sexta-feira, 6 de julho de 2012

Torre de Pedra – 1º de julho de 2012


Ser livre é a utopia dos que se dizem fortes, responsáveis, honrados. Um homem – no sentido humano e não no machista da palavra – não é mensurado pelo número de filhos que cria e educa ou pelo montante de capital que pode levar para dentro de um lar. Há, infelizmente, quem acredite que procriar, consumir, ostentar e esbanjar sejam obrigações de um cidadão. Na contramão de todo este “código de conduta” mesquinho vêm pessoas que simplesmente não se preocupam em chegar a uma certa idade sem ter sob suas asas descendentes, bens imobiliários suntuosos ou lojas como locais preferidos para deixar grande parte de seu dinheiro. Há seres que primam pela troca de experiências, pela vivência de situações diversas e pela aventura, aguardando que todo o resto advenha naturalmente com o passar dos anos. De qualquer forma, guerras entre cautos e incautos, prudentes e inconsequentes e pusilânimes e guerreiros vem determinando as personalidades de nossa sociedade desde o advento da raça humana neste globo absorto na Via láctea chamado Terra. Embora eu flutue ora por um flanco ora por outro, na maior parte do tempo tenho procurado estar em apenas um desses lados. Que ele seja o norte para a minha vida enquanto pelo solo deste planeta eu vagar.
Aos que me pedem diariamente para “sossegar”, que leiam com atenção. A todos os outros, que leiam com mais atenção ainda, pois é para vossas mercês que tenho prazer de escrever.
Companheiros de viagem
A chegada do Inverno, a mais fria e seca estação do ano, trouxe alento para as almas daqueles que sobre duas rodas desbravam o nosso país. A vontade de muitos foi debilitada pelas águas da chuva, fazendo-a escorrer pelos ombros, ganhar o solo e se infiltrar pela terra imediatamente sob a vegetação forrageira circundante. Logicamente não agi dessa forma. Não deixei de levar a cabo minhas andanças por causa das sempre esperadas intempéries. Contudo, devo admitir que tiro muito mais proveito agora, de julho a setembro, pois neste período o vento abdica do cargo de “pastorear as nuvens do céu”, como diriam Almir Sáter e Renato Teixeira, pois simplesmente as nuvens passam a inexistir, já que não chove regularmente. Levi Vieira, Luana Romero, Luiz Paulo Blanes e eu não carecíamos de uma desculpa para viajar, mas foi bom saber que tínhamos uma: nenhuma adversidade de clima. Foi com esta despreocupação em mente que planejamos uma curta rota, abrangendo desconhecidas partes da cidade de Piracicaba, da Cuesta Botucatu e do Rio Paranapanema. A ambição era grande, pois dispúnhamos de apenas um dia e pouco capital. A gripe, que acometera Levi, e a pior das patologias, a desilusão amorosa, que eivara Luiz Paulo, ameaçaram a realização da primeira incursão do inverno de 2012. Com muita galhardia, entretanto, vi meus companheiros derrocarem o mal-estar e permanecerem ao meu lado e ao de Luana para a realização da viagem.
Lagoa do Piva
Logo às 7 da manhã, de um dia em que julho estreava, parti, sozinho, de minha casa. Dirigi-me às imediações do pedágio da Anhanguera, em Nova Odessa, onde marcara de me encontrar com Rodrigo Costa Gil, companheiro de outras tantas aventuras. Contudo, para nosso mútuo infortúnio, Rodrigo não pôde estar no local no horário marcado. Restou-me lamentar e abandonar a Anhanguera, acessando a Praia Azul, de volta à Americana, bairro no qual residem Luiz Paulo, Luana e Levi. O trio, ansioso, já me aguardava. Sem delongas entrecortamos as ruas do bairro mais isolado do município com direção à rodovia SP304, que nos acompanharia até o município de Piracicaba. Logo no anel de acesso apeamos pela primeira vez para admirar a recém revitalizada Lagoa do Piva, localizada na divisão entre os municípios de Americana e Nova Odessa. O pequeno reservatório natural circular, que por muitos anos sofreu duras penas pelo despejo clandestino de esgoto de algumas indústrias das proximidades, hoje resplandece seu azul intenso à luz do sol. Lembrei-me de que fora recoberta, desde que eu era um menino, por aguapés tão incrustantes que a faziam parecer um tapete verde, redondo e uniforme. Pude fotografar, pela primeira vez, essa paisagem que, juntamente com um marco semelhante a um pião de cimento estilizado, dão as boas vindas a quem parte, via Luiz de Queiroz, rumo ao sul do Estado de São Paulo. A parada foi válida não somente para pormenorizarmos nossa rota, mas para guardarmos uma imagem garbosa na mente antes de errarmos pelos canaviais e perímetros urbanos de Americana e Santa Bárbara d'Oeste.

