quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Morro do Saboó – 5 de outubro de 2011


É engraçado – para não dizer preocupante – como a evolução tecnológica nos deixa à mercê de suas passadas. Temos que, a cada dia, consumir mais e mais para não sermos dragados para o subsolo da exclusão digital. Como diria meu grande pai, hoje em dia é mais fácil encontrar alguém portando dois celulares do que um pobre infeliz sem nenhum. Não que isso seja ruim ou desumanizante. Pelo contrário, a evolução deve acontecer, isso se agir em prol da perpetuação da espécie, como prerroga o darwinismo em relação ao todos os seres vivos. Contudo, estamos nos habituando ao comodismo, ao “ter tudo às mãos” com o simples deslizar de dedos pelo touchscreen, e temos nos olvidado que, para um completo desenvolvimento, precisamos nos utilizar de nossos músculos e articulações, de movimento, esse que nos fará passar por dificuldades, desequilíbrios, momentos que nos colocarão à prova, obrigando-nos a agir, aprender e, consequentemente, evoluir. Por isso, embora eu ainda desfrute de momentos totalmente informatizados, ainda prefiro me valer daquela velha dupla pregada como emancipadora e benfeitora da alma e dos olhos pelo diligente amigo Fernando Santarrossa: uma moto e uma câmera fotográfica. Uma me provê o tão estimado e supracitado movimento; a outra, o congelamento e a imortalização desse movimento, pois se eu parar, um dia, essas imagens, embora estáticas, me mostrarão que outrora estive evoluindo.
Companheiros de aventura
O Morro do Saboó, em São Roque, é uma elevação montanhosa facilmente identificável pelos frequentadores da região de São Roque, nas proximidades da chamada Grande São Paulo, visto ser esse o ponto culminante do município. O grupo que fez esta pequena incursão (inclusive eu), entretanto, o viu pela primeira vez do alto do Morro do Voturuna (link), entre Santana do Parnaíba e Araçariguama. Apesar de ser ligeiramente mais baixo que o morro citado, não deixa de ter sua dominância no relevo irregular da região. O que mais nos motivou a subi-lo, não obstante, foi a total falta de informação sobre as vias de possível acesso ao seu topo. Os relatos são escassos e simplesmente não tínhamos ideia de como abordá-lo, se seria possível subi-lo de moto ou somente a pé a partir de certo ponto. Poderíamos tentá-lo à maneira do parceiro Kássio Massa, como publicado em seu excelente blog Rota Massa Ecoturismo (link para esse roteiro em questão), mas isso nos tomaria muito tempo e energia, o que vai na contramão de uma viagem motociclística de apenas um dia. Enfim, Levi Vieira, Rodrigo Costa Gil, Thiago Lucas, Luiz Paulo Blanes, Luana Romero e eu nos deixaríamos levar pelas estradas da zona rural da Estância Climática de São Roque na esperança de atingir nosso objetivo. Seriam cinco motos, seis almas e um naco de possibilidades de dar tudo muito certo. Ou tudo muito errado, para os mais pessimistas (meu caso).
São Roque
Luana e eu partimos de Americana, das imediações do vale do córrego do Sítio Anhanguera, por volta das 7:30 da manhã. Seguimos pela rodovia Anhanguera até o pedágio de Nova Odessa, onde nos encontramos com Levi, Thiago e Luiz, que já nos aguardavam. O séquito só se completou quando deixamos a Anhanguera, acessamos a Bandeirantes e, na sequência, a Santos Dummont, onde Rodrigo se juntou a nós. Daí foi só continuar rumando para o sul em um caminho enfadonho, sonolento. Uma guinada para o leste, pouco antes da grande Sorocaba, e pela Castello Branco fomos rapidamente avançando. Só descemos para o sul novamente ao avistarmos a primeira (e única) indicação para São Roque. Já na estrada municipal Lívio Tagliassachi, derrocamos os 10 últimos dos 135km desde Americana. Dela se avistava, a oeste, o altivo Morro do Saboó. Localizamos, inclusive, a Estrada do Saboó, uma vicinal que com certeza nos carregaria para bem próximo dele. Como ainda era cedo, aproveitamos o tempo para conhecer melhor o centro urbano de São Roque. Devo dizer que não nos arrependemos. A chamada “Cidade do Vinho”, com seus 80 mil habitantes, preencheu a lacuna histórica da viagem. Afinal, é uma cidade fundada no século XVII, com mais de 350 anos de bagagem. A Igreja de São Benedito, por exemplo, foi erigida por escravos em 1855. Tanto sua estrutura (à base de taipa de pilão) quanto seus adornos interiores são simples, rústicos, e sua localização, entre prédios comerciais e uma agência bancária, a camufla entre os traços duros da arquitetura moderna do século XXI, feita mais para ser prática do que vistosa. Na mesma rua, um pouco mais para baixo, uma outra, na praça central da cidade. Tratava-se da Matriz de São Roque, de meados do século XX, que se não pode ser celebrada pela sua idade, pode sê-la pelas suas dimensões. É simplesmente a maior do Brasil dedicada ao santo de origem francesa.

