domingo, 25 de janeiro de 2015

Cambuí – 26 e 27 de agosto de 2014


Para quão longe é preciso, de fato, ir quando o objetivo pretendido é contagiar-se bobamente pela nostalgia? No meu caso, em particular, para não muito. Resido defronte um vale da caótica e extremamente urbanizada Americana, onde corriqueiramente se vê o gado pastando, gralhas errando sobre os galhos das muitas árvores frutíferas e almas-de-gato passando despercebida pela grande maioria de meus vizinhos, mas não por mim. Se augurar aventuras, posso descer esse vale, território do antigo Sítio Anhanguera, caminhar pelo leito rochoso de estreitos córregos e subir até suas nascentes, banhando-me em pequenas cascatas nesse ínterim. Com uma dose extra de pernas posso testemunhar a junção de dois importantes rios brasileiros, o Jaguari e o Atibaia, que formam irreversivelmente o Piracicaba, esse tão aclamado pela poesia e pela música. Eu, contudo, sempre apreciei a liberdade de ir e vir, e muito embora o preço do deslocamento sobre duas rodas (ou quatro, ou seis, ou quantas forem) pelo Brasil tenha se elevado irrefreavelmente, ainda insisto em expandir o “quintal” de minha casa. O sul de Minas Gerais, para mim tão próximo, é o que considero o limite desse quintal, um local tão rápido de se alcançar quanto o surgimento de uma ideia despretensiosa. Enfim, como diria um bom amigo, podes cair em qualquer lugar desse sul mineiro que estarás bem caído.
Cambuí
Cambuí é uma dessas cidades “aqui do lado” que eu ainda desconhecia. Não é turisticamente badalada, economicamente rica ou um centro de referência gastronômica, atributos que muitos procuram quando criam o ensejo de viajar, o que não é o meu caso. Muita gente a entrecorta pela Fernão Dias, a caminho de Belo Horizonte, e sequer nota sua existência. Confesso que já fui um desses. O que me dispôs a remediar esse lapso foi a vontade que sempre me tomou de subir a Pedra de São Domingos, a parte mais alta da Serra da Mantiqueira alcançável por veículos motorizados. Embora não esteja nesse município, Cambuí é um ponto de partida para sua exploração, além de contar com uma vasta área rural, cortada por inúmeras estradas de chão e paisagens rurais e naturais que culminam no local mencionado. Luana e eu, com isso em vista, partimos de Americana ainda cedo, no sábado, enfrentando a Anhanguera, a Dom Pedro (e seus pedágios absurdos) e a Fernão Dias (e seus nem um pouco absurdos pedágios, embora eu considere todo pedágio abusivo). Adentrando Minas Gerais, completamos os quase 190km de asfalto entre a terra sem lei chamada Americana e Cambuí e logo subimos à rampa de parapente, ou Morro do Cruzeiro, ao sul do centro urbano para obter uma ampla visão da região. Foram os primeiros e únicos registros de casas citadinas, prédios e ruas asfaltadas da cidade de 27 mil habitantes. Já víamos, a leste, a Pedra de São Domingos, guardiã da região. De onde estávamos até ela seriam muitos quilômetros desbravados por terra.

Morro do Cruzeiro

Pedra de São Domingos (ponto mais alto)

Zona rural de Cambuí
Descendo o Morro do Cruzeiro, localizamos a sudeste do centro urbano de Cambuí a Estrada Velha para Córrego do Bom Jesus, cidade vizinha. Permanecemos na mesma por menos de 500m. Após um lago artificial, descemos para o sul por uma estrada de terra que dá acesso a chácaras e sítios locais. Não há quase vestígios de mata atlântica, vegetação nativa antes da ocupação exploratória, e ao mesmo tempo não há grandes plantações. O que mais se vê é pasto. Os pequenos córregos estão totalmente desprovidos de sua mata ciliar. Dez quilômetros depois, passando pelo vale do Córrego São Domingos e pelo bairro rural Meia-légua, chegávamos ao fim da estrada, deparando-nos com um simples curral. Ali deixamos a moto e descemos o pouco íngreme vale para calhar no córrego Meia-légua, um dos muitos cursos d'água com cabeceira no alto da Serra de São Domingos, subdenominação da Mantiqueira por essas bandas. Pela trilha beiradeante o córrego augurávamos encontrar uma cachoeira, mas por mais que a palmilhássemos apenas pequenas quedas surgiam. Saberíamos, mais tarde, que a cachoeira Meia-légua, que procurávamos, sumira há alguns anos. Fortes tempestades mudaram a disposição das rochas arredondadas do leito do córrego, transformando-a inconvertivelmente. Não foi, por esse motivo, uma perda de tempo, já que a estrada, com edificações típicas das áreas rurais mineiras e paulistas, começou a nos aclimatar ao bucolismo do campo.