Princípio da SP304

Gansos do Horto de Tupi
Vinte quilômetros se passaram até a segunda apeada, e ela se deu no Horto Florestal de Tupi, localizado no Distrito de Tupi, em Piracicaba. Para isso tivemos que deixar, por ora, a SP304, adentrando uma estrada de terra que nos direcionou à entrada desta que é uma das raras áreas verdes preservadas do município. Fomos recepcionados por grandes bromélias e quatro gansos que, nas adjacências de um lago, aqueciam-se com os ainda fracos e esparsos raios de sol de uma gélida manhã. O lago infelizmente tomou o caminho inverso ao da Lagoa do Piva, pois em tempos mais remotos sua translucidez era uma forte característica. Hoje apresenta águas marrons e opacas. Os altivos eucaliptos e pinheiros impediam a entrada da luz na margem norte, abrigando mesas e bancos de concreto dispostos pelos 200 hectares de área do horto que, além de exuberante mata atlântica, tem toda uma infraestrutura propícia à educação ambiental voltada às crianças, como leves trilhas explicativas que levam a nascentes. Como estávamos ali apenas de passagem, a ideia de nos aprofundarmos mata adentro, pelas citadas trilhas, não nos apeteceu. Preferimos deixar o horto pela mesma estrada de terra que nos levara até ele, passando por algumas humildes casas que ainda subsistem no interior de seus domínios. Fomos sendo saudados por muitos ciclistas que também se aventuravam por essas bandas enquanto rapidamente retornávamos a SP304 e à sua floresta de cana. Contudo, cruzamos por baixo da mesma e atravessamos Tupi, nele acessando uma vicinal que nos desembocou na Rodovia do Açúcar. Em questão de minutos estávamos inseridos na caótica dinâmica do centro urbano de Piracicaba.

Horto Florestal de Tupi, em Piracicaba

Águias-chilenas
Queria eu desfrutar das belezas do Rio Piracicaba, que nasce praticamente no quintal de minha casa, da confluência dos rios Jaguari e Atibaia, mas o movimento turístico na famosa Rua do Porto era intenso. O cheiro das majestosas águas, que já foram até mesmo tema de canções populares, neste dia não mereciam alusão cancioneira alguma. A poluição é evidente, e para completar o cenário desolador uma ponte está sendo edificada nas imediações do Véu da Noiva, uma cachoeira que é despejada diretamente no caudaloso e mais importante afluente do Tietê, com seus 250km de extensão. Optei por não parar, atendendo aos apelos de Luiz Paulo para que saíssemos imediatamente da zona urbanizada de Piracicaba. Prosseguindo na rota, então, subimos paralelamente a um córrego pútrido, que infelizmente deságua no Rio Piracicaba e contribui ainda mais para a sua morte, com direção à estrada para Anhumas, um distante distrito de Piracicaba. Muitas curvas, buracos e treminhões canavieiros desaceleraram nossa toada até o bairro de Pau Queimado, onde uma blitz policial acontecia. Daí para frente o bucolismo imperou. Imensas pastagens, açudes, gado e encostas de morros que guardam os últimos resquícios de mata da parte sul do território piracicabano. Em uma parada, ao lado dos mourões de tamanhos, formas e origens dessemelhantes, fotografava a beleza cênica do local enquanto era vigiado, de longe, por um casal de águias-chilenas com seus alvos peitos estufados feito pinguins. Isso nos inspirou a continuar em frente, passando pelos bairros Serrote e Jiboia, onde a cana-de-açúcar novamente tomou conta do cenário.