Igreja de São Benedito, construída por escravos em 1855
 
Interior simples
Torre da Igreja de São Roque

Morro do Saboó
Com o hiato histórico saciado, condição indispensável em algum ponto de toda e qualquer viagem, saímos à caça de alguma trilha, de motocicleta ou a pé, que nos desse acesso ao cume do Morro do Saboó. Retornamos pela estrada municipal Lívio Tagliassachi e adentramos a Estrada do Saboó, sentido oeste. Fomos ganhando altitude pela Serra do Ribeirão enquanto o asfalto nos levava para o norte, rumo ao bairro do Saboó. Aos 800m o morro já era uma presença marcante no cenário, exibindo suas formas arredondadas, inciando-se pequeno, a sudoeste, e findando com seu ponto culminante a nordeste, como que crescendo progressivamente. Dizem se assemelhar ao dorso de um dinossauro. Em um certo momento o asfalto despareceu. Nunca perdendo o morro de vista, contornamos sua face noroeste, por terra, e calhamos em um lago. Enviesando-nos, a partir dele, para o leste, entrecortamos um bairro de chácaras e, mediante coleta de informações de moradores locais, subimos um trecho menos íngreme do Morro do Saboó, ainda sobre nossas motos, pelo lado leste. Em um determinado ponto, um carrinho de comes e bebes demarcava o fim da estrada. Uma placa com os dizeres “essa é uma propriedade particular, mas de acesso livre ao público” não nos deixava dúvidas: era esse o princípio da trilha a pé. Víamos lá no alto o topo do Saboó e nossas pernas se encarregariam de alcançá-lo. Não havia nada mais que nossas motos pudessem fazer.

Vista da Estrada do Saboó
 
Início da trilha a pé. Ao fundo, a Serra da Guaxatuba
Face triangular e rochas de quartzito
Subir o Morro do Saboó, ou Morro Pelado, como os indígenas Saboós o costumavam chamar (de fato, Saboó, em indígena, significa “vegetação rala), não foi das tarefas mais árduas. A trilha, em meio a rochas de quartzito totalmente soltas ou ligeiramente presas pela vegetação rasteira (daí provém o adjetivo “pelado”) pode ser perigosa para quem confia em demasia no chão onde pisa, mas em nenhum momento nos vimos na iminência de um acidente mais grave. A subida é incontestavelmente íngreme, mas o próprio traçado da trilha, sinuoso, foi feito de maneira a suavizar a ascensão de 100 metros de altitude em pouco menos de 1km de percurso. E enquanto se sobe se avista, além do bairro que entrecortamos para chegar ao sopé do morro, a Serra da Guaxatuba, lá pelos lados de Cabreúva, ao norte, e um outro laivo do morro que, da Estrada do Saboó, não estava aparente. É uma porção mais baixa, triangular, pontuda feito uma pirâmide. De longe ele me pareceu tão arredondado que, ao me deparar com essas linhas mais firmes, acreditei estar defronte a outro morro. Mas as cartas topográficas não mentiam: era ainda o Saboó, mas mostrando sua outra faceta. Numa última esticada, vencendo pedras empilhadas (aqui se faz alguns rituais religiosos e, à noite, madeiras são queimadas nessas “churrasqueiras” improvisadas) e revoadas de andorinhões destrambelhados, chegamos aos quase 1000m de altitude, no ápice do Morro Pelado. Havia mais gente ali. Religiosos, principalmente. Homens prostravam-se de joelhos, com paisagens como o Morro do Voturuna, a nordeste, e a cidade de São Roque, a sudeste.

