terça-feira, 18 de março de 2014

Jalapão – de 22 de dezembro de 2013 a 03 de janeiro de 2014


É matéria infrutífera tentar mensurar o quanto grandes viagens modificam nossa existência. Em sua finita perdurância nos apresentam a desafios, que por sua vez nos defrontam com o medo, a angústia, o receio de fracassar e outros tantos sentimentos oriundos da incerteza e da desolação. O que sucede esses momentos de turbulência é o que dirá se a faina foi ou não meritória de tamanho esforço canalizado para uma determinada tomada de atitude. Acredito que essa seja a avassaladora diferença entre quem viaja sobre uma motocicleta e o dito turista: enquanto o primeiro avança progressivamente, enfrentando dificuldades e “metabolizando” tudo ao seu redor, o segundo se debruça no comodismo de se locomover somente até os pontos que lhe convém, esses preestabelecidos por alguém que digeriu previamente o local por ele, geralmente uma empresa que comercializa pacotes turísticos. Não que eu esteja intentando desmerecer o trabalho de profissionais dessa área, mas é que no meu modo de ver as coisas a liberdade é integrante fundamental na realização de uma viagem de grande porte. Não faz sentido vencer longas distâncias e estar sujeito a pré-conceitos e não ao libertário poder de você mesmo criar seus próprios conceitos. A incursão que será relatada a seguir é, portanto, mais do que um simples aglomerado de fotos e palavras de um turista, mas sim uma prova de que não se desbrava o Jalapão somente visitando seus pontos mais turísticos, e sim se atentando a sua fauna e flora exuberantes, serras imponentes, estradas precárias e vida difícil de um povo que, de tão simples, pode parecer a personificação inequívoca da timidez.
Rumo ao Jalapão
Rumar ao Jalapão requer muito preparo, tempo e planejamento, motivos pelos quais vinha contendo há meses meu ímpeto em conhecê-lo. Luana, minha sempre entusiasmada companheira, iria comigo. Porém, em um local pelo qual rodaríamos mais de 500km por estradas de chão, pedra e areia judiadas pelas mazelas do cerrado, eu carecia de uma outra companhia, de forma que um eventual problema mecânico na moto não me deixasse à mercê do acaso. Como não encontramos esse outro motociclista interessado em desbravar o vulgo “deserto brasileiro”, acostumamo-nos à ideia de irmos sós, correndo o risco supracitado. Felizmente, dois dias antes de partirmos o companheiro de outras aventuras Thiago Lucas se prontificou, dando-me um pouco mais de tranquilidade na concretização de meus intentos. Com a rota devidamente traçada, e que não necessariamente abrangia somente o Jalapão, no Tocantins, mas também um bom pedaço de Goiás e da Bahia, partiríamos para uma jornada por cinco Estados e um Distrito Federal, passando por três regiões distintas do Brasil (sudeste, centro-oeste e norte).
Rio Paranaíba
Deixamos Americana no dia 22 de dezembro logo pela manhã. O caminho que enfrentaríamos até Brasília, nosso primeiro destino, seria o mesmo feito na viagem para a Chapada dos Veadeiros, ainda no começo do ano (link), e portanto não vou pormenorizá-lo. Mencionarei apenas a passagem pelo rio Grande, na divisa entre São Paulo e Minas Gerais, uma breve cruzada pelo Triângulo Mineiro e o esverdeado rio Paranaíba, que além de ser um natural divisor entre Minas Gerais e Goiás, demarca nossa passagem do sudeste para o centro-oeste. Sempre sentido norte fomos avançando pela BR-050 até o município de Cristalina, onde acessamos a BR-040. Para o leitor não achar que esse percurso foi tão rápido quanto minhas palavras, devo dizer que chegamos a Valparaíso de Goiás somente às 18h, sob forte chuva e enfrentando congestionamentos imensos na sempre conturbada rodovia de acesso à capital brasileira. Ali pernoitamos, após 850km rodados, chegando a Brasília apenas no dia seguinte, 23, por volta do meio-dia, já que a moto de Thiago apresentou vazamentos no retentor de bengala, obrigando-nos a uma parada no mecânico para a troca do mesmo. O Jalapão ainda estava longe, o tempo sisudo não cooperava e nossas motocicletas já davam indícios de que a empreitada não seria fácil. Por fim, adentramos a capital federativa para uma breve revisita ao Congresso Nacional e a Praça dos Três Poderes. Pela primeira vez eu via Brasília úmida, com o céu pesado (contrastando com a leveza da mão de alguns que ali trabalham), atípica portanto, relembrando-me que o ar seco e o calor acachapante são suas características mais marcantes.

Congresso Nacional

Estátua "A Justiça", com uma venda nos olhos

Protesto em frente ao Supremo Tribunal Federal

Salto do Itiquira
Deixamos Brasília pela asa norte, contornando os limites de Sobradinho e Planaltina. Pela BR-020 deixamos o Distrito Federal e retornamos ao Estado de Goiás, mais precisamente ao município de Formosa. Ali pretendíamos visitar pelo menos três atrativos: o Salto do Itiquira, o Poço Azul e o Buraco das Araras. Se a chuva nos permitisse, logicamente. Como o primeiro poderia ser facilmente alcançado via asfalto, numa bela estrada que entrecorta, rumo ao norte, as serras do Capimpuba e da Laranjeira, optamos por conhecê-lo nesse resto de segundo dia de viagem. Após cerca de 20km a estradinha simples dá uma guinada para o oeste e nos apresenta ao portal amadeirado do Parque Municipal do Itiquira, albergante da maior queda d'água de Goiás: o Salto do Itiquira. Ali é preciso deixar as motos e seguir a pé por uma trilha bem demarcada em meio à mata de galeria adjacente ao rio Itiquira. Ouve-se o tempo todo o cantar mavioso do tico-tico-de-bico-amarelo e o marulhar das águas nas pequenas corredeiras de pedras acinzentadas do leito do curso d'água. Após 400m de caminhada já vislumbrávamos os 168m do Salto do Itiquira despencando dos montes rochosos do extremo sudeste da Serra Geral do Paranã. Ao nos aproximarmos vamos nos encharcando cada vez mais devido à dispersão das gotículas ocasionada pelo contato da cachoeira com o fundo do vale e pela ação do vento. Para o nosso fortúnio o tempo se abriu momentaneamente, permitindo-nos fotografá-la sem pressa. Na volta para o centro urbano de Formosa, onde pernoitaríamos, até mesmo um semi arco-íris se exibiu defronte a pequena Serra da Melancia.