Paisagem da estrada para Anhumas

Gavião-caboclo às margens do Tietê
Alcançamos Anhumas. O asfalto, por ora, desapareceu. Entrecortamos o pequeno distrito de solo arenoso, deixando para trás seus inúmeros templos religiosos e as pequenas mercearias da rua principal. Aproximávamo-nos do vale do Rio Tietê, vencendo ligeiros desníveis pelos canaviais e propriedades rurais locais. Após aproximadamente 8km errando por estradas de terra, deparamo-nos com uma ponte de pouco mais de 100m de comprimento, de simples estrutura, feita a concreto pré-moldado e ferro tubular como corrimão. O interessante é que não havia movimento, o que nos possibilitou ancorar as motos sobre a ponte sem nos preocuparmos em atrapalhar os veículos que porventura passassem pelo ermo. Quanto ao rio, o grande Tietê, seguia caudaloso, largo e marrom para o oeste em busca do Rio Paraná, mostrando-nos neste pedaço apenas alguns poucos metros de seus 1010km de extensão. Luiz e eu recordamos de suas nascentes, em Salesópolis, onde pudemos beber de suas águas. Aqui, obviamente, não seria possível tal feito. Apesar de tudo, o que restou de mata ciliar era refletido pelo espelho d'água judiado do rio com muita propriedade, fazendo-me invejar as duas crianças que brincavam de futebol em uma propriedade parelha às barrancas do rio. A paz exalada pelo silêncio e pelas suaves corredeiras, quebrada apenas pelo cantar longínquo e esporádico de pequenos pássaros, veio muito bem a calhar após trespassarmos o ruidoso município de Piracicaba. Aliás, atravessando o Tietê a 450 metros de altitude, adentrávamos o território de Conchas, uma vez que o rio demarca naturalmente a divisa entre as duas cidades.

Ponte para Conchas

As judiadas águas do Rio Tietê, na divisa entre Piracicaba e Conchas

Búfalos
O rio ia ficando para trás à medida que nos distanciávamos de seu vale, agora nos domínios de Conchas. A terra continuava sendo nosso “pavimento” e a cana-de-açúcar uma ingrata companhia. Um gavião-caboclo alçou voo assim que armei minha câmera, não permitindo que eu obtivesse uma boa fotografia de toda sua truculência. Revoadas de chupins-do-brejo decolavam dos brejos que os caracterizam assim que sentiam a presença incômoda dos motores das três motocicletas que escolheram desbravar aqueles confins em um primeiro de julho agora bem encalorado pelo sol. Uma manada de búfalos, com alguns elementos albinos, refrescavam-se na água empossada à beira de uma cerca de arame farpado. Estes belos animais foram nossa última imagem interessante dos 18,5km em que a estrada de terra perdurou. Saíamos agora da zona rural e ganhávamos a zona urbana da cidade de Conchas, habitada por aproximadamente 16000 pessoas. Tenho parentes nela, mas neste dia eu não estava ali para visitá-los. Com muita rapidez fotografei a igreja matriz e a praça defronte a ela, na qual as bandeiras do Brasil, do Estado de São Paulo e do município de Conchas estavam hasteadas, tremulando letargicamente ao soprar do zéfiro. De alguma forma uma senhora que transitava pela praça se incomodou com a minha presença, olhando-me com um olhar misto de medo e desconfiança. Minha barba hirsuta e meus andrajos de motociclista às vezes causam espanto em pessoas de cidades pequenas e não turísticas. Como perambulo tirando fotos de tudo o que acho interessante, penso que elas acreditam que eu seja alguém que espiona a cidade a mando de autoridades do Estado ou órgão parecido. Retribuí o olhar à espantada senhora que, vendo que eu agudamente a encararia até o fim (não queria perder o “duelo”), desistiu da empreitada e continuou rumando para longe da praça, agora olhando para o chão.

Matriz de Conchas

Porangaba
Conchas já era passado. Dirigíamo-nos agora para a cidade sequente, pilotando por uma estrada de asfalto vicinal ao estilo campo minado. As propriedades rurais perpetuavam a saga da cana, das pastagens e do gado. A presença da Serra de Botucatu, a oeste, se tornou uma grata companhia, bem como a visualização esporádica do pica-pau-verde-barrado sobre os mourões. Exatamente ao meio-dia apeamos em frente à matriz de Porangaba, município que conta com pouco mais de 8000 habitantes. A praça ao estilo tradicional, com coreto e jardins muito bem aparados, curiosamente apresenta pentagramas musicais, com claves de sol, semínimas e colcheias servindo de grades limítrofes aos verdejantes canteiros. Posteriormente fizemos a descoberta, ao toparmos com a sede de uma escola de samba, de que a cidade tem uma forte tradição carnavalesca, derrubando por terra o nosso achismo da existência de algum renomado conservatório musical no município. Estávamos já próximos do nosso destino, a cidade de Torre de Pedra, e portanto gastamos um bom tempo em Porangaba, retirando camadas e mais camadas de roupas de frio, uma vez que o astro-rei, a pino, luzia forte sobre nossas cabeças. A Levi, debilitado pela gripe, prestamos uma atenção especial, assegurando-nos de que se alimentasse e se hidratasse antes de retomar a jornada. Luiz, como sempre, sorvia a fumaça dos “goianinhos” que trazia na jaqueta – alguns os conhecem simplesmente como “paiêros” – enquanto admirava a luta pela vida de uma flor-da-abissínia no telhado de uma antiga casa de uma avenida comercial de Porangaba.