"Cachoeira" da Meia-légua

Na estrada para o bairro rural Meia-légua

Cachoeira do Nenê
Voltamos pela mesma estrada pela qual viéramos. Contudo, na altura do bairro rural São Domingos, acessamos uma outra estrada de chão que seguia sentido nordeste. Daí foram mais 4km até o centro urbano de Córrego do Bom Jesus, cidadezinha sete vezes menos povoada que Cambuí. São apenas 4 mil habitantes espalhados por pouco mais de 120 km² de território. Afastando-nos dela para o sudeste, rumo a Pedra de São Domingos, aproveitamos para conhecer a cachoeira do Nenê, distante 2km do centro. Há um bar no local e é cobrada uma taxa de visitação, mas como descia pouca água pelas três quedas do córrego da Lavrinha, o proprietário não quis cobrar valor algum. Além disso, deu-nos profícuas informações concernentes às estradas de chão que culminam na Pedra de São Domingos. Segundo ele, os últimos metros do aclive seriam pavimentados. E assim fomos, confiantes, serpenteando em uma ascendência brutal para o alto da serra de São Domingos. Para se ter uma noção, Córrego do Bom Jesus estava na centena dos 900m de altitude. No bairro rural de Tabuão, equidistante desses dois pontos, esse número já se aproximava dos 1400. Foi a partir daí que o negócio complicou. Alternando terra e cimento, a estrada foi se agudando de uma tal maneira que o pneu dianteiro da moto chegava a perder contato com o solo. Luana e eu nos inclinávamos em direção ao tanque da moto numa tentativa de baixar o centro de gravidade e não empinarmos. Por fim, alcançamos 2010m de altitude, onde havia uma espécie de estacionamento nos arredores de uma capelinha. Dali pra cima, ao píncaro da pedra, somente a pé.

Pedra de São Domingos: metros finais de aclive

Vista da Pedra de São Domingos
Alguns íngremes degraus de cimento, torres de transmissão e uma vista que não chega a embasbacar: esse é o cenário no alto da Pedra de São Domingos que, diga-se de passagem, pertence ao município de Córrego do Bom Jesus, e não a Cambuí ou Gonçalves, como alguns alegam. O altímetro marcava pouco mais de 2040m de altitude nos beirais graníticos, mas em alguns pontos, inacessíveis devido aos muros que envolvem as antenas, esse número pode ser maior. A altitude oficial é 2050m. É o ponto mais alto da Serra da Mantiqueira alcançável por veículos motorizados e segundo a REMITEL, empresa proprietária da pedra desde 1968, é o vigésimo quarto ponto de maior altitude do Brasil. Como todo cume, oferece uma visão praticamente em 360º da região circundante, mas o que se vê não é tão apetecível: pastagens e capões de mata atlântica. Olhando para o leste, vê-se uma outra crista da Mantiqueira, que divide naturalmente os Estados de Minas Gerais e São Paulo, chamada pelos mapas do IBGE de Serra da Balança, com altitudes na centena dos 1700m; para todas as outras direções, o intrincado relevo do sul mineiro, bem desmatado por sinal. Enfim, é um recôndito natural, modificado pelo homem, a partir do qual se vislumbra a guerra incessante entre a pecuária e vegetação nativa, Atlântica, que vem, infelizmente, sempre perdendo batalhas.



Sul mineiro visto de 2050 metros de altitude

Barragem no rio do Peixe
Perto das 18h descemos a Pedra de São Domingos em busca das menores altitudes de Cambuí, onde pernoitaríamos. A descida é cauta a exemplo da subida. Como a noite caía, visualizamos alguns jacus e o sol se escondendo sob o horizonte do campo mineiro. E no outro dia, 27 de agosto, esse sol retornou, logo cedo nos exortando a desbravar a parte oeste do território cambuiense. Acessamos, ao norte do centro urbano, a MG-295, sentido Senador Amaral, também acessível pela Fernão Dias. Permanecemos nesta por apenas 3km, momento em que subimos para o norte por uma estrada rural. Essa, em uma ascendente de altitude, nos levou a Serra da Usina, onde rurícolas, que faziam o transporte de gado de uma pastagem para outra, nos informaram sobre uma cachoeira que já constava em nosso planejamento, mas cuja localização era desconhecida. Deixamos a moto à beira da estrada, onde o aclive começa a se intensificar, caminhamos mato adentro e localizamos o rio do Peixe. A cachoeira, que encontramos contudo, consistia em uma barragem de uma antiga usina hidrelétrica desativada. Não contente, seguimos o curso do rio e, poucos metros abaixo, topamos com mais duas. Ambas formam a cachoeira do Andorinhão. Para se chegar à derradeira e mais bela das quedas, há de se caminhar sobre os aquedutos de escoamento da antiga usina. Embora tímida, é uma obra natural de 12 metros de queda bem guarnecida pelo vale, onde andorinhas nidificam e, consequentemente, a nomeiam. O mais interessante de todo esse meio ambiente, no entanto, não foram as quedas em si, mas a aparição de uma família de sauás nas adjacências, macacos de médio porte que vivem em numerosos bandos praticamente o tempo todo sobre as árvores.