Salto do Itiquira

Tico-tico-de-bico-amarelo

Serra da Melancia

Estrada para o Poço Azul
Chovera a noite toda. No dia seguinte, 24, as nuvens negras teimavam em ocupar boa parte do firmamento goiano, mas pelo menos não chovia. Arriscamos, então, arrostar uma estrada de chão (leia-se barro) de mais de 35km, a partir do distrito formosense de Bezerra, para conhecermos o Poço Azul (ou Lago Azul), um afloramento do lençol freático de um azul cristalino incrustado nas fazendas da zona rural de Formosa. Atravessamos extensas e profundas valetas com água pelas canelas, o que rendeu a Thiago o primeiro tombo da incursão. Felizmente nada sofreu de mais grave, mas ainda assim foi um lembrete para seguirmos nos utilizando de boas doses de cautela. Após exaustiva 1 hora de pilotagem chegamos a um capão e localizamos uma trilha que se esgueirava mata adentro. Mais uma vez, daqui pra frente somente a pé. Uma caminhada de menos de 200 metros e pronto. O poço em forma de pião, com um imenso caule dividindo-o ao meio, ostentava seu azul perfeito que, em sintonia com o verde da mata ciliar de galeria, dava-lhe um aspecto único, diferente de todos os outros Poços ou Lagoas Azuis que eu conhecera até então. As fotos realmente não me deixam mentir: não é Azul porque “lembra” a cor azul. O azul é muito azul, marcante em demasia. Diz-se que esse fato se deve ao seu fundo de calcário. A verdade é que esse fundo, em alguns pontos, chega a ter 8 metros de profundidade. Mas não é somente isso que impressiona. A água é morna, daquelas que não chocam ao contato com o corpo. Os lambaris, às centenas, promovem uma massagem natural ao mordiscarem insistentemente caso permaneçamos imersos e hirtos por alguns segundos. Enfim, é um pequeno e singular ambiente, de talvez 15 por 10 metros, mas que demonstra grandeza mesmo não tendo dimensões amazônicas.



Poço Azul

Buraco das Araras
Voltamos pelos 35km de terra até Bezerra, almoçando algumas mangas pelo caminho e desviando de boiadas e sertanistas, e rumamos para o norte pela BR020. Seis quilômetros depois deixávamos a “segurança” do asfalto para adentrarmos uma estradinha pedregosa e poeirenta a oeste. Aí foram mais 9km cortando pastagens e cerrado e topamos com uma porteira fechada, mas destrancada. Uma plaqueta rústica nos informava que tratava-se de uma propriedade particular e que, portanto, deveríamos pagar uma taxa para visitá-la. Havia uma cabana de madeira, é verdade, mas ninguém para receber a paga. Luana abriu a porteira e entramos incautos, pilotando pelos últimos metros até o Buraco das Araras, o derradeiro atrativo de Formosa no nosso roteiro. É, em suma, uma caverna vertical com 120m de profundidade por 100m de diâmetro. Para utilizarmos o termo mais correto, é uma furna, formada pelo desabamento de um teto quartzítico. Para os mais leigos, é um buraco gigantesco no meio do cerrado. Diferente do Poço Azul, onde o adjetivo “azul” vem bem a calhar, aqui o termo “araras” não é condizente com a realidade da avifauna local. Não há arara alguma, mas sim bandos e mais bandos de maritacas que se agrupam nas rochas verticais que emparedam a dolina. Outros espécimes que vivem por ali: o gibão-de-couro, a saíra-amarela, a guaracava, a patativa e incontáveis e inclassificáveis membros da subespécie Elaenia. A trilha para descê-la é perigosa, razão pelo qual muitos preferem o rapel para esse fim. Escorando nos pontos negativos, onde não existia apoio para os pés, chegamos ao fundo e, entre samambaias selvagens enormes, obtivemos, olhando para cima, aquela vista de “portal para o céu”. Cada passo é ecoado por essa imensa caixa acústica da natureza. Rochas calcárias amontoadas nos lados norte e sul nos lembram que esse buraco está em constante metamorfose. E cheio de morcegos, diga-se de passagem. Como eu não trouxera minha lanterna (esquecera-a na moto), não pudemos explorar as galerias mais profundamente onde, dizem, há um lago de mais de 30m de extensão. Nele se pratica mergulho.

Dentro do Buraco das Araras

Saíra-amarela

Elaenia

Lago Getúlio Vargas
Subir de volta para a superfície foi duas vezes mais difícil do que o fora descer. Todo o esforço físico foi recompensado, obviamente, pela placidez do local, pois, assim como no Poço Azul, tiramos a sorte grande, já que nenhum outro visitante se encontrava por ali. Nossa estadia em território formosense, contudo, se encerrava naquele instante. Voltamos os 9km de terra até a BR-020 e aceleramos sentido norte, derrocando, cansados, os perímetros urbanos de Alvorada do Norte e Simolândia, cidades irmãs apartadas das apenas pelo rio Corrente. O grande trunfo dessa via asfaltada é que durante quase todo o seu percurso, daí pra frente, é acompanhado, a leste, pela imponente Serra Geral de Goiás, que divide naturalmente os Estados de Goiás e Bahia. Já eram passadas 17h e, como não sabíamos o que encontrar pela frente, optamos por pernoitar na pequena cidade de Posse. Passamos por lá o Natal, uma data que, por não ser cristão, não significa coisa alguma para mim, mas que indubitavelmente freia meu ânimo por se tratar de um evento festivo. Não me vejo correndo contra o tempo e me esforçando em demasia enquanto todos os outros estão se preparando para sentar e aproveitar o momento. Meu espírito se reanimou apenas no amanhecer de 25 de dezembro, quando continuamos nossa peleja pela BR-020 e adentramos o Estado da Bahia. Pela primeira vez na História os pneus de minha moto se atritavam com o solo baiano. Estávamos agora no Chapadão Ocidental da Bahia ou do São Francisco, onde a altitude se mantinha na casa dos 850 metros e as plantações de soja ocupavam tudo ao nosso redor. Apeamos, para as primeiras fotos nordestinas de nossa incursão, às margens do lago Getúlio Vargas, um oásis do rio Galheirão convidativo para um banho no meio dos campos cultivados. É o território do caboclinho e de incontáveis espécies de borboletas. Uma água cristalina, emparedada por escarpas de arenito, coqueiros e buritis. Enfim, a Bahia e o nordeste nos mostravam seu cartão de visitas.

