terça-feira, 27 de setembro de 2011

Analândia – 24 de setembro de 2011


Friedrich Hayek, o pai do neoliberalismo, frisava em 1944 que “os acontecimentos contemporâneos diferem dos históricos porque desconhecemos os resultados que irão produzir”. Em português claro, agimos sem saber a força que nossas ações presentes exercerão – em nossas próprias vidas e em vidas alheias – em um futuro próximo ou longínquo. Muitos pequenos atos, que poderiam ser simplesmente olvidados sob as pilhas da indiferença, são capazes de angariar um poder incomensurável com o passar do tempo e ocasionar mudanças drásticas em uma sociedade. Logicamente não temos controle sobre a História. Podemos, agindo apequenadamente, fenecer no fracasso, na obscuridade do anonimato. Corremos o risco de deixar um legado perfunctório.
Pica-pau-do-campo
A obrigação de ter que voltar a uma mesma localidade em várias oportunidades pode nos privar de conhecer outras. Não obstante, é sabido que diversos caminhos levam a um mesmo destino. Trilhar todos eles oportuniza um maior volume de pequenas ações. Cada estrada, cada alameda, cada cidade exige um grau de atenção, de velocidade de mobilidade, de gestual corporal, de motivação. O destino em si é secundário; os meios para se chegar a ele, primários. Desta forma maximizamos nossas chances de fazer História, pois criamos um pano-de-fundo para a vivência de variadas situações. Quanto mais conhecemos, mais sabemos e, se não deixarmos a pusilanimidade nos eivar, mais faremos. Sejamos desbravadores! Sejamos polivalentes! Deixemos um legado substancial! Viajemos!
A estrada velha de Limeira
O discurso de início desta postagem é, ao meu entender, necessário, pois detalharei uma viagem a uma cidade em que estive incontáveis vezes. Porém, em todas elas, garanto, alcancei-a por vias alternativas. Nunca um caminho foi semelhante a outro. Portanto, quando recebi o convite de meu intrépido camarada Luiz Paulo para ir novamente a Analândia, não deixei que o fato de eu conhecer cada detalhe deste local exterminasse minha vontade de viajar. Pelo contrário, entusiasmei-me pela possibilidade de encontrar mais uma alternativa de chegar à cidadela. Devo assegurar que não me arrependi de ter traçado o trajeto que se segue.
Rio Piracicaba
Luiz Paulo e eu partimos de Americana por volta do meio-dia. Nosso plano desde o princípio consistia em pilotar a maior parte do tempo por estradas de terra. Ainda em Americana nos embrenhamos pela primeira, após transpassar uma ponte sobre o rio Piracicaba, principal afluente do Tietê. Este rio nasce, a dois quilômetros dali, da fusão de dois outros importantes rios: o Jaguari e o Atibaia. Lentamente alcançamos o distrito de Tatu e seguimos, ainda via terra, até Limeira, onde naturalmente fomos “desembocados” na Anhanguera.
O anu-branco e a cigarra
De Americana a Limeira aproveitamos os pormenores somente encontrados na Antiga Estrada de Limeira. O aroma das laranjeiras e a flor da cana-de-açúcar cindiram grande parte do caminho, bem como a avifauna sempre vistosa do campo. Pude fotografar um anu-branco degustando uma cigarra e as cores vibrantes de um pica-pau-do-campo assustado sobre os galhos de uma pequena árvore. Surpresas ruins também saltaram aos olhos, como um carro em chamas. Ladrões devem tê-lo abandonado, após a extração de algumas peças, ateando fogo ao mesmo logo em seguida.
Córrego em Corumbataí
