Nem só de grandes viagens é feito um viandante. As consideradas curtas são mais apreciativas, embora aos mais ambiciosos caiba refutar, pois tanto a chegada ao destino quanto os caminhos alternativos de regresso são rápidos, conhecidos há muito pelas perambulações corriqueiras ou a trabalho, ensejando um tempo maior de exploração do local pretendido. Costumo dizer, para solidificar minha teoria, que grandes incursões fortificam o caráter de um homem, pois exigem do mesmo pertinácia de espírito e resistência física. As pequenas, por outro lado, moldam, aguçam, aperfeiçoam os sentidos, que não são estacionários, como muitos podem pensar. São, pelo contrário, suscetíveis ao treino e, em consequência, a melhoramentos. Frequentemente, em uma longa jornada, nos privamos de descansar à sombra de uma frondosa árvore e de observar, serenamente hirtos, os traços irregulares de uma cadeia de montanhas no horizonte, uma vez que o objetivo final ainda está distante e o tempo é escasso. Nas mais curtas, para-se onde por bem parar entende-se, já que o tempo não é um fator tão limitante. Enfim, embora minhas explanações sobre ambas possam parecer antagônicas e confusas, reitero que são complementares entre si. Um completo caminhante depende de suas águas duais para preencher um hiato na vida que, em sua grande parte, é alienada, apartada do que mais o apraz.
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Caminhos que nos levam |
Todos os habitantes da nossa famosa RMC (Região Metropolitana de Campinas) concordam que os nossos redutos naturais, sejam eles de qualquer espécie, rareiam-se. Rios estão condenados, a fauna foi dizimada ou escorraçada para outras regiões e o que resta da vegetação nativa convive, ombro a ombro, com a indesejada monocultura da cana. É um quadro desolador para quem procura, sempre que pode, manter uma certa distância da agitação burocrática e do ambiente acinzentado dos grandes centros urbanos de Americana, Sumaré, Hortolândia, Santa Bárbara d'Oeste e Limeira, só para citar alguns. Não obstante, uma breve pesquisa nos mapas da metrópole campineira é suficiente para encontrarmos algo interessante. Delineia-se, a nordeste, uma área em que a cor verde predomina. Não é um jardim botânico artificial nem tampouco um parque ecológico de grandes dimensões. Trata-se de um triângulo imaginário formado pelo minúsculo distrito de Joaquim Egídio e as cidades de Morungaba, a leste, e Pedreira, ao norte, dentro do qual figura a chamada Serra das Cabras. Nesse cenário, onde os limites entre os municípios se camuflam em meio a resquícios de mata atlântica e incontáveis fazendas coloniais cujas origens remontam ao Ciclo do Café, no começo do século XIX, nos aventuraríamos em busca de cenários ainda desconhecidos de grande parte da população circundante. Recrutei, para acompanhar-me, Luana Romero, sempre ávida, engarupada em minha moto, esbanjando resistência e um olhar afiado à detecção de pequenos pássaros, répteis e mamíferos nas vias em que a necessidade de pilotar cautelosamente me impede de desgrudar os olhos da estrada, e Thiago Lucas Santos, cúmplice de outras aventuras pelo litoral paulista e pela Serra da Mantiqueira.