Caboclinho

Tiziu

Rio Galheirão

Cachoeira do Acaba Vida
Sempre pela BR-020 continuamos sentido norte, aprofundando-nos no estado baiano. Muitos hão de questionar nossa rota, que certamente não é a mais curta para o Jalapão, mas a questão é que pretendíamos conhecer uma cachoeira muito famosa do sul da Bahia e que não estava muito distante dali. Passamos pelo distrito de Roda Velha, pertencente a São Desidério, pela cidade de Luiz Eduardo Magalhães e, pendendo para o leste na BA-242, seguimos até o chamado Anel da Soja, onde novamente subimos para o norte, mas agora pela BA-459. Passamos uma ponte sobre o rio de Janeiro e entramos para o leste logo na primeira oportunidade. O asfalto desapareceu e uma estrada de chão, pobre em areia, nos levou para o sul, onde novamente atravessamos o rio supracitado por uma ponte rústica de madeira. Menos de 1km depois apeávamos à entrada da cachoeira do Acaba Vida, que apesar de extremamente vistosa é de livre e gratuita visita. Descemos o vale do rio de Janeiro por uma trilha íngreme, mas tranquila, e dos mirantes em clareiras da mata ciliar fotografamos essa estupenda cachoeira, na verdade mais parecida com cataratas, pois não cai uniformemente, mas sim em várias canaletas distintas que se reagrupam somente no fundo do vale. Sua altura não é muito intimidadora, visto serem apenas 36 metros de queda, mas com uma virulência digna de cascatas de maiores dimensões. Chovera muito nos dias anteriores e com certeza a caudalosidade do rio de Janeiro se potencializara, aumentando o poderio da cachoeira. Aproximar-se era impossível devido à força da água. E por falar em força, decidimos estender a estadia na Bahia para conhecer uma outra cachoeira, no mesmo rio, dezesseis quilômetros à frente e que, diziam, era ainda mais forte que a do Acaba Vida. Achamos que seria por estradas de chão batido, mas na verdade era um areião digno de Rally dos Sertões. Foi aí que Luana e eu sofremos nosso primeiro tombo, amortecido pela areia fofa do vão entre a Chapada São Vicente e a Serra da Bandeira. Ao chegar a Cachoeira do Redondo, como é conhecida, constatamos ser bem menor (por volta de 15 metros), e tão truculenta (mais uma vez por causa da chuva) que não arriscamos um banho. Vale frisar que essas duas cachoeiras pertencem ao município de Barreiras, apesar de nunca termos chegado ao seu centro urbano.

Cachoeira do Acaba Vida

Arco-íris sobre o rio de Janeiro

Cachoeira do Redondo

Morro da Testa Branca
Voltamos pela estrada de areia até a BA-459 e, ao ganharmos o asfalto, eis que nossa companheira úmida, a chuva, retornara. E assim continuamos, assolados por ela, enquanto pilotávamos pelos últimos quilômetros da Bahia. Seguindo para o oeste pela BA-262 e depois para o noroeste pela BA-460, adentramos o Tocantins e a região norte do país, uma terra outrora propriedade de Goiás, mas que ganhou sua independência em 1989. É, portanto, o Estado mais jovem do Brasil. Lembro-me que, ao mencionar que iria para o Tocantins (bico de tucano, em tupi), muitos me questionaram: onde fica essa cidade? Pois bem, não é uma cidade. É o Estado-coração do país. Bem hipertrofiado, diga-se de passagem. São quase 280 mil km², maior até mesmo que muitas nações sul-americanas, como o Equador. Nossa entrada nesse caçula tupiniquim se deu por uma das mais belas serras já vislumbradas em todos esses meus anos motociclísticos: a Serra Riacho de Areia, uma subdivisão da Serra Geral de Goiás. O Morro da Testa Branca e o Morro Ilha do Pequizeiro são presenças notáveis no cenário que, a esta altura, já sentia a ausência da luz do sol, que se debandava a oeste. Some-se a isso a chuva, que começava a apertar, e o asfalto sofrível dessa região. Tivemos que debandar rapidamente, pois a pilotagem noturna seria uma loteria na qual não estávamos dispostos a apostar. É uma pena que não pudemos apreciar a paisagem com mais esmero (e mais luz). Numa toada lenta, continuamos nos embrenhando Tocantins adentro, passando pela minúscula cidade de Novo Jardim e por um de seus distritos, Amaralina, até chegarmos em Dianópolis, onde pernoitamos. Foi aí que nos disseram que poderíamos atrasar nossos relógios em uma hora. No Tocantins não há horário de verão.

Serra Geral de Goiás, no Tocantins

Cachoeira da Fumaça
Dia 26 de dezembro de 2013. Após um breve percurso pela TO-476 chegávamos à minúscula Rio da Conceição. Enfim estávamos nas entranhas do Jalapão, mais precisamente em sua “porta” sul. Friso aqui que muitos pensam que o Jalapão se trata de uma cidade, mas é, na verdade, uma microrregião do Estado do Tocantins e que, por gozar de características singulares, abrange também pequenas porções da Bahia, Piauí e Maranhão. Explicando em números, são 53 mil km² de área total, sendo que 34 mil estão no Tocantins. Engloba 15 municípios, e Rio da Conceição, que não dispõe sequer de um posto de combustíveis (pagamos R$8 ao dono de um bar por uma garrafa pet com 2 litros de gasolina), não é um deles, mas é a partir daqui que se ramifica uma estrada de chão que adentra o sul do Jalapão. E por ela pilotamos tranquilamente, já que seu estado não era nada calamitoso. Trechos de pedra, poucos e ralos bancos de areia e muito cerrado adjacente. Retas a perder de vista, avifauna ululante e um céu que se abria, fechava e se abria novamente em questão de minutos. Araras-canindés víamos aos pares, mas foi impossível registrá-las. O urubu-de-cabeça-amarela (que apesar do nome é cindido com uma face multicolorida), espécie relativamente difícil de ser encontrada, não nos escapou, contudo. Quarenta quilômetros após Rio da Conceição entramos em definitivo no Jalapão através de uma área preservada (existem diversas por aqui), a Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, com 716 mil hectares. É de acesso livre, tanto que a estrada a entrecorta, e seu primeiro atrativo, acessível por uma trilha a pé beiradeante ao rio das Balsas, é a famosa cachoeira da Fumaça, assim nomeada por ter uma queda potente e uma dispersão de gotículas poderosa apesar da altura de apenas 18m. É em seu vale que é facilmente visto o udu-de-coroa-azul.