São Roque vista do Saboó

Morro do Voturuna

Mais um dos topos do mundo

Descendo o Morro do Saboó
Há aqueles que são religiosos, devotos, e há aqueles que são extremistas, doentes, fanáticos. Esse extremismo foi o que nos fez deixar o cume do Saboó poucos minutos após nossa chegada. Dois homens, por motivos que eu não saberia apontar, discutiam acaloradamente sobre Deus e a bíblia, tanto a ponto de um afrontar o outro com o dedo em riste. É difícil ter paz e aproveitar o torpor do vento morno em um dos vários topos do mundo (como costumo chamar nossas montanhas) com dois seres digladiando a poucos metros de você. O que me alegrou, por um momento, foi voltar meus olhos para o oeste e discernir no horizonte, mesmo que tímida, a Serra de São Francisco. Um dedo de prosa com os meus companheiros e não foi difícil convencê-los a nos dirigirmos para lá, visto que também começavam a se incomodar com a querela dos “detentores da verdade”. Como “para baixo todo santo ajuda” (especialmente aqui, recorrer a homens beatificados pode soar uma ironia ou uma demonstração de religiosidade, meu caso sendo o primeiro), rapidamente descemos o cerrado do Saboó e reavemos nossas motos, partindo incontinenti para o sul, visando encontrar, em algum momento, a rodovia Raposo Tavares. Por continuarmos em estradas de terra, algumas surpresas ainda nos acometeram. Passamos, por exemplo, pelos prédios antigos do bairro rural Moreiras e por um túnel desativado da FEPASA. Não há mais trilhos, mas a estrutura ainda subsiste. Do outro lado a trilha continua, passando por perigosas áreas em desmoronamento. Quinze quilômetros depois encontrávamos o asfalto da Raposo Tavares no trevo de entrada da cidade de Mairinque.

Bairro Moreiras


Túnel desativado da FEPASA

No alto da Serra de Inhaíba
A Raposo Tavares foi nos conduzindo para o oeste em velocidade de cruzeiro. Passamos pela entrada da cidade de Alumínio e 15km depois deixávamos a rodovia para adentrar as ruas do distrito sorocabano de Brigadeiro Tobias, nome dado em homenagem ao patrono da Polícia Militar do Estado de São Paulo, o Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, nascido em Sorocaba no ano de 1795. Apesar de ser parte integrante de Sorocaba, o distrito conta com mais de 15 mil habitantes, número superior ao de muitos outros municípios do interior paulista. Apesar desses números e História impressionantes, não era ali nosso escopo. Utilizamo-nos dele apenas como atalho para acessar as zonas rurais de Sorocaba e Votorantim, ao sul. Por estradas de chão fomos avançando pela Serra de Inhaíba entre chácaras, sítios, plantações de milho, cana e mata fechada. Por falar em canaviais, perdida em meio a um, recentemente cortado, jazia em reforma a Capela de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, lugar de devoção dos moradores do bairro rural sorocabano de Inhayba. Prosseguindo, em uma estrada ladeada por eucaliptos julgamos ter escutado uma queda d'água. Apeamos das motos e descemos por uma curta trilha em direção a um raso vale. Por fim encontramos a pequena queda que, pelos mapa do IBGE, se encontra nos domínios da Fazenda Vila Nova. É a água que brota no topo da Serra de São Francisco escorrendo para saciar a sede dos seres que habitam as altitudes mais baixas, como o grupo de quatis que passou tão rapidamente por nós que sequer nos deu a chance de fotografá-los.