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Rio Atibaia |
Deixamos a Praia Azul, em Americana, às 8:30h de um domingo nublado típico de verão. Ignorando as previsões climáticas, que apontavam para uma possibilidade de 80% de chuva, aceleramos pela Anhanguera até o acesso a Dom Pedro, rodovia essa que nos conduziu pelo perímetro da cidade de Campinas. Com mais de 1 milhão de habitantes, a metrópole interiorana é maior do que a maioria das capitais de Estado brasileiras. Para se ter uma noção, Campo Grande, a bela cidade morena, capital do Mato Grosso do Sul, tem pouco mais de 800 mil. Afastando-nos da área mais urbanizada, passamos pelo acesso ao distrito de Sousas e adentramos o próximo, atravessando uma ponte sobre o sereno rio Atibaia, que nasce da confluência dos rios Atibainha e Cachoeira, entre Atibaia e Bom Jesus dos Perdões, alguns quilômetros ao leste. É, juntamente com o Jaguari, formador do rio Piracicaba, na região do Salto Grande, em Americana, praticamente no “quintal de minha casa”, como gosto de falar. Uma placa alertava à presença do temido carrapato estrela em sua escassa mata ciliar, mas isso parecia não dissuadir o ímpeto de incautos pescadores que se embrenhavam à procura de um bom lugar nas pedregosas barrancas para alocar suas tralhas. A febre maculosa, transmitida por esse aracnídeo hematófago que geralmente parasita capivaras, é potencialmente fatal. Enfim, cada um enfrenta o perigo que julga necessário ao encontro de um sentido para a vida. Lembrei-me das palavras de um imperturbado mineiro que, por horas a fio, imóvel, pescava nas barrancas do rio São Francisco, em Três Marias. “Cê nunca vai entender o que eu faço aqui parado, meu filho, assim como eu nunca vou entender o que cê faz por aí, de um lado pro outro, inquieto, em cima de uma moto. Muita gente acha que ter atitude é agir com energia e nunca parar. A minha atitude é o oposto. É uma atitude estática, uai”, disse ele.
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Estrada da Bocaina |
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Ao fundo, a Serra das Cabras |
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Seriemas |
A estrada que se segue após a ponte é de um chão batido de consistência semelhante à do asfalto. Sem emoções, em suma. Vencendo-a, entrecortamos o distrito campineiro de Joaquim Egídio, antigamente conhecido como Bairro do Laranjal, e nos dirigimos incontinenti para uma outra estrada de chão, a da Bocaina, a primeira ao sul na vicinal Campinas-Morungaba. Ladeada primeiramente por extensas pastagens e sítios, começa a metamorfosear-se à medida que se aproxima das margens do sempre presente rio Atibaia. Surgem eucaliptos, que impregnam o ambiente com seu aroma peculiar, casais de seriemas ressabiados pelo transitar de nossas motocicletas, sedes de fazendas coloniais do ciclo cafeeiro e, mais notavelmente, os desenhos dos píncaros da Serra das Cabras, nosso escopo, bem ao longe. Em um determinado momento, cercas vivas naturais chamaram a nossa atenção. Talvez escondessem apenas mais uma fazenda. Um grande portão de madeira, entreaberto, nos convidou a uma espiada. Entramos, sorrateiros, visando fotografar o máximo possível até que alguém nos advertisse. Tratava-se do campo de golf da Fazenda Guariroba, esporte praticado pela elite financeira do mundo todo. São greens imensos, com aparagens de diversas alturas, divididos por um regato artificial que desemboca diretamente no rio Atibaia, esse emparedado, na margem oposta, por um monte de rala vegetação e de um verde mais escuro que o do campo. Embora seja um ambiente elitizado e artificial, não há como não enaltecer o zelo e a maestria com que são cuidados esses palcos esportivos. Saímos incólumes dali, ferindo com pesadas botas um gramado que acostumou-se historicamente com a delicadeza de refinados sapatos italianos.
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Fazenda Guariroba |
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Campo de golf |
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Regato artificial que desemboca no rio Atibaia |
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Capela abandonada |
Continuando pela mesma estrada, passamos por uma antiga capela abandonada, de feição assombrosa, e topamos com a Usina Hidrelétrica de Salto Grande, recentemente tombada como patrimônio cultural de Campinas. A casa das turbinas, construída em pedras, mesclam o passado, notável em sua arquitetura, e o presente, visto em seus modernos motores de refrigeração externos. Recebe três imensos tubos de ferro, provenientes da barragem, pelo qual a água do rio Atibaia corre, em declive, rumo às turbinas que geram energia desde a primeira década do século XX. Figura entre as dez primeiras usinas hidrelétricas do país, instalada em uma cidade pioneira em iluminação urbana. Conheci, no ano de 2011, juntamente com Rodrigo Gil e Luiz Paulo Blanes, a primeira do Estado de São Paulo e segunda do Brasil e da América Latina, a Usina do Monjolinho, em São Carlos, mas eu diria que essa é melhor aparentada e preservada, apesar de historicamente menos interessante em nível nacional. A estrada de chão a beiradeia, mas um amontoado de pedras impossibilita que se siga, de moto, por essa via. Alguns ciclistas passaram por nós, ergueram suas bicicletas e continuaram na trilha. Infelizmente não conseguiríamos fazer o mesmo com nossas pesada motos. Thiago, contumaz, tentou subir, arriscando danificar partes vitais do motor, mas estancou, não indo para frente nem para trás. Após muito esforço conseguimos manobrar a bichana entre as pedras e retornar aos portões da usina. Como última lembrança do lugar, registramos um besouro, de carapaça de um vermelho vívido, que subia, pelas gramíneas, em direção às úmidas rochas que atravancaram nosso caminho.