Da Anhanguera a Washington Luiz, outra antiga conhecida. Passamos por Santa Gertrudes, Rio Claro e pela primeira entrada, por asfalto, de Corumbataí. Adentramos a segunda, esta por terra. Atravessamos alguns sítios, boiadas e areais. Um casal de seriemas cruzou a estrada, motivando uma parada para fotografias dos bichanos e consequentemente da serra ao fundo. Dez quilômetros depois estávamos na praça central de Corumbataí, cidade com aproximadamente 4000 habitantes, procurando uma outra estrada de terra que nos levaria ao portal de Analândia. Rapidamente a localizamos e, sem muitas emoções, a não ser uma breve parada à beira de um manso córrego, vencemos os poucos quilômetros que nos apartavam do nosso derradeiro destino.
Analândia
Analândia conta com uma população de quase 4000 habitantes, comparável neste item à vizinha Corumbataí. Desde 1966 se enquadra na categoria política de Estância Climática, o que garantes maiores subsídios econômicos por parte do Governo do Estado de São Paulo. Tal título se deve principalmente à qualidade de suas águas. Até meados de 1944 detinha o nome de Anápolis, mas devido a uma cidade goiana homônima seu nome original foi modificado. É conhecida pelo artesanato à base de lã de carneiro, mas peremptoriamente por seus recursos naturais (cachoeiras e morros) e potencial em esportes de aventura, como mountain bike, tirolesa, escalada e rapel.
Cuscuzeiro
Da parte central de Analândia se bifurcam duas estradas de chão e areia repletas de atrativos naturais. Seguimos pela mais conhecida, que leva aos morros do Cuscuzeiro e do Camelo. O primeiro, do alto de seus 220 metros, tem sua base coberta por mata nativa bem preservada. Do meio dessa vegetação se eleva um paredão de arenito com 52m de altura. Seu cume pode ser alcançado somente via escalada. Um quilômetro adiante fotografamos o morro do Camelo, também bastante explorado por escaladores iniciantes. Ambos os morros foram agraciados com esses nomes pela semelhança que apresentam com o cuscuz, comida típica da América Latina, e com um camelo deitado.
A "goteira" da Bocaina
Com pouco tempo disponível, infelizmente nos vimos na premência de partir. Sabíamos que a estrada de terra terminaria na rodovia Washington Luiz, segundo informações de um morador local. Aproveitamos, então, para visitar a Cachoeira da Bocaina. Contrariando o dono do sítio na qual está inserida, descemos a abissal trilha apenas para atestar o que o velho homem havia advertido: a queda de 45m, na verdade, não era mais que um “chuveiro natural”. A estiagem que vem castigando a região nos últimos meses diminuiu consideravelmente o volume de água dos rios e, consequentemente, das quedas d'água. Já estive em uma outra ocasião neste mesmo local e posso garantir que o poder das águas, em condições propícias, é assustadoramente maior.
O cansaço
Washington Luiz, Rio Claro, Iracemápolis, Santa Bárbara d'Oeste e Americana: este foi o trajeto de retorno, inteiramente por asfalto. Os pouco mais de 250km rodados em menos de 7 horas exauriram nossas forças, visto que em grande parte destes pilotamos por estradas de terra, pedra e areia. Soma-se a isso a trilha para a cachoeira, a qual nossos andrajos de motociclistas não foram nem um mínimo adequados. A resistência, a cumplicidade e a paciência do meu camarada Luiz Paulo devem ser louvadas. Ter que parar a cada 100 metros para eu poder fotografar algo realmente não era esperado por ele.
Por cá ou por lá, a caravana segue seu curso. Quando a preocupação de ter que chegar rapidamente deixa de existir, a exploração de caminhos alternativos adquire plenos poderes. Nossa existência, em decorrência disso, passa a ser vista por diferentes ângulos que, por sua vez, podem divergir entre si. A propósito, somos o que nossos desequilíbrios nos permitem ser. Buscando vencê-los nos atiramos à procura de soluções para reavermos a paz. Que ela nunca venha. Que eu a encontre somente quando as paisagens de todos os caminhos estiverem lapidadas em meu âmago.