Rio das Balsas

Urubu-de-cabeça-amarela

Udu-de-coroa-azul

Ribeirão Traíras
Mais terra a noroeste. A estrada seguia perfeita, batida, e 22km depois chegávamos ao rio Soninho. Há uma cachoeira por ali, mas não fomos capazes de encontrar a trilha de acesso. Esse é o problema quando não há vilas, habitantes solitários ou qualquer outro transeunte pelas redondezas. Não víramos sequer uma alma desde Rio da Conceição, e tal dado pode parecer uma vantagem, mas em alguns momentos faz uma falta desgraçada, uma vez que cartas topográficas e dados de gps nem sempre são exatos e confiáveis. Prosseguindo, cruzamos o leito rochoso do ribeirão Traíras, a essa altura sob uma forte chuva. Veio avassaladora, nos encharcou por completo e logo foi embora. Quando o tempo se abriu chegamos a um conjunto de morros, dentre os quais podemos destacar o Morro da Cruz. Todos são facilmente acessados por escalaminhada, tomando-se o devido cuidado com a sensibilidade das rochas que os compõem (arenito), pois desfazem-se ao mínimo de força dispendida ao apoiar-se para a ascensão. Do cume de todos esses morros é visível o cartão-postal mais emblemático do Jalapão: a Pedra Furada. Chegar aos seus pés, entretanto, não é tão fácil quanto discerni-la no horizonte. Há uma estrada de areia em linha reta de cerca de 2km, mais fofa que areia de mar. Por sorte chovera minutos antes e estava encharcada, compacta, mais dura que o usual. Envolta pelo cerrado e por plantações de soja estava ela, a Pedra Furada, um maciço arenítico gigantesco, vazada por uma “porta”, a leste, e algumas “janelas”, a oeste, através das quais se pode vagar de um lado para o outro do monumento natural, sempre acompanhado pelo barulho incessante de morcegos e vespas que fazem moradia na escuridão das frestas mais profundas. Por falar em fauna, uma cobra se aquecia sobre a rocha avermelhada: a corre-campo. Em alguns pontos, como na “porta” supracitada”, vê-se listras de um vermelho mais intenso contrastando com áreas de um vermelho mais esbranquiçado; em outros há um degradê rubro. Enfim, é uma peça única de mais de 100m de comprimento e talvez 30 de altura (suposições a olho nu).

Morros do Jalapão

Pedra Furada

Cobra corre-campo

Ponte Alta do Tocantins
Saindo da Pedra Furada e seguindo para o oeste calhamos no asfalto da TO-130. Rumamos para o norte e rapidamente chegamos à primeira cidade do Jalapão por essa rota: Ponte Alta do Tocantins. A nomeia o rio que a entrecorta e a abastece: o Ponte Alta. Foi às suas margens que escutamos o estardalhaço dos periquitos e maracanãs no fim da tarde, e que pernoitamos, ao barulho dos veículos que, um por um, cruzavam de oeste a leste da cidade por uma antiga e perigosa ponte de tábuas com 60 metros de “extenção”, segundo uma placa de bronze. Ver esse erro de português me causou um riso. Vez ou outra debochamos da ingenuidade e da falta de tato de certas pessoas, mesmo nos sentindo mal em fazê-lo, e o mundo sempre devolve nossa falta de humildade com a mesma moeda. No outro dia senti a reação na alma. Minha moto acordara no chão, deitada, com o retrovisor esquerdo quebrado e o tanque ralado. Chovera a noite toda e o descanso lateral afundou no solo arenoso do Tocantins. Se eu fosse tão esperto quanto o fui ao tirar sarro de um leviano erro de português, teria sido cuidadoso e colocado um calço para evitar o acidente. Prejuízos à parte, despedimo-nos de três motociclistas paulistanos que conhecêramos na noite anterior e entramos, com chuva mesmo, na rodovia TO-255. Engana-se quem imagina que, por ser uma rodovia, é asfaltada e tem boas condições de tráfego. É pura terra, pedra e areia, que somadas ao ingrediente chuva se transformam em lama, tão escorregadia quanto o dinheiro do proletariado brasileiro. O bom é que, a partir dela, vários atrativos do Jalapão podem ser acessados. O primeiro, quinze quilômetros após Ponte Alta do Tocantins, é o Cânion do rio Sussuapara. É pequeno, com talvez oito metros de altura, mas vem serpenteando, seguindo os contorno do rio do norte para o sul. O rio nasce, de fato, a poucos metros dali, e suas águas são frias, pois a luz solar não é capaz de penetrar pelo estreito cânion.


Cânion do rio Sussuapara

Palmas
Do Sussuapara àdiante a chuva apertou, a estrada piorou e, para estragar ainda mais o cenário, a pastilha do freio traseiro de minha moto simplesmente perdeu a cerâmica. Por sorte eu tinha uma reserva, meia vida, e fizemos a substituição. Caía tanta água que sequer consegui tirar minha câmera para registrar o cerrado dos arredores, envolvido por uma atmosfera cinzenta. A 40km de Ponte Alta do Tocantins, 25km após o Sussuapara, o que parecia inevitável se viabilizou: a segunda pastilha também se degradou. A lama do Jalapão vitimava mais um. Encharcados e com minha moto sem freio traseiro, optamos por voltar a Ponte Alta para consertar os danos. Reencontramos os três motociclistas paulistanos nas proximidades do Sussuapara. Também enfrentavam o Jalapão sob a chuva. Luciano me emprestou um pedaço de arame para isolar o pedal do freio e não danificar o pistão, despedimo-nos novamente e chegamos a Ponte Alta, onde não encontramos pastilhas compatíveis, como era de se esperar. Nossa incursão pelo Jalapão se complicava. Restou-nos seguir, por asfalto, para Porto Nacional, uma das cinco maiores cidades do Tocantins. Pilotamos por 130km, passando pela pequena Monte do Carmo, e nada. Lá também não encontrei a peça necessária. Nossa última opção foi subir com alguma esperança para Palmas, a 60km dali. A capital tocantinense é a mais nova dentre todas as capitais do Brasil. Sua construção se iniciou em 1990 e até hoje, rodando pelas amplas avenidas, vê-se muitos terrenos ociosos. É uma cidade que aparenta abrigar menos de 240 mil habitantes, número informado pelo censo. O comércio, contudo, come solto como em todas as grandes cidades, e felizmente isso nos foi um ponto favorável. Encontramos a pastilha. Todavia, já era tarde. Pernoitamos no distrito de Taquaralto.
Parque Estadual do Lageado
Surge o dia 28 e com ele a dúvida: adentrar ou não adentrar para o Jalapão com chuva? Thiago demonstrara interesse em voltar para Americana antes da virada do ano. O pouco tempo era, portanto, um empecilho. Aproveitamos o dia para conhecer um pouco melhor os arredores de Palmas, em especial a imponente Serra do Lageado, na parte leste da cidade. Primeiramente a vislumbramos pela TO-020, estrada que segue o contorno de seus contrafortes de oeste a leste e garante a subida pelo leste. Já no alto, seguimos as indicações para o Parque Estadual do Lageado, o que nos levou a uma estrada de chão nos píncaros da serra. Dois quilômetros depois surge o portal do parque, mas o mesmo estava fechado. Prosseguindo, passamos por alguns mirantes naturais, os quais alguns servem como rampa de voo de parapente. Parar em um desses pontos é se deliciar com um cerrado bem preservado, lar de pássaros de canto mavioso, como o bico-de-pimenta e o pássaro-preto. Uma parte da chapada é de responsabilidade da RPPN Boa Vista, e nela visualizamos o pica-pau-de-banda-branca e o joão-bobo, bem como o mamífero tatu-galinha. É de dentro dessa reserva que se vê também a cidade de Palmas e o rio Tocantins, de águas represadas. É o Lago do Lageado, para o qual nos dirigimos após descer a serra por um perigoso trecho de pedra. O sol deu as caras, banhamo-nos na Praia do Prata, uma praia artificial no lago, e observamos o trânsito lento de uma iguana pelo local. Enfim, sem perspectivas, encerrava-se mais um dia na vida daqueles que vieram de longe para conhecer o Jalapão, mas que viam esse plano diluir-se nas águas do verão tocantinense.