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Usina Hidrelétrica de Salto Grande |
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Casa das turbinas |
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Besouro-vermelho |
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Joaquim Egídio: herança cafeeira |
Voltar pela mesma estrada não é algo que eu aprecie muito, mas as circunstâncias nos obrigaram a tal. Como um aditivo para o meu inconformismo, a chuva, mesmo que na forma de garoa, deu as caras. Procuramos abrigo em Joaquim Egídio, no átrio da igreja de São Joaquim e São Roque, construída em 1926, na última década do Ciclo do Café. Por mencionar esse período, foi nele que o Bairro do Laranjal, nome com o qual era conhecido à época, começou a ser efetivamente povoado, a partir da demanda da Fazenda Laranjal, tanto por trabalhadores paulistas como por europeus, que se instalaram na região e alavancaram-na. O café, considerado o ouro paulista do século XIX, trouxe desenvolvimento e afetou toda a dinâmica local. Nesse pano de fundo surgiu a iluminação pública, até então uma utopia mesmo nas grandes cidades como a capital Rio de Janeiro. Primeiramente foi produzida a vapor, e posteriormente por usinas como a de Salto Grande. A ferrovia e os bondes, a partir das duas últimas décadas do século XIX, foram concebidas com o intuito de escoar a produção das fazendas, que não era pequena. A herança de toda essa história é um casario antigo e bem preservado, que atualmente alberga restaurantes refinados e que, obviamente, não entraram no nosso roteiro. Enquanto caminhávamos pelas ruas, aguardando o cessar do gotejo dos céus, apreciamos a arquitetura ímpar, difícil de se encontrar nas modernas cidades da RMC. Destacamos um prédio que abriga a subprefeitura de Campinas, onde antigamente funcionava uma alfaiataria. Retornando à igreja, reavemos nossas motos e nos pusemos de volta na rota traçada. A chuva cessara.
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Igreja de São Joaquim e São Roque, de 1926 |
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Prédio da subprefeitura, antigamente uma alfaiataria |
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Casebre de taipa de pilão |
Pelo asfalto da SP081, de reconhecido valor paisagístico, nos dirigimos aos píncaros da Serra das Cabras. Testemunhamos um importante trabalho de plantio de mudas nativas nas margens da rodovia, conhecida popularmente pelo nome Campinas-Morungaba, ou Sousas-Morungaba. Um casebre de taipa de pilão, solitário e deteriorado, na margem esquerda, clamava por um registro. Sedes de grandes fazendas se distribuem nos arredores, e nos trechos de subida de serra desaparecem, dando lugar a curvas sinuosas e a uma mata mais densa. Não há acostamentos. Luana, com um sutil tapa em minha perna direita, sinalizou ter visto algo. Imediatamente dei meia volta e retornei alguns metros. Em uma goiabeira, alimentavam-se dos frutos já maduros um bando de saguis-de-tufos-pretos, os mesmos encontrados às margens do rio Mogi Guaçu. Foi difícil fotografá-los. Se movimentam muito rapidamente, caminham sobre os fios de energia elétrica e se escondem entre as folhagens, tornando o simples ato de focar um exercício de paciência. Por fim, conseguimos um único nítido registro desse ser que habita diversos tipos de vegetação, como o cerrado e a mata atlântica, mas que também subsiste, como o onipresente urubu-de-cabeça-preta, em locais desfigurados pelo homem, o mesmo que muitas vezes o aprisiona e o vende ilegalmente, escravizando-o e apresentando-o à solidão, a qual não está habituado por viver em bandos enormes, com mais de dez indivíduos. Contamos, no que vimos, pelo menos sete. Lembrei-me mais uma vez do pescador do Velho Chico. Se me quedasse parado, vendo um rio passar, certamente não me desapontaria cada vez mais com meus semelhantes.