Flor-da-abissínia

A Torre de Pedra, bem ao fundo
Pouco mais de 20km nos separavam de nosso destino final. Ciceroneei meus companheiros pelo trevo da saída de Porangaba, avançando rapidamente pelo asfalto até a Rodovia Castello Branco, que recebe o nome do primeiro presidente colocado pelos militares no poder após do golpe de 64. Permanecemos nessa via rápida por apenas 5km, pois acessamos a partir dela uma rotatória que nos desembocou em uma estrada municipal. Vale ressaltar que da Castello já é possível avistar a Torre de Pedra, monumento natural de arenito-basáltico com 75 metros de altura e que, de tão imponente, serviu de inspiração para o nome do município. Na estrada municipal, sinuosa, colorida pelos ipês e pontilhada por esparsas propriedades e gado, a imagem da Torre de Pedra desapareceu. Tivemos que alcançar a área urbana, que aglutina pouco mais de 3000 habitantes, e localizar uma estrada de terra pedregosa que nos direcionou ao alto de um morro disposto perfeitamente em frente à pedra, a mais ou menos 500 metros de distância da mesma. Do mirante era possível avistar todo o relevo da zona rural de Torre de Pedra, a Torre de Pedra propriamente dita, os morros Agudo e Agudinho e todos os paredões e elevações que fazem parte da Cuesta Botucatu, inserida na Área de Proteção Ambiental Botucatu, que abrange uma área de 220 hectares. Almejávamos essa visão desde que planejáramos essa viagem, e ela, agora, com um céu azul ao fundo, se escancarava aos nossos estupefatos olhos. O odômetro marcava 180km. Por incrível que pareça, não é difícil encontrarmos paraísos como esse nas cercanias de nossas residências. Não é preciso viajar para muito longe para desfrutar da beleza cênica do “Brasil Poeira”.

Face norte da Torre de Pedra

Cuesta Botucatu, da qual a Torre de Pedra é integrante

Escalada frustrada
Não contentes em contemplar a pedra de longe, seguimos por terra até às proximidades de sua base. Um carro de família estacionado em uma puxada da estrada nos indicou o local onde nos apartaríamos, por ora, de nossas motos. Vencemos uma cerca de arames farpados através de um “entorta-burro” e principiamos, a pé, a subida de uma íngreme trilha. Por estar situada em uma propriedade particular, infelizmente grande parte dos arredores da base se resume a pastagens. As grandes árvores e a densa vegetação, que naturalmente deveriam estar ali, foram reduzidas em quantidade com o passar dos anos e com a manipulação do pasto. Luiz e Levi encontraram cogumelos gigantes, com mais de dois palmos de copa. Eu e meu falho conhecimento de plantas discernimos apenas algumas espécies de palmeiras e coqueiros. Sem muito afinco em buscar nomes na mente, alcançamos a base da pedra que, por incrível que pareça, é bem crivada pela vegetação comum ao cerrado: capim-rubro, capim-favorito, bromélia dyckia, samambaias selvagens, palmeiras-buriti. A vista, contudo, não é tão embasbacante, pois não dá pra se ter uma panorama completo de toda a sua imponência como quando a vimos de longe. Olhá-la de baixo para cima apenas despertou um interesse em escalá-la. Logicamente sem equipamento a ideia não vingou. Luiz ascendeu até certo ponto, mas foi obrigado a abdicar de tal intento cerca de dez metros depois. Faltavam ainda 65 e não haviam meios de se prorrogar a faina. Derrotado e com a sudorese o fazendo brilhar, regressou à base.