Mais fotos aqui.

E abaixo um blues, antigo mas readaptado, para a minha velha conhecida Analândia.
The same old sky above me
The same old moon just fillin' the night
Recalling me that I must go
I must go where noone else can go

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O Rastro da Serpente, Curitiba e Parque Estadual de Campinhos – 17 e 18 de setembro de 2011


As românticas e revolucionárias décadas de 1950 e 1960 ficaram na história. As potenciais Sierras Maestras e Serras do Caparaó se elevam sobre as mesmas cordilheiras, mas o ideário popular já não é tão atuante ou criativo a ponto de torná-las base para uma mudança significativa da sociedade. Não há mais Bolivares, Marighellas ou Guevaras. Não há líderes. Os pilares das relações interpessoais, como nossos ascendentes os edificaram, permanecem intactos, mas apenas como totens para saudosa admiração e não para real usufruto. As “vidas virtuais”, estas sim, são hipercaloricamente nutridas e zeladamente gerenciadas.
Gavião-Carijó
O conhecimento não é mais produzido e compartilhado em rodas de conversa na praça do vilarejo. É, infelizmente, mantido em “cativeiro” nos círculos acadêmicos. Como resultado desta centralização, cria-se uma ruptura de grandes proporções no seio da sociedade. Instaura-se o axioma de que “quem pode, manda, e quem é esperto, obedece”. Criticamente, portanto, enfraquecemos. Política e filosoficamente nos atrofiamos. Não lemos, a não ser que seja primordial ao crescimento profissional, mesmo sabendo que fontes gratuitas de literatura estão ao alcance. Especializamo-nos em uma área e nos tornamos mercenários, o que vai na direção oposta ao pensamento da Grécia Antiga ou do Renascentismo, no qual um mesmo indivíduo buscava dominar a arte, a matemática, a filosofia e a anatomia.
A filosofia das duas rodas
Este relativamente longo e incomum antelóquio não é um desabafo de um angustiado sujeito de esquerda. Por mais que meus estudos marxianistas tenham me embrutecido, ainda posso pensar como Comte ou um neoliberalista, muito embora não concorde com a visão de sociedade destes indivíduos. Se os organismos vivos evoluem, como prerrogou Darwin, o organismo social consequentemente também evolui. Não sou tolo a ponto de querer retroceder a humanidade à “era das cavernas”. O que almejo, na verdade, é aventar um modo de pensar – uma filosofia, se preferirem – que restaure o antigo lado crítico de cada ser humano valendo-me de recursos possibilitados pela modernidade. Pretendo indicar caminhos que nos façam reaver a polivalência humana.
Os pormenores da estrada
Carecemos de pequenas revoluções. Sobre uma motocicleta posso desencadear uma. Meu “motim” não é significativo para muitos e por este motivo o proclamo “pequeno”. Parto do princípio – similar ao de Guevara – de que um povo acrítico é um povo facilmente dominável. Quero mudar este quadro. Quando me proponho a viajar, previamente pesquiso a história, o relevo, o clima, a fauna, a flora e a economia dos locais que visitarei. Sei que uma cidade não se edifica ao acaso, e sim por uma sucessão de fatos históricos. Nas poucas vezes em que estou acompanhado exijo o mesmo de meus companheiros. Um professor, desta forma, de repente se transforma em professor, motociclista, geógrafo, biólogo e historiador. Múltiplos conhecimentos: este é o caminho para minimizar nossa “ignorância”. Que todos vejam através da negra cortina que seus diplomas acadêmicos e técnicos dispuseram diante de seus olhos! Posso sofrer críticas dos mais conservadores ou me passar por pedante pelos acadêmicos. Não há lacuna para temores. Os grandes mártires e líderes revolucionários nunca foram totalmente compreendidos. Por que eu, um simples professor com uma incipiente micro-revolução no coldre, seria?