Capela de Nossa Senhora da Imaculada Conceição

Cachoeira da Fazenda Vila Nova
 
Capela da Penha
Sem nos darmos conta fomos ganhando altitude suavemente enquanto passávamos pelo bairro de Inhayba, às margens dos trilhos de uma ferrovia, e por áreas úmidas de mata fechada e terreno pedregoso. Na cachoeira o altímetro marcara 700m, e no chapadão onde se encontra a tricentenária Capela da Penha incríveis 1015m. Chegáramos a Serra de São Francisco e nem nos apercebêramos disso. Não é seu ponto culminante, mas está próximo dele. A capela, por si só, é um marco, visto que a partir dela surgiram os primeiros povoamentos na serra. Foi erigida em 1724 por Timóteo Oliveira, uma obra que, à época, custou 200 mil réis. Tem traços barrocos. Foi construída nas proximidades de um poço de água, o que possibilitava molhar a terra e socá-la com pilão, dando forma a sua única nave. Hoje ainda são realizadas romarias que partem de Votorantim em direção a ela. Que lugar pacífico! Até mesmo os cachorros e cavalos que perambulam pelos seus entornos parecem não produzir um ruído. O silêncio foi apenas destronado pelo ranger das portas de madeira quando Luis resolveu adentrá-la, revelando um interior simples, com poucos bancos de madeira e pequenas imagens, umas talhadas também em madeira e outras em argila. Se eu acreditava que a visita à igreja de São Benedito, em São Roque, havia preenchido a lacuna histórica da viagem, agora essa mesma lacuna se elastecera para acomodar a Capela da Penha e sua bagagem de três centúrias.


Mais imagens da obra barroca de 1724
Cachoeira da Escadaria
Por estradas de chão continuamos acelerando na crista da Serra de São Francisco. Quatro quilômetros depois pendíamos para o norte por uma estrada rural que entrecortava um eucaliptal. Meus mapas apontavam que ali havia mais uma cachoeira. Numa descida perigosa encontramos o lago da Represa de Cubatão. Cruzamos o mesmo ribeirão que a alimenta, o Cubatão, por dentro dele mesmo, visto que atravessava a estrada, que nesse ponto já não passava de uma trilha. Por sorte era estreito e raso. Prosseguimos por essa trilha, ainda de moto, até o começo de uma outra que descia para um vale. A mata se fechara totalmente. Abandonamos as motos momentaneamente e descemos, a pé, até nos depararmos com o mesmo rio Cubatão. Daí foi só acompanhá-lo e chegar à primeira queda da Cachoeira da Escadaria, pequena, escorrendo morosamente pelo granito da serra por 15 metros, sombreada por uma densa mata de galeria. Descendo ainda mais pela margem esquerda do ribeirão de Cubatão, localizamos o segundo “degrau”, onde as águas caíam em dois canais separados, embora dividissem o mesmo paredão. O da esquerda mais vigoroso, com maior volume; o da direita mais tímido, procurando caminho entre os vincos do granito. Essa escada de apenas dois degraus foi o último atrativo visitado no alto da Serra de São Francisco. Nem mesmo arriscamos um banho, visto estar já anoitecendo e a temperatura, que se manteve amena durante todo o dia, começar a baixar.


Cachoeira da Escadaria: segunda queda
Atravessando o ribeirão de Cubatão

Barragem de Itupararanga
Chamamos isso de dia e resolvemos ir embora. Não havia mais nada que pudéssemos fazer na região. Voltamos para a estrada de chão da Capela da Penha mas, ao invés de seguirmos para o leste, aceleramos para o oeste, perdendo altitude e encontrando o asfalto da estrada municipal Votorantim-Piratuba 5km depois. Por estarmos próximos a Represa de Itupararanga, passamos por lá para rever a barragem, inspirada no Coliseu romano, do maior reservatório de água doce da região de Sorocaba, com um lago principal com mais de 930km² de área. Satisfeitos, voltamos pela mesma estrada, sentido noroeste, e chegamos ao centro urbano de Votorantim. Acompanhando o rio Sorocaba, o mesmo que alimenta Itupararanga, cruzamos uma boa parte de Sorocaba até localizarmos a SP-075, a que pegáramos no começo do dia. Ela foi nos conduzindo pelas imediações de Itu, Salto e Indaiatuba até Campinas, onde nos despedimos de Rodrigo. Continuamos pela Bandeirantes até Americana. Rodamos, ao todo, cerca de 400km, uma viagem curta mas que, se não agraciou com muitas belezas cênicas, nos deu a dimensão de que, se a natureza é complexa e complicada, o ser erroneamente chamado humano o é em dobro. Enfim, acredito que os homens que arguem no “alto do morro” são aqueles que abrem a boca em prol de uma bandeira, uma causa, e fecham os olhos para o que realmente é magnífico e digno de ser observado, poetizado. É isso o que tento fazer: transformar visões, muitas vezes nem tão belas, em palavras, em imagens. Em português plano: auguro modificar a realidade dura e problemática para algo que a mente possa facilmente assimilar e, no futuro, recordar com saudades.
Na falta de inspiração para uma conclusão digna, termino essa postagem com a frase do viajante Amyr Klink: “Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver”. Aguarde-me, Tocantins.


Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.


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E abaixo, um blues composto especialmente para o Morro do Saboó e para a Serra de São Francisco.

sábado, 30 de novembro de 2013

Cuesta de Botucatu - de 23 a 25 de agosto de 2013


É inegável que, em torno de nós, se adense cada vez mais uma área cujo componente de maior concentração é a mesmice. A rotina fatiga, os rostos outrora de feição elegante perdem o garbo diante das constantes trocas de olhares propiciadas pelo convívio forçado, a alma se acomoda ao tique dos relógios e à ortodoxia do calendário. Felizmente há aqueles que, numa oportunidade ou outra, ousam afastar-se do raio letárgico que compõe o imediatismo de suas mesquinhas vidas. São os que voltam suas espaldas para o óbvio e lançam-se em aventuras curtas e fisicamente não tão desgastantes, detentoras daquele poder único de descansar os olhos e a massa encefálica, esses sempre judiados pelo cinza e negro das grandes cidades. Se eu pudesse classificar o ato de sair e voltar em um mesmo dia eu diria, indubitavelmente, que é antagônico àquele em que o ser, por pusilanimidade ou por puro esgotamento físico e mental, se encarcera em um quarto quente e pouco arejado em um fim de semana deixando-se alienar pela televisão ou por outros aparelhos eletrônicos. É o outro lado da moeda. É o não ver a vida passar, e sim passar com ela.
Rumo ao "vento bom"
É impossível não se embasbacar com os contornos da cuesta. Em uma viagem para Torre de Pedra (link) e em diversas outras ocasiões em que despretensiosamente vaguei pela rodovia Castello Branco, rumo ao meu querido Estado materno do Paraná, fui me permitindo sentir as mudanças tênues de altitude e as quase imperceptíveis alterações da linha do horizonte, e quando me dei conta já estava pesquisando cartas topográficas de toda a região na esperança de traçar uma rota essencialmente rural pela região e que abrangesse peremptoriamente seu atrativo mais famoso: o Pico das Três Pedras. Para a minha surpresa, foi criada recentemente uma espécie de roteiro turístico abrangendo as 11 cidades do interior paulista que têm, em seus territórios, elevações da chamada Cuesta de Botucatu. Cuesta é uma palavra de origem mexicana que, numa tradução imediata e não muito meticulosa, significa degrau. Isso se deve ao fato de as elevações montanhosas serem aqui peculiares, não semelhantes ao formato usual das serras encontradas em Minas Gerais, por exemplo. São compostas, na verdade, por altitudes não muito altas, mas sim por suaves e extensos chapadões planos, pedregosos e recobertos por rasteira vegetação. Alguns morros podem passar facilmente despercebidos caso o ser não se utilize de um olhar mais analítico de todas as paisagens que circundam os municípios de Anhembi, Areiópolis, Avaré, Bofete, Botucatu, Conchas, Itatinga, Paranapanema, Pardinho, Pratânia e São Manuel. Não obstante, Luana e eu não augurávamos deixar nada passar.
Campos de Holambra
Partimos de Americana na manhã morna de 23 de agosto. Em velocidade de cruzeiro fomos avançando pelo canaviais da região de Piracicaba, primeiro pela SP-304 e depois pela Rodovia do Açúcar. A curta estrada do CEASA nos possibilitou contornar a conturbada Piracicaba pelo sudeste e acessar a SP-127, que retilínea em direção ao sul nos carregou rapidamente por Saltinho, Tietê, Cerquilho e Tatuí, região irrigada pelos afluentes do curso médio do rio Tietê. Sobrepassamos, de fato, o próprio, na divisa de municípios entre os supracitados municípios de Tietê e Cerquilho. Em Itapetininga, terra natal dos compositores Teddy Vieira e Luizinho, famosos por terem escrito a popular Menino da Porteira, acompanhamos a rodovia Raposo Tavares em direção ao oeste paulista, passando primeiramente por um ainda tímido rio Paranapanema e, posteriormente, já chegando no ponto de partida de nossa rota, pelo primeiro braço da represa de Jurumirim, o primogênito reservatório do curso de mais de 900km do rio mais limpo do Estado. Às suas margens pescadores exibem peixes de grande porte na tentativa de atrair motoristas que transitam pela rodovia. Luana e eu avançamos, sem paradas, e momentos depois deixávamos a Raposo para adentrar um dos distritos da cidade de Paranapanema: Campos de Holambra. Apesar de também ser um reduto de imigrantes holandeses, não confundam-na com o município de Holambra, na região de Campinas. Há aqui moinhos tipicamente holandeses, não funcionais, é verdade, mas perfeitos no papel de serem alusivos às origens do local, que datam de 1960. Estávamos, aqui, no início do nosso roteiro pela Cuesta de Botucatu, ou Polo Cuesta, se preferirem. Era chegada a hora de adentrar a zona rural e buscar os atrativos dentre o relevo que ela exibe.