Tatu-galinha

Iguana

Praia do Prata, no rio Tocantins

Emas em Novo Acordo
O dia 29 trouxe alguma esperança. Durante o desjejum observamos longamente os céus e a predominância do azul nos deu algum alento. As esparsas nuvens e o forte calor eram convidativos à entrada em definitivo nos caminhos do Jalapão. E lá fomos nós, partindo já tarde de Palmas, às 10h, rumo a sua entrada noroeste via TO-020. Passamos pela pequena Aparecida do Rio Negro e por vastas plantações de soja, onde bandos de emas podem ser vistos ciscando placidamente. Cento e vinte quilômetros depois apeávamos em Novo Acordo, portal noroeste do Jalapão. Com menos de 4 mil habitantes, a cidade foi nosso último contato com o asfalto, pois nos próximos 3 dias a terra batida e a areia seriam nosso “pavimento”. E como não poderia ser diferente, a total falta de trânsito seria uma outra característica. Como não estávamos solitários, por assim dizer, não nos amedrontamos e seguimos numa lenta toada por uma região que, por ser arenosa e de cerrado ralo, já numa fase de transição para a caatinga, é por muitos taxado de deserto, muito embora não apresente as características para ser oficialmente considerado um. A altitude se mantinha na casa dos 200m e por horas a fio vimos apenas uma vegetação baixa e retorcida e veredas, onde palmeiras e buritis emprestavam suas sombras para nossos descansos esporádicos. Vivenciamos uma leve mudança de altitude na chamada Serra do Gorgulho, também conhecida como Morro Vermelho devido a suas arredondadas formações rochosas de cor avermelhada por ser composta basicamente de arenito. Foi o primeiro grande atrativo desde Novo Acordo, o que rendeu também o primeiro susto: ao subirmos uma rampa entre dois morros, tive que desacelerar para não colidir com a traseira da moto de Thiago, que ia na frente. Resultado: a moto foi deslizando para trás e Luana e eu caímos. Eis o segundo tombo da incursão. Felizmente não nos contundimos.



Morro Vermelho, ou Serra do Gorgulho

Rio Novo
Prosseguindo, já na tarde jalapoense, passamos pela divisa entre Novo Acordo e São Félix do Tocantins, demarcada naturalmente pelo rio Novo. Esse rio é proclamado como um dos últimos no mundo cuja água é potável. Nesse ponto não chegava a ser cristalina. Puxava mais para tons de marrom. Em suas barrancas ao leste vê-se dunas de areia em potencial, e digo em potencial porque alguns arbustos ainda tentam resistir com suas raízes fincadas no solo arenoso. Mais adiante, já na reta final para São Félix do Tocantins, passamos ainda pela famosa Serra da Catedral, uma chapada com uma ponta triangular sobressalente em sua face sul. Pela cor da serra eu acredito que seja composta por arenito e quatzito. É, na verdade, uma grande “caixa” na planície do Jalapão, que após a Serra do Gorgulho já apresentava altitudes na casa dos 400m. Cento e quarenta e seis quilômetros de terra após Nova Acordo e aportávamos na pequena São Félix do Tocantins. São apenas 1500 habitantes distribuídos por uma dezena de ruas. Há aqui apenas uma bomba de combustível, antiga, analógica, ao relento. A R$4,40 o litro abastecemos para, no próximo dia, seguir viagem rumo a Mateiros. Por ora nos contentamos em visitar a Praia do Alecrim, às margens do rio Soninho, um lugar onde pernilongos (aqui chamados de muriçocas) e borrachudos são os proprietários do espaço aéreo, picando vorazmente os incautos que se aproximam da água. Ao procurarmos um local para pernoite, reencontramos os amigos de São Paulo, que vinham de Mateiros, no sentido contrário ao nosso, e também pernoitariam em São Félix. Em seis, então, passamos o resto da noite na companhia do simples povo tocantinense, que sorve forrós (geralmente versões de famosas músicas brasileiras) em volume máximo e que, de tão acanhado, desconhece o estoque de seus próprios comércios. Era comum, por exemplo, pedirmos algo para comer e recebermos a resposta “tem nada, não”, mesmo vendo pacotes de biscoito no balcão.
 