Cume somente às aves alcançável

Morros Agudo e Agudinho
A vista do topo da Torre de Pedra certamente deve ser inesquecível. Entretanto, é valido mencionar que a de sua base foi um prêmio simbólico para quem não teve o privilégio de estar em seu cume. Toda a cuesta arenito-basáltica e os bem preservados morros Agudo e Agudinho, o primeiro feito uma pirâmide verde e o segundo feito um lombo de nelore, emprestavam ao cenário aquele efeito brasileiro, no qual o verde contrasta com o azul, que tanto reverencio. O gostoso de viajar em grupo é que cada um tem suas particulares impressões sobre o mesmo pano-de-fundo. Luiz, por exemplo, prestou atenção não às cores em si, como no meu caso, mas às formas triangulares de todo o relevo nos entornos da Torre de Pedra. Levi apenas se queixava de não estar em condições plenas de desfrutar melhor da paisagem. Luana, a “coruja”, apenas observava, calada, como corriqueiro. Mesmo com as diferenças era certo de que carecíamos de um último olhar à torre. Tudo em volta da mesma já estava devidamente internalizado, bem como a face norte do monumento de pedras, visto do primeiro mirante da estrada e durante a ascensão até sua base. Pensamos em continuar descendo pela estrada e encará-la pelo lado sul. Foi o que levamos a cabo na sequência. Sempre atentos aos sons, já que nos disseram existir por ali uma cachoeira, seguimos terra abaixo, já sobre nossas motos, até os domínios de um sítio que, de porteiras fechadas, não nos possibilitou a passagem. A Torre de Pedra, pelo lado sul, contudo, se apresentava de uma maneira diferente, mais triangular do que quando vislumbrada pelo norte. Não encontramos cachoeira alguma ou qualquer outra imagem que fosse tão significativa para esta viagem quanto esse morro-testemunho, que viu toda a cuesta se rebaixar com o tempo enquanto ele, só, permanecia – e ainda permanece – em seu nível de origem.

Vista da base da Torre de Pedra

Face sul da Torre de Pedra

A translucidez de Jurumirim
O relógio de minha moto marcava 15h. O sol, ainda bem luzidio, nos proveria mais algumas horas de sua efêmera cumplicidade. Pelos meus mapas o Rio Paranapanema seguia seu curso, rumo ao Rio Paraná, próximo a onde estávamos. Bom, pelo que menos era o que eu achava. Não utilizei muitos argumentos para convencer os meus camaradas a estender por mais uns 50km a incursão que deveria terminar ali, aos pés da Torre de Pedra. Aventei simplesmente a verdade: o “Panema”, como é conhecido pelos mais antigos, é o mais limpo dentre todos os grandes rios do Estado de São Paulo. A votação foi unânime. Todos aceitaram o “bônus” da viagem. Como Virgílio, guiei meus companheiros de volta a Castello Branco, transpassando novamente os limites da Torre de Pedra e o centro urbano da cidade homônima. Numa lenta progressão, e com a Serra de Botucatu nos instigando, topamos com um pedágio na altura do município de Itatinga. Atravessamos gratuitamente o infeliz e contornamos uma rotatória que nos livrou de vez da magnânima rodovia. Estávamos agora dentro de Itatinga, e peço que não a confundam com o homônimo, famoso e polêmico bairro boêmio de Campinas. Com 16000 habitantes, ramifica-se de seu interior um “tentáculo” que nos direcionou à vicinal Doutor Ene Sab. Sinuosa em seus primeiros quilômetros, de onde se vê longinquamente o Paranapanema, e depois se estendendo por uma reta sem fim, em meio a pinheiros e eucaliptos que congelam a atmosfera por não deixarem a luz solar entrar, ela nos desembocou diretamente num imenso reservatório d'água. Era o “Panema”, mas represado e nomeado Represa de Jurumirim. No fim das contas, para o desespero de Levi, os 50km praticamente dobraram. Foram percorridos, na verdade, 90km desde Torre de Pedra.