Rurícolas em Campos de Holambra
 
Zona rural de Paranapanema
Gaviões-caboclos acasalando
Voltando um trecho na Raposo Tavares, pendemos para o sul na primeira estrada rural que encontramos. A princípio apenas algumas chácaras, cercas vivas, pastagens imensas e trigo. Muito trigo. Luana acreditou ter visto um gavião no alto de uma das grandes árvores espalhadas por um pasto onde atentos nelores observavam nossa passagem. Atravessamos a cerca, temerosos, e fomos nos aproximando, com um olho no gavião e outro no gado. Chegamos perto o suficiente para discernir um gavião-caboclo, que logo alçou voo e incrivelmente pousou sobre outro, uma fêmea, que o aguardava imóvel empoleirado em um caule seco. Foi uma acoplagem perfeita para uma ação de pouco mais de cinco segundos. Era o acasalamento de uma ave de rapina, que só não nos despertou maior volúpia por estarmos na iminência de confronto com três nelores que sorrateiramente se aproximavam. Por sorte conseguimos atravessar a cerca de volta para a estrada sem um susto maior. Essa descarga de adrenalina deve ter nos deixado mais atentos, pois logo à frente, nas proximidades de uma área alagada, fotografamos pequenos espécimes, como o garibaldi, o tico-tico-rei, o bico-chato-de-orelha-preta e o ferreirinho-relógio, bem como a coruja de população mais numerosa do Brasil, a buraqueira. O tesourinha-do-brejo, também relativamente comum, foi um espetáculo à parte, permitindo-nos uma boa aproximação e agraciando-nos com voos errantes, desengonçados devido ao fardo que a evolução o obriga a carregar: sua longa cauda, maior que o comprimento do próprio corpo, sempre separada como as lâminas de uma tesoura semiaberta.

O tesourinha-do-brejo e o trigo
 
Campo de trigo
Coruja-buraqueira

Carcará
Sempre com o trigo, ora esverdeado ora ressecado, e com estufas e sítios despontando vez ou outra, calhamos no bairro Serrinha da Prata, também pertencente a Paranapanema. Por incrível que pareça retornávamos à rodovia Raposo Tavares, e para sair do bairro supracitado fomos obrigados a acessá-la rumo ao leste. Quatrocentos metros depois pendíamos para o norte por uma outra estrada rural, essa em meio a um canavial. Caminhões canavieiros vinham esporadicamente no sentido contrário e levantam a poeira que, feito piche, incrustava-se em nossas vestimentas. Quando a puaca se assentava, avistávamos o sabiá-do-campo e o citadino gavião quiriquiri, o menor da classe dos falconídeos. Em uma das pequenas represas das propriedade rurais locais registramos a maria-faceira, talvez uma das mais belas espécies de garça do nosso país, mesclando as cores amarela e azul em seu corpo e finalizando, como que retocado por um exímio artista, com os arredores dos olhos em azul-celeste e parte do bico em roxo. No alto das palmeiras, empoleirado se via os truculentos carcarás, ave símbolo de nossas andanças. A viuvinha, de rabo tão comprido quando o tesourinha-do-brejo, também se fazia presente. E assim fomos, fotografando pássaros enquanto o traçado da estrada de chão nos levava naturalmente para o leste. Os primeiros bancos de areia, comuns entre canaviais, começaram a me incomodar um pouco. Pilotar motocicletas em tal solo não é das tarefas mais agradáveis. Fui tentando me acostumar com esse fato (afinal teríamos ainda muitos quilômetros porvindouros nesse estilo) enquanto chegávamos a Paranapanema, cidade de 18 mil habitantes às margens do Reservatório de Jurumirim, preenchido com as águas represadas do já citado rio Paranapanema. Rodáramos, até então, 30km desde Campos de Holambra.
 
