novamente até escorrer irreversivelmente em uma segunda queda, menos portentosa quando comparada à primeira. É um espetáculo gratuito, à beira da estrada e hidricamente volumoso, antagônico às cachoeiras previamente visitadas, o que por ora nos exortou a seguir tocando para o sudeste, onde os efeitos da estiagem pareciam menos evidentes. Ledo engano. Na cachoeira do Cascavel, um quilômetro depois, a falta d'água voltou a ser a regra, tornando a do Davi a exceção. Foi triste verificar mais um paredão natural, esse com 30 metros, sofria sua secura sazonal. Por outro lado, é envolto por uma densa mata atlântica, o que amenizou e muito o calor fustigante que enfrentamos ao atravessar a pastagem no princípio da trilha, à beira da estrada, onde deixamos as motos 800m atrás.

Cachoeira do Davi e seu estreito cânion



Cachoeira do Cascavel

Cachoeira dos Luís
Eram passadas 16h e, portanto, ainda havia tempo hábil para conhecermos pelo menos mais uma cachoeira. Acontece que a mais próxima dali estava a 12km para o sudeste. As estradas, com em todas as zonas rurais de nosso Brasil, eram incertas. Felizmente, enquanto avançávamos, quilômetro a quilômetro testemunhávamos o zelo com o qual são mantidas as vias de chão de Bueno Brandão, o que nos possibilitou passar muito velozmente pelo Bairro da Cachoeirinha e chegar à propriedade privada, onde também funciona um restaurante e um criadouro de avestruzes, em que está localizada a cachoeira dos Luís. Dentre todas do município, é a mais curiosa. O ribeirão Cachoeirinha se biparte em sua cabeceira, formando duas cachoeiras distintas, diferentes em largura e volume d'água. No horário em questão, uma estava totalmente abrigada da luz solar; a outra luzia com afinco. São como gêmeos vivitelinos, concebidos juntos, mas dessemelhantes. Uma ilhota repleta de arbustos faz literalmente a vez de divisor de águas por cerca de 30m, altura oficial da queda. Lembro-me de ter visto diversas fotos desse atrativo durante a confecção da rota, e em todas elas a água descia com vigor por esses paredões com 45º de inclinação. No momento, tínhamos escassez. Por ser a última visão de um sábado quente e seco, bastou. Voltamos para o acampamento e, sob as araucárias do Sítio do Sossego, repousamos para retomar a empreitada no domingo.

Duas quedas distintas do mesmo ribeirão

Cair da noite em Bueno Brandão

Curral em Boa Vista dos Barbosas
Muito pouco se conhece na região norte de Bueno Brandão. Sabíamos, contudo, a localização de uma de suas cachoeiras. Por isso reservamos a primeira parte da manhã para conhecê-la. Erguemos acampamento, despedimo-nos de “sêo” Brás, passamos rapidamente pelas poucas construções da área urbana do município e aceleramos pela MG-295, para o norte, sentido Inconfidentes. Após 5km, a partir da Matriz, deixamos o asfalto e aceleramos por uma estrada de terra pedregosa sentido nordeste. Quatro quilômetros depois alcançávamos o bairro rural Boa Vista dos Barbosas. Uma moradora nos deu as coordenadas que faltavam ao meu mapa e, adentrando mais um dos pastos íngremes de Bueno Brandão por um curral, encontramos a tímida cachoeira homônima ao bairro no fundo de um vale, guarnecida por uma estreita camada de mata de galeria com exemplares de grandes bromélias. Seria redundante mencionar que pelos 11 metros da queda principal, bem como pelas outras quedas menores ao longo do riacho, pouca água vertia. Todo bom motociclista sabe que a estiagem é esperada entre maio e setembro, mas nem os mais pessimistas criam ser essa a pior das últimas décadas, a que desencadearia, em uníssono com a má gestão do governo de São Paulo, a maior crise hídrica da história. Queria estar eu sendo assolado por chuvas pesadas da “estiagem” do ano passado, quando estive em Iguape e Cananéia, no litoral sul de São Paulo (link), para poder registrar o líquido da vida descendo com vigor pelos acidentes geográficos do sul mineiro.