Múltiplos conhecimentos são adquiridos no simples ato de viajar

Acidentes no Rastro
Atenhamo-nos agora à viagem.
Rodrigo e eu, com apenas dois dias disponíveis, decidimos, após algumas enfadonhas trocas de argumentações, viajar até Curitiba por um caminho nem um pouco ortodoxo: o Rastro da Serpente. O atrativo principal da viagem não seria a capital do Paraná e seus bem estruturados parques em si, mas sim a própria estrada e suas traiçoeiras curvas. Poderíamos, ademais, encontrar alguma garbosa atração no decorrer das mesmas.
Alusão ao Rastro em Apiaí
Partimos de Americana às 7 da manhã, momentos após eu ter fotografado um Gavião-Carijó agarrado à antena de TV de uma casa vizinha. Seguimos pelas já conhecidas SP-304, Rodovia do Açúcar, SP-127 e Raposo Tavares. Passamos, dentre outras cidades, por Santa Bárbara d'Oeste, Tupi (distrito de Piracicaba), Tietê, Cerquilho, Tatuí e Itapetininga. Desta última nos dirigimos à Capão Bonito. Nesta localidade se principiava a rodovia que tanto desejávamos conhecer: a SP-125/BR-476, também conhecida como O Rastro da Serpente.

Portal de Apiaí

Ribeira
Muitos motociclistas admiram esta estrada pela complexidade do seu desenho. As curvas acentuadas, que chegam a incríveis seis por quilômetro, exigem muita perícia e cuidado do condutor, principalmente no trecho entre Capão Bonito e Ribeira, passando por Guapiara e Apiaí, todas cidades do estado de São Paulo. O asfalto aqui se encontra criticamente avariado. A combinação de pedras soltas, crateras, areia e neblina pode causar sérios acidentes. Devido a um deles – uma carreta tombada – fomos obrigados a aguardar por cerca de trinta minutos para prosseguir viagem.
O Vale do Ribeira
Meus motivos para trilhar esta rodovia são outros. O principal deles é por estar situada no Vale do Ribeira, região que abrange 22 municípios do estado de São Paulo e 9 do Paraná. Sessenta por cento de toda a mata atlântica brasileira subsiste nestes certames. Foi em meio a esta densa vegetação que Carlos Lamarca, capitão dissidente do Exército Brasileiro, se propôs a treinar 16 aspirantes a guerrilheiros em 1970. Visavam, com este treinamento, desbancar a ditadura militar e instaurar o socialismo no Brasil através da luta armada. Devido ao cerco imposto pelo Exército e pela Aeronáutica foram obrigados a debandar e a modificar o plano original. Lamarca seria morto no sertão da Bahia dois anos depois.

Paisagem da zona rural de Adrianópolis

Rio Ribeira de Iguape
O rio Ribeira de Iguape naturalmente delimita a fronteira São Paulo/Paraná. Cruzamos a ponte sobre ele e adentramos o estado paranaense, mais precisamente o município de Adrianópolis. Nossa intenção era chegar à Tunas, cidade na qual está inserido o Parque Estadual de Campinhos. Alcançamos o destino às 15 horas. Contudo, para o nosso infortúnio, todos os hotéis e pousadas estavam abarrotados. Encontramos guarida em Bocaiúva do Sul, alguns quilômetros à frente, após um cansativo, mas meritório percurso. A serra, vista por esporádicas paradas nas curvas do “rastro”, contrabalançou o desgaste físico ocasionado pelos movimentos bruscos necessários à pilotagem por estes recônditos.
Ópera de Arame e Cachoeira
O dia 18 amanheceu congelante. Rodrigo, que ainda não conhecia Curitiba, me instou a visitá-la. Devido ao curto tempo de que dispúnhamos, rapidamente vencemos os 27km entre Bocaiúva do Sul e a capital, passando por Colombo, apenas para visitar a Ópera de Arame, espaço cultural construído em estrutura tubular sobre um local onde antigamente funcionava uma pedreira. Uma cachoeira de dez metros e um lago repleto de carpas embelezam este que é, juntamente com o Jardim Botânico, um dos cartões-postais mais conhecidos da bem planejada cidade de Curitiba. A avifauna e a vegetação nos arredores da ópera chamam igualmente a atenção. Pude visualizar e fotografar, inclusive, uma saracura-três-potes, ave que havia visto anteriormente somente no Pantanal Norte.