Cachoeira do Andorinhão: primeira queda

Cachoeira do Andorinhão: segunda queda

Sauá

"Cachoeira" da Usina
Regressando à moto, continuamos acompanhando a estrada de chão para o alto da Serra da Usina. Nos últimos metros de subida a guinada é aguda, motivo pelo qual alguns pontos apresentam calçamento. No fim do aclive, ao invés de seguirmos pela mesma via, o que culminaria na Serra dos Lopes, pendemos para o norte visando localizar mais duas cachoeiras. A primeira, a da Usina, encontramos menos de 1km depois de adentrarmos essa nova estrada de chão. É, na verdade, uma outra usina hidrelétrica desativada no mesmo rio do Peixe, e a barragem, inutilizada, forma uma pequena cascata. Mesmo estando em um sítio particular, não é cobrada a entrada. O proprietário prefere lucrar com a venda de comes e bebes em uma vendinha no começo da curta trilha aberta para o atrativo. Sorte a nossa, que rapidamente registramos o local, que é bom para um banho, mas não para maravilhar os olhos, e partimos para a outra cachoeira do planejamento. Teimando na mesma estrada, fomos para o extremo norte da Serra da Usina, onde ela começa a se confundir com a Serra dos Fonsecas, e descemos abruptamente o vale do Ribeirão dos Três Irmãos. Praticamente no fim da descida havia uma placa indicando ser essa uma área protegida. A partir dela se ramifica uma trilha, curta, entre mata atlântica. Cruzando o leito rochoso do ribeirão, chega-se a um campo aberto, uma pastagem, e daí sobe-se contra a corrente até o encontro com a Cachoeira dos Fonsecas, pequena como todas as outras de Cambuí, mas incrivelmente forte mesmo nesses períodos de estiagem.

Cachoeira da Usina

Cachoeira dos Fonsecas

Vista da Pedra da Onça
Nossa missão, no que tange os atrativos naturais de Cambuí, se encerrava ali. Contudo, um outro mirante natural se dispunha entre a cachoeira dos Fonsecas e Munhoz, cidade pela qual compulsoriamente teríamos que passar na volta para Americana. Entrecortando sítios locais, abrindo e fechando porteiras, entramos em uma área incerta entre os municípios de Senador Amaral e Bom Repouso, onde limites territoriais são tão desconhecidos quanto o mistério secular do Triângulo das Bermudas ou a eterna discussão filosófica se existe ou não a divisão entre corpo e alma. Só sabíamos que ali existia uma pedra, a da Onça, presença marcante na Serra dos Lopes com mais de 1300m de altitude. Sobre ela vimos pela última vez a cidade de Cambuí e a Pedra de São Domingos, ao longe. Em suas adjacências é comum observar o gavião-de-rabo-branco. Registramos dois: um jovem e outro adulto, de plumagens divergentes. Em uma das paradas para essas fotos, percebi que o pneu traseiro murchava aos poucos, o que me obrigou a utilizar o milagroso spray que veda furos e calibra a câmara de ar ao mesmo tempo. As cascalhadas estradas do sul mineiro, salpicadas de buracos de tamanhos para todos os gostos, não conseguiu nos frear por muito tempo. Conseguimos chegar em Munhoz, trinta e três quilômetros de terra depois, no fim de um domingo extremamente quente, mas oportunizador de novos caminhos, cenários e histórias.
De Munhoz a Americana foram 160km de asfalto, passando por Toledo, última cidade mineira da rota, e entrando em São Paulo por Pedra Bela. O spray aguentou até Americana, onde o pneu, às 21h, desceu de vez. Encontrar um borracheiro disposto a trocar uma câmara de pneu de moto nesse horário, em um domingo, é equiparável a encontrar caminhos rurais nas intrincadas serras mineiras. Isso me custou o resto do domingo e os primeiros minutos da segunda. Todavia, esse revés não é digno de ser mencionado em um relato como esse, em que o “quintal de minha casa” foi mais uma vez desbravado. Como os meninos de minha época, que amarravam panos ou a própria camiseta no próprio pescoço para simular a capa de um super-herói, nós, motociclistas, amarramos nosso ímpeto às nossas motocicletas e nos embrenhamos pelo mato, sem medo ou preconceito algum. A diferença é que, hoje, essa área de mato a ser desbravada é bem maior que a da nossa infância, mesmo que continuem destruindo-a.


Mais fotos aqui.

E abaixo, um blues composto especialmente para Cambuí.