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Urubu-de-cabeça-preta, sempre uma presença marcante |
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Sagui-de-tufos-pretos |
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Pôneis na Serra das Cabras |
Em uma bifurcação, o asfalto acabou. Terra para a esquerda, sentido Morungaba; terra para a direita, subindo definitivamente a Serra das Cabras. Optamos pela segunda opção. Como bônus, se tempo nos restasse, desceríamos e encararíamos a primeira. Ascendemos pelo pedregulho e por íngremes ladeiras e rapidamente chegamos ao topo da serra, o chamado Monte Urânia, no qual se encontram as instalações do Observatório Municipal de Campinas, ou Observatório de Capricórnio. Uma imensa arquibancada, aparentemente abandonada, deve servir (ou serviu) como um local de observação a olho nu para a identificação de estrelas e constelações. Obviamente esses mesmos corpos celestiais podem ser vistos pelo telescópio aqui instalado, no ponto mais alto de Campinas, com altitudes beirando os 1100m. Porém, ainda era dia, o céu estava nublado e não poderíamos desfrutar naquele momento de toda a estrutura oferecida pelo observatório. Enviesamo-nos, então, por uma propriedade particular, na qual funciona uma pequena cantina, e mediante um pagamento de R$5,00 cada pudemos andar livremente pelo topo de Campinas, onde formações rochosas peculiares atiçam a imaginação. Pôneis e vacas pastam solenes, como diria Rodrix, mas cabras, que segundo consta serviram de inspiração para a nomenclatura da serra, não deram o ar da graça. Esqueci-me de perguntar ao proprietário, mas talvez nem existam mais ali. O cenário, contudo, do qual o cerrado é mero coadjuvante, existe, e ele palmilharíamos.
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Cerrado e formações rochosas no Monte Urânia |
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Observatório de Capricórnio |
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Conjunto rochoso |
Um “mata burro” azul, uma trilha, pedras e mais pedras pelo caminho e um odor característico do cerrado sucessivamente nos levaram a um amontoado de rochas seculares lapidadas pelo tempo, pelo vento e pelas intempéries. Dentre elas se destacam duas: a da Águia e a da Agulha. A primeira, um bico aquilino com 6 ou 7 metros de altura, e a segunda, uma torre ainda mais alta, vertical, de quase 10 metros de altura. Em volta delas há ainda outras de silhuetas menos interessantes. Com algum esforço é possível escalar, sem apetrechos de rapel, a Pedra da Águia, mas não a da Agulha. Logo abaixo, descendo pelo mato, há uma outra propriedade particular, cercada, e então volvemos um pouco para adentrarmos uma outra trilha, que nos introduziu em uma mata fechada e depois calhou em uma plataforma natural conhecida como Pedra Mor. A partir dela se obtém uma bela vista da rodovia Dom Pedro, das cidades de Itatiba e Jundiaí e da face norte da Serra do Japi (vimos a sul na última viagem rumo ao Morro do Voturuna, que pode ser acessada aqui). Imediatamente abaixo, um vale preenchido por uma mata atlântica densa esconde ribeirões que nascem ali mesmo, no alto da Serra das Cabras, e descem como afluentes do rio Atibaia, suprindo a demanda de água nas fazendas locais no decorrer de seus breves cursos. Por estarmos sós num local nem tão alto, mas bem acima do nível onde as cidades da região foram construídas, fui insuflado por uma serena paz, a mesma que eu idealizara quando resolvi traçar uma rota essencialmente “verde” em uma cidade notadamente “cinza”, como é o caso de Campinas. Por falar na metrópole, estávamos já na sua divisa com Morungaba, uma vez que a Serra das Cabras naturalmente demarca os limites entre as duas.