Imagens do Rio Paranapanema e da Represa de Jurumirim

Embarcando na balsa
Quão límpidas são as águas do Paranapanema e de Jurumirim! Um espelho d'água, de um azul um tom mais escuro do que o do céu. Quando olhados no horizonte, ambos parecem uma coisa só, unindo-se numa simbiose celeste. O que quebrou a sensação pacífica que nos envolveu ao entrar em contato com o sibilar lento das águas provocado pela ação dos ventos foi a aproximação de uma balsa, a mesma que nos faria flutuar sobre uma ínfima parte dos 450km² totais da represa até a margem sul, no município de Paranapanema. Informamo-nos com o operador da balsa sobre o que nos esperava do outro lado, pois para mim eram terras desconhecidas. O delgado homem, abrigado sob um chapéu de palha de longas abas, inteirou-nos geograficamente e nos exortou a embarcar. O sol, arredio, tendenciava a debandar. Seria prudente, portanto, escolher um caminho que pudesse nos levar o mais depressa possível de volta para casa. Pelos cálculos do experiente senhor, de Paranapanema a Americana seriam 250km de rodovias. Se voltássemos pelo mesmo caminho pelo qual chegáramos até ali, seriam também 250km. Optamos, então, por um novo caminho. A vagarosa balsa, que já prestou serviços em Barra Bonita e que hoje quase não queima o óleo diesel de seu motor na monotonia deste recôndito, desfilou por Jurumirim e pelo “Panema”, onde meu saudoso avô materno costumava pescar em sua mocidade, sentado às barrancas do Estado do Paraná. Uma observação: o Rio Paranapanema tem um curso superior a 900km e, a partir do município de Itararé, em São Paulo, corre até o Rio Paraná dividindo naturalmente os Estados de São Paulo e Paraná. É o menos poluído de São Paulo por não conter em suas margens grandes centros urbanos.
O sol se põe em Paranapanema
Do outro lado, em Paranapanema, desembarcamos e nos despedimos de Marcos, meu xará, um motociclista de Avaré, cidade na qual está situada a Hidrelétrica de Jurumirim, alimentada pelas águas da represa que acabáramos de sobrepassar. O bravo homem, juntamente com sua esposa, estava prestes a concluir sua missão: contornar, de moto, todo o reservatório de Jurumirim. A noite, uma realidade, nos dissuadiu de procurar outros atrativos em Paranapanema. Certamente deve haver muito o que ver naquelas bandas. Lamentando o avanço do tempo, acessamos a traiçoeira Raposo Tavares, na qual permanecemos até Itapetininga. A SP127 nos carregou, na sequência, por Tatuí, Cerquilho e Tietê, onde os imensos canaviais ardiam sob o jugo do fogo. A estrada do CEASA, em Piracicaba, nos possibilitou a entrada na Rodovia do Açúcar, que por sua vez se finaliza na SP304, a mesma em que principiáramos a viagem às 8 da manhã. Nela percorremos os últimos 40km de uma incursão total de 580km. No fim das contas, serviu-me como uma grande preparação para a viagem que farei ao Pantanal, dentro em breve. Não poderei contar com a companhia de meus companheiros, é bem verdade. As estradas que nos aproximam são as mesmas que nos distanciam, e depois nos aproximam novamente, numa sucessão de vai-e-vens que se caracterizam, na verdade, como a dinâmica imutável da vida. Sentirei saudades de todos, de minha Luna, de meus familiares. Poderia ficar, mas escolhi partir. A liberdade é a realidade de “quem é como eu: mais um fugitivo da guerra”.
Se um dia me disserem que aqui é meu lugar, perguntarei o porquê. Se me responderem com convicção, articularei palavras e farei a mesma pergunta. Se novamente me responderem convictamente, refarei a mesma pergunta acrescendo outras, até que quem me respondeu esteja exaurido de me responder e se contradiga. Não aceito o aqui e o agora, a não ser que estejam apenas de passagem, pois a força que me movimenta é muito maior que o poder da estática. Ao meu amor, o Pantanal, que me aguarde. Farei parte de sua imensidão em breve.



Mais fotos aqui.

E abaixo, um blues composto por Habia Pereira Melo, ou Miss Vel. Que o talento dessa menina sirva de inspiração para muitos, assim como formações rochosas imponentes como a Torre de Pedra e águas translúcidas como as do Paranapanema.

5 comentários:

  1. Que legal!!
    Morro de vontade de sair assim.
    Beijos!

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    1. Deve ser maravilhoso compartilhar viagens e cultura dessa forma.. ha tempos venho planejando 1 jornada assim mas por falta de companhia e 1 moto de porte acabei indo a Torre de Pedra de carro mesmo! Parabens ao Carcara'

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