"Rodovia" jalapoense
Serra da Catedral

Praia do Alecrim, em São Félix do Tocantins

Cinco motos no Jalapão
Dia 30. Logo pela manhã nos dirigimos, os seis, para o chamado Fervedouro do Alecrim, distante 1,5km do “centro” de São Félix do Tocantins. Paga-se uma taxa de R$5 na entrada, uma simples palhoça, e palmilha-se uma trilha de aproximadamente duzentos metros entre altas bananeiras. Surge um poço de 10 metros de diâmetro, perfeitamente circular, de águas verde-esmeralda e borbulhante no centro. É uma nascente. O líquido verte do lençol freático, passando pela superfície arenosa e formando borbulhas. Por isso o chamam de fervedouro, pois, à primeira vista, a água parece ferver. Muitos acreditam que, por ter essa designação, a água seja quente, mas não passa de uma temperatura morna, agradável. No seu centro, o ponto máximo de borbulhamento, nada afunda, nem mesmo um inabilidoso nadador. É a força do aquifero vencendo a areia e jogando tudo para cima, formando um perfeito círculo negro de resíduos com dois metros de raio a partir do ponto de maior afloração. É uma bela forma de se refrescar na manhã de mais de 30º C, e a boa notícia é que viriam outros fervedouros pelos caminhos escaldantes do cerrado jalapoense. No afã de também visitá-los, despedimo-nos de nossos amigos paulistanos e enfrentamos mais terra rumo a Mateiros. Na saída de São Félix, um adeus amargo ao município: uma jiboia, a segunda maior cobra constritora do mundo (menor apenas que a sucuri), morta a pedradas no meio da estrada. Mesmo não sendo peçonhenta, o espécime de 1,5m de comprimento teve sua vida ceifada pelo preconceito e pela desinformação. Uns matam por matar, como o fazem com qualquer coisa que se movimente; outros matam porque creem ser peçonhenta. Ambos estão equivocados, e isso muito me entristece. Quem paga a conta é o belo animal, que poderia crescer ainda muito mais em tamanho e garbo.

Palhoça


Fervedouro do Alecrim

Curicaca
Rodamos, após a saída de São Félix, pela TO-110, uma rodovia estadual que logicamente não é asfaltada, como todas as vias do Jalapão. Tratores recentemente aplanaram-na, acelerando nossa toada, embora a mistura de terra batida e pedra não nos permitisse muita empolgação. O cerrado se consolidava ainda mais como uma grata companhia, mas nesse trecho já víamos algumas pequenas propriedades rurais e sua agricultura de subsistência, o que explica em parte a grande concentração de curicacas, aves que usufruem dos insetos e pequenos répteis que se proliferam nas plantações mais rasteiras. Aqui uma ressalva: muito se fala sobre os pontos cênicos do Jalapão, mas pouco sobre sua fauna. Por esse motivo Luana e eu não perdíamos a chance de registrar todo ser que se movia diante de nossos olhos. Não despontaram muitos, é bem verdade, mas toda essa observação fez com que os 50km entre São Féliz e o Fervedouro do Buritizinho passassem muito velozmente. Era o nosso segundo fervedouro, facilmente acessível por uma trilha de 200 metros bordejante a um regato de um metro de largura. De dimensões menores que o predecessor, ganhava-nos pelos olhos pela cor de suas mornas águas: um azul turquesa incrível, totalmente translúcido. As bananeiras, a exemplo do Fervedouro do Alecrim, derredoream o do Buritizinho, completando um cenário que vale certamente muito mais que os R$5 que um simples senhor cobra na palhoça de entrada. As águas do Jalapão, acredito, são os maiores trunfos dessa região, uma mostra de que um baixo índice demográfico é responsável direto pela manutenção da qualidade de nossos biomas. Como diriam muitas das pessoas que encontrei em minhas andanças, o ser humano é o único câncer do Planeta Terra.


Fervedouro do Buritizinho

Cachoeira do Formiga
De volta na TO-110, descemos 2,5km, sentido sul, e localizamos o trevo de acesso à cachoeira do Formiga (DO mesmo, e não DA, por ser alusiva ao rio Formiga). Dentre todos os pontos turísticos do Jalapão, esse foi o que, de antemão, mais me cativou. As fotos que vi retratando esse lugar eram extraordinariamente belas. Esqueceram, entretanto, de relatar que a estrada de 5km para se chegar a ela é traiçoeira. Para começar, são vários atalhos abertos por jipeiros, caminhos que se entrelaçam e nos obrigam a passar por terrenos perigosos. Em um deles, num banco de areia, Luana e eu novamente fomos ao chão. Foi o terceiro tombo, e pela terceira vez não nos contudimos. Por fim, chegamos à palhoça de entrada, pagamos uma taxa e caminhamos pela pequena trilha que termina na cachoeira mais esverdeada a que já tive o prazer de descansar meus olhos. Não é alta, é verdade. Muitos a classificariam como uma simples corredeira. Contudo, o poço esmeralda é talvez unanimidade entre todos que o visitam. A incidência da luz solar desperta sua iridescência; a mata de galeria adjacente a protege o suficiente para que essa luz não seja ofuscante; pássaros, em especial a pipira-vermelha, saltam de galho em galho, alimentando-se das frutinhas do cerrado jalapoense; aracnídeos tecem suas teias entre as folhas dos baixos vegetais das margens, uma arapuca certeira para os insetos que procuram a água do rio Formiga. Enfim, todo o ambiente é propício para o deleite, bem como toda água, no calor do Jalapão, é convidativa a um banho. Não me recordo de ter me banhado tanto como aqui nessa região praticamente intocada do Estado do Tocantins.



A iridescência do rio Formiga

Capim-dourado
Desculpem-me a redundância, mas devo dizer que, depois de uma visita e um banho na Cachoeira do Formiga, voltamos ao traçado retilíneo TO-110. Mesmo que auguremos, não há outras opções por aqui. Descemos, sentido sul, por 2,7km, e pendemos para o oeste na chamada Estrada da Mumbuca, estradinha de pedra, precária mas ainda assim trafegável. Passamos pelo estacionamento do Fervedouro, o qual adentraríamos na volta. Aceleramos, primeiramente, rumo ao Mumbuca, um povoado com pouco mais de 200 pessoas e duas dezenas de casebres, alguns de adobe, e que por anos vem se sustentando através do trabalho artesanal com o capim dourado, uma espécie de sempre-viva endêmica do Jalapão. A venda de brincos, colares, pulseiras e bolsas colabora com o sustento desse povo humilde e alegre, e que tempos atrás vivia do que plantava e da farinha que produzia. A recepção das crianças mumbuquenses foi no mínimo revitalizante, um incentivo para continuarmos firmes em nosso intento de atravessar uma das regiões mais inóspitas do Brasil, e que nem por isso deixa de esboçar um sorriso para os que se atrevem a desbravá-la. Apesar de ser contra o consumismo desenfreado, devo admitir que aqui é uma questão de sobrevivência. O capim-dourado é tudo o que esse povo tem. Que os abastados paulistanos, com seus enormes veículos traçados, continuem fomentando esse comércio. E para fechar em definitivo nossa curta e filosófica estadia na região de Mumbuca, voltamos pela mesma estrada e apeamos no supracitado “estacionamento” do Fervedouro. Ali deixamos nossas motos e seguimos a pé, vale abaixo, rumo a uma mata de galeria onde um senhor em uma rede, espantando muriçocas, nos cobra R$10 para um banho no maior e mais famoso Fervedouro do Jalapão, e que por isso não recebe outro nome a não ser pura e simplesmente Fervedouro, como se todos os outros fossem genéricos. Neste nada afunda, as bolhas que brotam do lençol freático são mais poderosas, formando pequenos chafarizes de areia subaquáticas. Mais um merecido banho seguramente abrigado pelas bananeiras do solo jalapoense.