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Pedra da Agulha e Pedra da Águia |
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Itatiba, Jundiaí e a Serra do Japi vistas da Pedra Mor |
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Pedra Mor |
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Zona rural de Morungaba |
Com tempo de sobra e com mais nada a fazer no alto do Monte Urânia, instaurou-se o momento bônus da curta incursão. Não sabíamos bem o que encontrar nas incertas e perigosas estradas barrentas entre Campinas e Morungaba. Pedreira, que mencionei no começo da postagem, no fim das contas foi deixada de lado, e acabamos nos concentrando mais na ponta leste do triângulo. Na bifurcação mencionada há pouco, valendo-nos da nova abordagem, seguimos dessa vez pela esquerda, passando por sedes de fazendas abastadas e pequenas montanhas salpicadas, como corriqueiro na região, por rochas graníticas arredondadas. Logo após o casarão da Fazenda Paineiras e um túnel natural formado pela vegetação alta e de copa curvada, um mar de lírios-do-brejo surgiu diante de nossos olhos, um jardim natural sensorialmente extasiante. Mais à frente, escapando incólumes dos escorregões oportunizados pela lama, uma pequena represa com eucaliptos ao fundo foi também digna de contemplação. Sem querer nos aproximávamos do outro formador do rio Piracicaba, o rio Jaguari. Nos últimos metros, na iminência do fundo de seu vale, uma outra surpresa: imensas torres de comunicação por satélite da empresa Embratel. Por não podermos fotografá-las de perto com alguém servindo como escala, não consegui precisar a altura, mas são tão gigantescas quanto os montes posteriores a elas. Por fim, numa íngreme última arrancada, o Jaguari corria livre em uma parte pedregosa de seu leito. Mais uma vez uma placa alertava à presença do temido carrapato estrela, e mais uma vez ela era ignorada por alguns pescadores.
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"Mar" de lírios-do-brejo |
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Rio Jaguari |
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Torres da EMBRATEL |
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Subindo o vale do Jaguari |
Atravessamos o rio Jaguari sobre uma simples ponte e recomeçamos, a partir da outra margem, a subida do vale. A estrada, sempre uma mescla de terra, buracos transversais e pedras, em alguns momentos era ladeada por cercas de arame farpado, e em outros essas cercas simplesmente desapareciam por falta de serventia, já que magnânimas pedras arredondadas faziam o trabalho. Foi em uma dessas que escalamos para obter uma bela panorâmica do vale que acabáramos de deixar. De quebra vimos, ao fundo, as torres da Embratel, agora diminutas em meio à imensidão verde da zona rural de Morungaba, e a própria cidade de Morungaba, cravada entre a serra. Um céu impar, de nuvens rajadas, exibindo seu azul apenas nas entrelinhas, colaborou com o cenário que, para mim, foi o ápice dessa curta incursão pelos arredores da Serra das Cabras. Tenho certeza que meus companheiros sentiram o mesmo, visto que foi neste ermo que mais nos demoramos. Nem mesmo as passagens, na sequência, pelo bairro rural Areia Branca e sua igrejinha de 1925, no território de Amparo, e pelas imediações do Pico da Fortaleza, já em vias de reencontrarmos, depois de muitos quilômetros, o asfalto, sobrepujaram a complexidade do vale do rio Jaguari, rio que nasce nos cumes da Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais, e vem sendo degradado por todo o seu curso até se unir ao Atibaia, “no quintal de minha casa”, dando vida ao rio Piracicaba, que por sua vez engrandece o rio Tietê, que por sua vez alimenta o rio Paraná, e que por sua vez, no Estuário do Prata, entre o Uruguai e a Argentina, encontra-se com o rio Uruguai e, finalmente, é despejado no Oceano Atlântico. É uma cadeia de encontros que o ser humano, com suas imensas barragens e inconsequente degradação, ainda não conseguiu frear.