Bocaiúva do Sul

Gruta dos Jesuítas
De Curitiba principiamos o regresso. Retornamos pelo Rastro mesmo, ignorando o caminho corriqueiro pela BR-116. Localizamos a estrada de terra – estrada de chão, como dizem os paranaenses – que conduz à entrada do Parque Estadual de Campinhos a 8km do perímetro urbano de Tunas. Dentro do parque exploramos e fotografamos a Gruta dos Jesuítas, caverna com aproximadamente 1400m de comprimento. É considerada a quinta maior caverna do estado. A ausência de luz aumenta à proporção de cada passo em direção ao interior desta magnífica obra que vem sendo lentamente esculpida pela natureza. É importante salientar que Campinhos – e seus 337 hectares de área – é o primeiro parque estadual concebido com o intuito de preservar a riqueza espeleológica do Paraná.
A "serpente" entre a serra
Deixamos Campinhos e enfrentamos novamente o Rastro da Serpente. Voltamos para os nossos lares praticamente pelo mesmo caminho de ida. A única alteração se deu na parte final do trajeto, na qual adentramos a SP-101, passando por Rafard e Capivari. Chegando à Rodovia do Açúcar nos separamos: Rodrigo seguiu pela 101 para Campinas; eu pela Comendador Américo Emílio Romi em direção à Santa Bárbara e posteriormente à Americana via Luiz de Queiroz. Foram, no total, 1100km percorridos em dois dias, por dois estados e por uma rodovia histórica que merece o respeito e a parcimônia de todos os condutores de veículos motorizados que ousam transpassá-la.
Entender a totalidade do mundo é uma tarefa complicada, uma ambição. Os fenômenos são interligados e a compreensão de todos é deveras complexa. Falhar neste intento é esperado. Entretanto, ater-nos apenas a conhecimentos de determinadas áreas nos garante o rótulo de experts, mas nos priva de outras sensações propiciadas pela polivalência humana, aquela mesma que inutilizamos em algum momento da nossa nefasta História. Passei por onde Lamarca e inúmeros outros brasileiros e estrangeiros estiveram. Melhor dizendo, passei por locais históricos e tomei conhecimento de todos os seus “segredos”. Consequentemente, deste momento em diante, arraigo-me também nesta história. Sou, agora, parte dela.


Mais fotos aqui.

E abaixo um blues em homenagem ao Vale do Ribeira e a todos os brasileiros perseguidos pela ditadura militar entre os anos de 1964 e 1985.