Crianças do povoado Mumbuca

Fervedouro

Cachoeira do Hortêncio
Muitos chamariam isso de dia e encerrariam suas atividades. Nós, no afã de conhecer tudo o que fosse possível nos dias em que estivemos no Jalapão, ainda queríamos mais. Valemo-nos, então, de uma dica de Luciano, um dos motociclistas paulistanos que encontráramos por esses confins. Chegamos à cidade de Mateiros, no coração dessa região, e logo encontramos um pouso para a noite. Livramo-nos do excesso de bagagem e partimos para uma estrada (de terra e areia, mas a essa altura o leitor já deveria ter subentendido) rumo a Bahia, sentido leste. Logicamente não chegamos a esse Estado. Pilotamos por 8,5km até o “acesso”, ao sul, de uma estrada de areia quase tomada pelo cerrado devido ao pouco trânsito de veículos. Não há placas ou qualquer outra indicação. Intentávamos procurar por ali a cachoeira do Hortêncio. Pois bem, em alguns momentos pensamos em desistir, primeiro devido à precariedade da estrada, que quando sumia nos obrigava a roçar o cerrado com nossas motos; segundo por causa sol, que já não nos dava a segurança de sua luz, visto que se punha a oeste; e terceiro porque minha moto começou a esquentar demais, reticendo aquela incômoda luz vermelha no painel. Com muito esforço, e andando um bom trecho a pé sobre um extenso campo de capim-estrela, localizamos a pequena cachoeira, de talvez sete metros de queda. Não é a mais bela do Jalapão, nem mesmo a mais alta, mas o desafio de encontrá-la foi um feito equiparável ao dos mais bravios guerreiros sobre duas rodas. E na volta, já sem a luz natural do sol, um tombo na areia, para nos mantermos em alerta. Meu pé direito ficou preso na moto tombada, e um momento de força de Luana foi oportuno para que ela a erguesse por alguns milímetros de modo que eu me livrasse. Agora sim chamamos isso de dia e voltamos para Mateiros, cidade com 2 mil habitantes onde a gasolina é artigo de luxo, custando mais de R$4 o litro. Penamos para nos alimentarmos após um dia inteiro passado com as calorias de um café da manhã magro.
Serra do Espírito Santo
Manhã do dia 31, a última do ano de 2013. Contrariando toda a letargia que eiva essa data caímos logo às 7 da manhã na estrada. O trecho entre Mateiros e Ponte Alta do Tocantins, feito pela TO-255, foi o mais caótico de toda a incursão pelo Jalapão, mas cenicamente foi o mais prazeroso. Vinte e cinco quilômetros após Mateiros, por exemplo, passa-se pelos contrafortes sulistas da Serra do Espírito Santo. São imponentes chapadas de quartzo, umas mais elongadas, feito mesas, e outras mais curtas e pontiagudas, lembrando vulcões. Essas formações que dão origem ao próximo atrativo. São 8km de puro êxtase beiradeando esses paredões para se chegar ao acesso às Dunas do Jalapão, na parte oeste da serra. O problema é que a partir daí são mais 5km de pura e fofa areia, a coqueluche dos motociclistas. Cair é quase uma certeza, mas acredito que os tombos de Luana e eu nos capacitaram a derrocar sem maiores sustos a arenosa via, muito embora isso tenha levado cerca de 20 minutos. A recompensa veio primeiramente com a vista de um lago, cercado por capim-estrela e buritis e com a Serra do Espírito Santo como pano-de-fundo, e depois com as dunas em si, uma paisagem que só pode ser desfrutada a pé. São mais de 30 metros de altura de areia dourada, mais escura que as vistas no litoral, visto ser areia de quatzo, a mesma da serra adjacente. As chuvas erodem a Serra do Espírito Santo, formando bancos dessa areia que, a partir de então, são moldados constantemente pelos ventos. Não tem, portanto, sempre a mesma forma, uma volatilidade que cria lagos intermitentes enquanto assoreia outros. É o que acontece com o riacho que passa pelo seu perímetro, um afluente do rio Novo. Dizem que já foi muito mais caudaloso no passado, e hoje pode ser facilmente atravessado a pé, com águas pelas canelas. Tenho o prazer de mencionar que aqui não é o ser humano quem abrevia a vida de uma obra da natureza, e sim a própria natureza, a mãe ainda soberana do Jalapão.

Lago próximo às dunas

Riacho afluente do rio Novo

Dunas do Jalapão

Cachoeira da Velha
Voltamos os 5km de areia e retomamos nossa cruzada pela TO-255. Já era passado meio dia e nossa debilidade era visível. Como agravante, estávamos seguindo sentido Ponte Alta do Tocantins, para o oeste, onde não há nada mais que um cerrado infinito nos rodeando. Viajar para o Jalapão é aprender a lidar com a falta de postos de combustíveis, mercearias ou qualquer outro comércio que venda uma garrafa plástica de água gelada. Por falar em água, o único grande rio desse trecho é o Novo, novamente, que sobrepassamos pouco após deixarmos o acesso às Dunas. Sem delongas e sem paradas, já à base de muita galhardia, vencemos em pouco mais de duas horas os 60km até o acesso à cachoeira da Velha. Com esses dados dá pra se ter uma noção da velocidade média e das condições da estrada. No acesso subimos para o norte pela melhor via de todo o Jalapão. Pelo menos é a que tinha mais cascalho e menos areia, nos permitindo uma rápida toada. Vinte quilômetros depois passávamos por uma espécie de centro de informações do Parque Estadual do Jalapão, albergado nas instalações de um antigo hotel cuja obra foi embargada após a delimitação do parque. Vale frisar que sua área total é de aproximadamente 160 mil hectares, abrangendo, dentre outros atrativos, a cachoeira da Velha e as Dunas. É para o primeiro que íamos agora, vencendo com facilidade os últimos 10km até uma passarela suspensa às margens do rio Novo. Dela se avista a maior cachoeira de todo o Jalapão, a da Velha, despejando as águas turbilhantes do rio Novo a 20 metros de altura. O mais embasbacante, contudo, é a largura, superior a 100 metros, e o volume gigantesco, causador de uma tonitruância ímpar. O formato de ferradura é outra de suas características. Foi, juntamente com a prainha que se forma 1km abaixo do curso do rio Novo, nosso último ponto registrado no Jalapão. Pilotaríamos ainda por mais 100km de terra e areia até a cidade de Ponte Alta do Tocantins, de onde a incursão deveria ter começado, e não terminado, se não fossem os problemas com a minha moto e com as intempéries.