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Vale do rio Jaguari |
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A vista mais marcante da viagem |
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Bairro Areia Branca, em Amparo |
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Morungaba e a Mantiqueira |
Alcançamos o centro de Morungaba pela rodovia Engenheiro Constâncio Cintra, e já nos dávamos por satisfeitos quando avistamos algumas placas turísticas que apontavam para um mirante e um cruzeiro no alto da serra que descêramos há pouco. Eram ainda 16:30h e, portanto, subimos mais uma vez a Serra das Cabras, agora pelo lado morungabense. Reitero que esse conjunto de montanhas faz a divisa natural entre Joaquim Egídio (Campinas) e Morungaba. No Cruzeiro, ao lado da base de uma cruz de três metros de altura, vimos a cidade de Morungaba e, bem longe, um naco da Serra da Mantiqueira, essa tão explorada pelos aventureiros desde o ciclo do ouro, anterior ao do café. Ascendendo ainda mais, no tal do Mirante, Campinas se apresentou em seu melhor ângulo: longínquo. Bem longínquo. Os prédios pareciam se acotovelar em busca de espaço. É uma maquete desordenada, e a sua desorganização social advém ou é propiciada por essa também desorganizada disposição pelo planalto. Mais uma vez me arrisco a citar filósofos autônomos que conheci pelas diversas estradas da vida. “As cidades crescem desordenadas não por si sós, mas pelo simples fato de que cabeça dos homens que as concebem também é desordenada. Não há como extrair um mínimo de sanidade da plena loucura”, uma vez me disse um cidadão uruguaio do Chui. Abstrações à parte, arrostamos mais um trecho de terra e calhamos no mesmo local em que estivéramos no meio do dia, o Observatório Municipal, sobre o Monte Urânia, rodeado por toras de eucalipto recém cortadas.
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Campinas vista do alto da Serra das Cabras |
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Observatório Municipal de Campinas |
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Adeus, Joaquim Egídio |
Hora de regressar. Descemos pela última vez a Serra das Cabras, ganhamos o asfalto e atravessamos Joaquim Egídio, que no princípio da noite começava a se abarrotar de jovens, o que me trouxe à cabeça, como em outras ocasiões, a imagem de Santa Maria e da mocidade que lá perdeu a vida. Rodrigo e eu pernoitamos na cidade, nos fins de dezembro, quando seguíamos em direção ao Chui, e aprendemos a admirar seu povo. Agora, com todos imbuídos na recuperação psicológica pós-tragédia, o admiramos ainda mais. Voltando ao presente, passamos pela antiga estação de trem e por um outro distrito de Campinas, Sousas, antes de acessarmos a rodovia Dom Pedro. Na Anhanguera, deixando Campinas em definitivo, atravessamos a Área Cura de Sumaré e o perímetro urbano de Nova Odessa, observando, ao longe, uma Paulínia que acendia suas primeiras luzes na noite do dia 03 de fevereiro. Na Praia Azul, esse bairro tão esquecido, isolado do resto de Americana, pilotamos pelos últimos minutos dessa pequena incursão de 230km. Mais do que imagens inesquecíveis de ermos que primam pela maestria arquitetônica do grande mestre chamado Tempo, ficou evidente o fortalecimento dos laços fraternais entre os companheiros de aventura. Já há um bom tempo não viajo sozinho, e embora minha alma clame por momentos de solitude, vejo a estação como um grande avanço na concepção de mundo das pessoas que me cercam. Logicamente não sou um bom exemplo para ninguém, mas ver meus convivas economizando o pouco que ganham, como eu, para se imbuir no desbravamento do Brasil é algo que me deixa muito orgulhoso. No fim, quero que deem sentido à vida, e se o sentido é parar e ver um rio passar, que seja! Porém, gostaria muito que fosse diferente, como sair por aí conhecendo a História que já passou, o presente que passa e o futuro que não se espera, mas ao qual se vai de encontro.
Andejo, o mundo está aí, a sua volta, e tudo o que ele exige, para dele poderes desfrutar, são pés firmes. Embora tentem te vender ideias, procure, instintivamente ou através do relato de outros andejos, por locais em que a maioria gritante, que consome uma viagem como um mero produto e não a vive, desconhece ou considera inapta para receber “gente”. As grandes paisagens estão em locais não acessíveis por highways, freeways ou qualquer outro tipo de rodovia bem pavimentada. Muitas delas exigem coragem, resistência e teimosia. Muitas delas exigem o real VOCÊ, e não aquele sujeito citadino eivado das falsas aparências que uma vida em sociedade demanda.
Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.
Muito bom! Que vocês tenham muitas oportunidades iguais ou melhores.
ResponderExcluirFelicidades.