sábado, 3 de setembro de 2011

Pedra Azul, Vitória e Vila Velha – de 26 a 30 de agosto de 2011


Em uma das escolas que leciono, noto amiúde o ato de auto isolamento de um dos funcionários responsáveis pela faxina. Ele está sempre presente, dialogando ridentemente conosco durante o almoço. Porém, logo após a refeição, o homem de meia-idade se esvai. Busca refúgio nas imediações da caixa d'água da unidade de ensino, onde vagarosamente saboreia uma fruta, numa rotina que apelidei de “a sobremesa do eremita”. Muitas vezes a curiosidade nos encoraja a desmistificar, a perguntar, a querelar. No que se refere à ritualística deste nobre homem, garanto, minha curiosidade é obstruída pela compreensão dos fatos. Nunca quis realmente saber os motivos que levam este ser humano a “fechar-se em seu casulo” por alguns minutos. Simplesmente procuro entendê-lo passivamente, pois, no imo, considero-me semelhante a ele. A diferença é que busco a soledade em locais diversos, já que a mesma paisagem é capaz de me oferecer alento apenas uma única vez.
Ponte Rio-Niterói
A ideia de viajar para o Espírito Santo, estado que até então não conhecera, eclodiu de desencontros no planejamento de uma incursão para Foz do Iguaçu, no Paraná. De supetão, uma viagem ao sul do Brasil, para dois, metamorfoseou-se em uma viagem ao nordeste da região sudeste, para um. Mais uma vez eu e minha motocicleta, numa teimosa e resistente simbiose, nos embrenhamos por caminhos há muito existentes, mas que até então permaneciam desconhecidos às nossas vistas. Assim disse, um dia, o camarada Levi.
Casimiro de Abreu
Parti de Sumaré, após o já tradicional café pré-viagem com Mariângela, às 12:30h do dia 26 de agosto. Decidido a ganhar terreno para aproximar-me o máximo possível do Espírito Santo, logicamente com vistas a tornar a peleja do sábado menos desgastante, segui pelas rodovias Anhanguera, Dom Pedro e Dutra, alcançando o município de Piraí/RJ às 17:40h. Neste ponto principiava-se a descida da Serra das Araras. Entretanto, a caída da noite somada a minha vociferante prudência me obrigaram a pernoitar às margens da BR-116 em um reduto de toxicômanos, meretrizes e caminhoneiros boêmios. "Olhando de perto, a vida é bem feia". Certo, André Vianco?

Primeira imagem do Espírito Santo, às margens do rio Itabapoana

Cariacica/ES
O sábado, dia 27, amanheceu chuvoso, mórbido. Desci a serra e, para o meu desalento, ao pé da mesma o cinza permaneceria. A chuva, contudo, cessara. Numa boa toada cruzei por Nova Iguaçu e Rio de Janeiro. Na capital fluminense trespassei a ponte Rio-Niterói – e seus pouco mais de 13km – observando a Baía de Guanabara e seus cargueiros. Do outro lado, em Niterói, localizei rapidamente a BR-101, permanecendo na mesma até o município de Cariacica/ES, passando, dentre outras cidades, por Casimiro de Abreu/RJ, Campos dos Goytacazes/RJ e Iconha/ES, e também, logicamente, pela divisa  do Rio de Janeiro com o Espírito Santo, demarcada naturalmente pelo rio Itabapoana. Cariacica foi meu “quartel general” por duas noites. Próxima à Vitória e à Domingos Martins, logística e geograficamente me foi prestimosa.
Rota do Lagarto
No dia 28 rumei para Domingos Martins/ES, pacata cidade da serra capixaba colonizada por alemães, pomeranos e italianos. O aspecto europeu de seu portal rendeu algumas fotos, mas o meu objetivo, na verdade, era conhecer Pedra Azul, distrito que dista cerca de 30km da sede da cidade via BR-262 (sentido Belo Horizonte). Prestamente alcancei o local almejado, adentrando, após deixar a 262, a Rota do Lagarto, estrada de paralelepípedos que direciona o viajante à cancela de entrada do PEPAZ (Parque Estadual da Pedra Azul). A vista de uma das curvas da Rota impressiona. A Pedra Azul (que empresta o nome ao distrito), e também a Pedra do Lagarto “escorada” a ela, dão laivos de sua beleza mesmo a muitos metros de distância. A imponência destas obras da natureza me afetam da mesma forma que os grandes ditadores um dia sonharam em afetar os seus subordinados.