Cachoeira da Velha
 
Prainha do rio Novo
Natividade
A virada de ano foi passada em companhia dos tocantinenses que, se compadecendo de nossos sujos andrajos, uma situação lamentável, nos convidaram para uma ceia com muita fartura. Tal gesto é um banho de água fria em personalidades como a minha, que creem que apenas lugares são dignos de encômios, e não pessoas. Deixo aqui, portanto, registrada minha gratidão para com todo o povo de Ponte Alta do Tocantins. Isso nos motivou a enfrentar ainda mais 60km de estradas de terra, no dia 1º de 2014, de Pindorama do Tocantins a Chapada da Natividade, já no caminho de volta para casa. Volvíamos nossas costas ao Jalapão, mas não ao Estado do Tocantins, visto que passamos, mesmo que rapidamente, pela histórica cidade de Natividade, cujas origens remontam ao ano de 1734, o que pode ser notado em seu casario colonial muito bem preservado. É o primeiro conglomerado urbano do Estado se levarmos em consideração a emancipação de Goiás. Destaca-se as ruínas da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, inacabada desde o século XVIII e que supostamente serviria ao culto de escravos. A Matriz, também construída no século XVIII, está concluída, e da serra imediatamente atrás da mesma, a Serra da Natividade, se extraía o ouro que trouxe o progresso efêmero ao povoado que, à época, era denominado Arraial de São Luiz. Mais de 40 mil escravos trabalharam nessas paragens.


Ruínas da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, do século XVIII

Arraias
Para terminar nossa estadia no Estado do Tocantins, o caçula brasileiro, passamos ainda por Arraias, cidade que também tem sua História ligada à extração aurífera e cujo território ainda detém resquícios de vilas quilombolas. Atravessamos a divisa entre Tocantins e Goiás, adiantamos nossos relógios em uma hora, passamos por Campos Belos e Monte Alegre de Goiás e pelo esplêndido e pedregoso leito do rio Paranã, com a Serra Geral do Paranã guarnecendo-o a leste. Por fim alcançamos Teresina de Goiás, já na região conhecida como Chapada dos Veadeiros. Eu e Thiago já estivemos aqui em uma outra oportunidade (link) como dito no começo dessa postagem. Contudo, por ser uma vasta região, deixamos, à época, de conhecer alguns atrativos, e dois deles teríamos a oportunidade de visitar em nosso caminho de volta: a cachoeira Poço Encantado, às margens da GO-118, e as cataratas do rio Couros, distante 32km de terra da mesma rodovia após Alto Paraíso de Goiás, pequena cidade no coração da chapada. São cachoeiras peculiares, a primeira com um enorme e cristalino poço, infiltrando-se por rochas de aspecto ferrugíneo, e a segunda com meros 12 metros de altura, mas com mais de 100 metros de largura e com um grande volume d'água. É sempre bom voltar a essa região, onde o céu é o mais azul de todo o Brasil. Por fim, caímos para o sul, dando adeus às estradas rurais e seguindo definitivamente pelo entediante asfalto do Planalto Central. Calhamos na BR-040, em Cristalina, e logo na sequência na 050, chegando ao anoitecer em Catalão, onde pernoitamos.

Cachoeira Poço Encantado
 
Cataratas do rio Couros
O regresso
Na manhã seguinte, mais tardiamente que o habitual, ganhamos a estrada para vencer os últimos 600km da incursão. Já não nos preocupávamos em acelerar. Fomos vagarosamente avançando, adentrando o triângulo mineiro e parando inúmeras vezes no Estado mais querido de todos os motociclistas do Brasil. Por fim estávamos de volta a São Paulo, vagando pela infinita Anhanguera e deixando-nos entristecer pela realidade do regresso. Foram tantos os engodos enfrentados que essa aventura nos fortificou, nos tornou mais íntimos com nossa própria força de vontade. Afinal, não é qualquer um que se propõe a rodar 5100 km em 12 dias, sendo que desses mais de 600 por estradas não pavimentadas, mistas de terra, pedra e areia. Mais do que uma jornada por um Estado ainda desconhecido, essa se tratou de uma aventura em que nuances sociais eram esperadas, mas que mesmo assim me afetaram de uma forma da qual nunca me olvidarei. Em uma terra de antagonismos, onde o silêncio da pobreza de seus habitantes é quebrado pelo barulho dos motores da riqueza dos forasteiros, os únicos que lá conseguem chegar devido a suas máquinas, me pergunto: somos realmente os aventureiros nessa equação? A resposta me vem com um laivo de consternação. Nós, os forasteiros, não somos os aventureiros. Eles, os nativos, é que os são, pois insistem em sobreviver onde não há estradas decentes, apoio substancial do governo ou qualquer ajuda rápida quando necessitam. Lá, onde a gasolina está entre as mais caras do mundo, o progresso não chega. Na verdade, chega, mas desfila seus “cavalos” e retorna para a segurança e o conforto de seus abastados lares ao fim de alguns dias. 
Geralmente finalizo minhas postagens com uma reflexão pessoal, mas hoje o farei diferente. Sei que o blog não tem muita abrangência, mas ainda assim neste espaço, que gosto de crer que ainda é meu, deixo registrado meu profundo desgosto para com o DER (Departamento de Estradas de Rodagem) e com as cidades abastecidas pela SP-304, incluindo Americana. Thiago Lucas, meu companheiro dessa e de tantas outras aventuras, acidentou-se (quando eu estava em vias de terminar essa postagem) ao tentar desviar de uma tora de eucalipto atravessada no meio da via. Resultado: um braço quebrado em quatro lugares, uma cirurgia e pelo menos dois meses fora de combate, isso sem contar os prejuízos com a moto. Não é de hoje que a rodovia em questão está jogada às traças, com mato alto nos canteiros e câmeras de segurança sucateadas, carcomidas pela ferrugem, isso sem contar o excesso de resíduos deixados pelos caminhões canavieiros e eucalipteiros. Não é a primeira vez que vejo um acidente dessas proporções. Não é sequer a primeira vez com um amigo. Enfim, esperamos, criticando, que medidas possam ser tomadas para evitar problemas como esse, que podem ser fatais.


Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.


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E abaixo, um blues composto especialmente para o Jalapão.