Cachoeira Boa Vista dos Barbosas

Cachoeira do Mergulho
Menos lamentações, mais cachoeiras. Voltando para o centro urbano de Bueno Brandão, localizamos uma saída ao sul, de chão novamente, e pendendo para o sudeste, numa região altamente desmatada pela criação de gado, calhamos em uma choupana abandonada 10km a partir da Matriz, à beira da estrada, de onde aparentemente se iniciava uma trilha para o fundo de um vale de mata de galeria. Segundo meu mapa, tratava-se da cachoeira do Mergulho. Descendo essa trilha incrivelmente bem aberta, topamos com o atrativo natural, uma queda de 10 metros com boa quantidade de água, um grande poço natural e muita sombra. É, por conseguinte, talvez a mais convidativa para um banho e, ademais, o melhor ponto a ser visitado num raio de dois quilômetros. Digo isso porque ao norte da cachoeira há um cânion, o do Esmeril, que em nossos devaneios parecia promissor. Porém, ao chegarmos lá constatamos ser uma pedreira desativada. A estradinha de pedras que nos conduziu até ela, precária e repleta de engodos, não valeram o sacrifício. Como sempre digo, para desgostar é preciso primeiramente conhecer. Conhecimento gera convicção. Idealismo gera divagação.

Cachoeira do Mergulho

"Cânion" do Esmeril

Pedreira desativada

Cachoeira Santa Rita
Na reta final de nossa aventura pela zona rural de Bueno Brandão, rumamos para o sul e passamos pela derradeira cachoeira da rota, distante 10km do cânion do Esmeril: a do Vale dos Avestruzes. É, indubitavelmente, a mais turística dentre todas. Muita gente a conhece pelo nome Santa Rita. O que estão intentando, na verdade, é modificar esse nome para o da fazenda que a detém. Não vimos, mas certamente há uma criação de avestruzes em seus domínios. A cachoeira dos Luís, registrada no primeiro dia e bem próxima dali, tem seu criadouro, o que deve ter dado origem ao nome do vale. O que sabíamos, no momento, é que a cachoeira, larga e linda, por sinal, despejava muita água do alto de seus 40m. Como nada é perfeito, para aumentarem o diâmetro do poço, permitindo que turistas tenham mais área para se banharem, foi feita uma barricada de sacaria, uma barragem artificial que represa toda essa água. Com certeza é uma obra levada a cabo com os R$3 por cabeça cobrados na sede da fazenda.
Encerrava-se ali nossa estadia em Bueno Brandão. Deixamos muitas cachoeiras para trás, mas não vejo tal fato pelo lado negativo. Deixamos, sim, muitos motivos para voltar, talvez em um período mais favorável às águas. Eu diria que, no geral, fomos capazes de registrar as características mais marcantes desse pequeno e pouco desbravado município do sul mineiro, mais conhecido pelo seu carnaval que por suas riquezas naturais e rurais. E como era de se esperar, ainda sofremos um bocado para dele sair. Do Vale dos Avestruzes até Munhoz, cidade onde reencontraríamos o asfalto após um dia de pura terra e poeira, foram quase 30km em um sobe e desce frenético pelas pequenas serras circundantes à da Bela Vista. De lá para Americana foram mais 170km, 140 para Rodrigo, que ficou por Campinas. Rodamos, ao todo, 470km em dois dias, muitos desses por estradas pelas quais realmente vale a pena rodar, estradas de chão do quintal de nossas casas: o sul mineiro.


Mais fotos aqui.

Abaixo, a reedição de um blues composto para minha primeira viagem de moto para Minas Gerais, em 2011.