A Pedra Azul vista a partir de uma das curvas da Rota do Lagarto

A Pedra Azul
Dentro do parque, às 9 da manhã, eu e um “préstito” de Porto Real/RJ partimos pela Trilha do Cedro Sentado acompanhados pelo guia “Manda-Chuva”. O delgado homem, munido de seus conhecimentos sobre a flora e a fauna locais e respaldado por 26 anos de trabalho dedicados ao parque, transformou o caminho ao “pé” da Pedra Azul em momentos de pura Educação Ambiental. Mostrou-nos inclusive fezes de Jacu crivadas de grãos de café, alimento primário da ave. Esses grãos semidigeridos são extraídos do excremento e, a posteriori, vendidos por cerca de R$300,00 o quilograma. Bizarrices à parte, alcançamos a base da Pedra Azul e, para o nosso deleite, o tom verde era mais evidente do que o azul.
Pedra do Lagarto
A Pedra Azul – e aqui parafraseio “Manda-Chuva” – está inserida no PEPAZ, como já mencionado, parque com apenas 5% de seus 1240 hectares abertos à visitação. O ponto culminante se encontra a 1822 metros acima do nível do mar. Seus 600m de altura – e também a Pedra do Lagarto – são oriundos da solidificação do magma expelido de um vulcão há milhões de anos. É possível identificar inúmeras crateras próximas ao topo, algumas se prolongando por cerca de 8 metros pedra adentro, formando verdadeiras cavernas. Sua composição é basicamente granito e gnaisse revestidos por líquens. Em razão disso é bastante suscetível aos raios solares. Estes, no decorrer do dia, incidem em variados ângulos sobre a superfície da pedra, que por sua vez responde refletindo variadas cores. É azul na maior parte do tempo, mas também é comum visualizar tons de verde e, segundo o guia (não pude verificar pessoalmente), tons de amarelo.

Cachoeira do Zeca

Cachoeira da Matilde
Cinco meses de estiagem castigam a região da Pedra Azul. Das 23 nascentes de rios dentro dos domínios do parque, apenas 3 subsistem. Piscinas naturais, que em outros tempos foram uma grande atração, hoje não passam de poças d'água barrenta. Sem mais o que conhecer, então, decidi retornar à 262 e “descer” para Alfredo Chaves, município que abriga a Cachoeira da Matilde e sua volumosa queda livre de 63 metros. No caminho conheci uma cachoeira menor, a do Zeca, de proporções idênticas às encontradas em São Thomé das Letras/MG, e a Estação Ferroviária de Mathilde. No retorno à Cariacica, próximo ao findar do dia, adentrei ainda uma curta estrada de terra, ramificação da cidade de Domingos Martins, que “desemboca” na popular Cascata do Galo.
Vitória vista do convento
No dia 29, após algumas conversas com as recentes amizades de Cariacica, determinei-me a desbravar o litoral capixaba. De Vitória à Marataízes, no extremo sul do estado, passando por Guarapari, Anchieta e Piuma, tive como única companhia a Rodovia do Sol (ES-60), responsável pela unificação rodoviária das cidades praianas do estado. Fotografei a parte moderna da capital a partir da Ilha do Frade, seguindo posteriormente à Vila Velha pela Terceira Ponte. Subindo sofregamente – e a pé – a ladeira da penitência e seus íngremes 457 metros, que dão acesso ao Convento Nossa Senhora da Penha, tive uma visão panorâmica da Grande Vitória, além de presenciar o que a fé religiosa é capaz de aflorar nos devotos. Vale ressaltar que o convento foi edificado em 1558 no topo do Morro do Moreno, hoje importante reserva de mata atlântica.

Convento Nossa Senhora da Penha

Ponta da Fruta
Algumas praias me chamaram a atenção no decorrer da bela Rodovia do Sol. A de Guanabara, em Anchieta, foi uma delas. Essa praia, que conta com uma base do TAMAR, é área de desova de tartarugas da espécie cabeçuda. Nela não há quiosques, vendedores ou quaisquer apetrechos comuns às praias populares. É sobretudo um refúgio animal e vegetal, já que a restinga do local é relativamente bem preservada. Para o meu azar não consegui fotografar animal algum ou mesmo conversar com a equipe do TAMAR, uma vez que as portas da sede por algum motivo se encontravam cerradas. A Ponta da Fruta, ainda em Vila Velha, é outra praia com um apelo visual muito grande. A forma de suas orlas lembram a logomarca de uma famosa rede de restaurantes fast-food de origem estadunidense.
Praia de Guanabara
Ao chegar à Marataízes, cidade próxima do estado do Rio de Janeiro, iniciei o árduo ato do regresso. Cruzei todo o Espírito Santo, de leste a oeste, até o município de Ribeirão das Dores, na divisa com Minas Gerais. As estradas entre o Rio Preto – divisa natural entre Espírito Santo e Minas Gerais – e Cachoeiro do Itapemirim (cidade natal do "rei" Roberto Carlos) foram as mais marcantes de todos os meus anos motociclísticos. Curvas e mais curvas serpenteiam em meio à Serra do Caparaó, palco de guerrilhas na época da ditadura militar, entorpecendo meus olhos com a vista da segunda maior cota de altitudes do território brasileiro com média de 997 metros, perdendo apenas para a Serra do Imeri, na divisa do Brasil com a Venezuela. 

Um último olhar à serra do mar capixaba

O regresso
A primeira cidade de Minas Gerais por esta via, Espera Feliz, foi meu último local de pernoite. Nela pude comer decentemente após quatro dias vivendo de petiscos em postos de combustível. É engraçado, para não dizer estranho, como nos debilitamos fisicamente quando mostramos propensão à busca de novos “elixires da alma”. Parece que ganhamos, por um lado, mas perdemos por outro. Se o gosto da derrota é parecido com o que sinto nestas condições, que eu sempre saia derrotado. Parafraseando um outro camarada, este saudoso, cada cicatriz é uma vitória.
Espera Feliz/MG
O dia 30, véspera de meu aniversário, foi dedicado inteiramente às estradas de Minas Gerais. Parti de Espera Feliz às 7 da manhã. Americana, meu destino, foi alcançada às 19h. Nenhuma foto; apenas o vento e as paisagens serranas. Passei desatenciosamente por Carangola, Fervedouro, Miradouro, Muriaé, Laranjal, Leopoldina, Maripá de Minas, Bicas, Juiz de Fora, Lima Duarte, Caxambu, São Lourenço, Carmo de Minas, Pedralva e Pouso Alegre. A Fernão Dias e a Dom Pedro foram, então, um caminho natural a seguir até minha cidade natal. Foram, ao todo, 2700km rodados pelos quatro estados da região sudeste e boas imagens registradas pela minha câmera. Devo admitir que me surpreendi com a estrutura e com o povo do Espírito Santo. Moraria em qualquer uma das cidades em que estive. Mais do que fotografias amadoras, trouxe comigo, lapidadas em meu âmago, ternas impressões. 
Estar sozinho não é um escape. Em um mundo no qual perder a fé nos seres humanos é cada vez mais natural, isolar-se ocasionalmente pode ser uma forma de manter a sanidade e de angariar novas esperanças de uma convivência mais solidária com nossos semelhantes. Estar sozinho é um ensejo de sentir o amparo de pessoas que veementemente admiramos, que respeitam nossos momentos de isolamento; pessoas que estão conosco, presentes, mesmo que estejamos distantes. Estiveste certa o tempo todo, Caju: a solidão é física. Tive a noção exata do que me disseste, curiosamente, contemplando a paisagem na Ponta da Fruta. Carrego, ademais, essa força interior, esse ímpeto em ora ou outra deixar tudo para trás. Antagonicamente, para o meu bem e para o bem de meus próximos, tenho a obstinação de sempre volver e disseminar as boas novas. Deixe-se inspirar, monami.
 

Mais fotos aqui.  

E abaixo, um blues para o Espírito Santo, em especial para a Pedra Azul e para esta curta jornada.