Maria-faceira
Viuvinha

Paranapanema

Balsa sobre Jurumirim
Deixando por asfalto os 600m de altitude de Paranapanema, desgostosos por ainda não termos visto as famosas elevações da cuesta, calhamos na margem sul da Represa de Jurumirim, um local aberto, sombreado por algumas poucas grandes árvores, essas, por sua vez, salpicadas por risadinhas, sanhaços-cinzentos e pintassilgos. Um barco aparentemente abandonado, daqueles que puxam balsas para a travessia da represa, servia de pouso às andorinhas, garças e biguás. Por falar em balsa, aguardamos por cerca de 20 minutos seu retorno, visto que estava embarcando veículos e passageiros na margem norte, pertencente ao município de Itatinga. Sem problemas. Ao embarcamos com moto e tudo no ferry-boat Santa Cecília, dispusemo-nos a admirar uma parte da imensidão de 450km² do manto d'água dos mais cristalinos no Brasil. A travessia dura 15 minutos. Vale frisar que não há pontes por aqui. Esse é, portanto, o único meio de derrocar o reservatório e acessar a asfaltada estrada municipal Doutor Ene Sab, do outro lado, essa ladeada por imensos eucaliptais. Logicamente não nos permitimos permanecer nela por um longo tempo, pois toda a viagem foi planejada com a intenção de ser o máximo possível fora de estradas convencionais. Tão logo localizamos a primeira entrada a oeste, tratamos de adentrá-la. Estávamos, agora, na zona rural de Itatinga, e todo o seu garbo, adornado pelos casais de pica-paus-do-campo nas galhadas secas, pelos silvos de amedrontados gaviões-carijós e pela correria atarantada de seriemas, nos rendeu primeiramente boas experiências oculares, mas depois nos cobrou um alto preço por isso. Em uma subida íngreme, a abre-alas da Serra de Botucatu, havia tanta pedra solta que nossa moto tombou duas vezes em um trecho de menos de 50m. Por sorte caímos sobre as gramíneas nas laterais da estreita estrada rural rusticamente aberta e não arcamos com sérias contusões. Se queríamos morros, aí estava o primeiro, e a recepção não fora das melhores. Enfim, chegamos a um platô de 850m de altitude, e lá encontramos o asfalto da rodovia Coronel Eduardo Lopes de Oliveira. Estávamos no alto da Serra de Botucatu.
 
Zona rural de Itatinga
Estrada arenosa

Engenheiro Serra

Periquitão-maracanã
Asfalto deve ser um dos sinônimos de tédio, principalmente quando é plano e muito bem capeado como o da rodovia em questão. Por sorte nossos mapas nos mandaram para o norte por uma estrada municipal, de chão. Nela, passando por mata-burros, aqueles duplos, separados por um vão e que facilmente fazem a vez de uma arapuca caso o motociclista não esteja atento e vacile por ali com a roda dianteira. A areia, sempre nossa non grata companhia, continuava esparsada por alguns curtos metros, revesando-se com o solo pedregoso. Derrocando todos esses engodos fomos avançando pelo alto da serra até o bairro rural Engenheiro Serra, pertencente a Itatinga. Aqui já houve algum progresso, trazido pela construção de uma estação de trem em 1953. Demolida, restam ali apenas alguns trilhos, poucos e simples casebres, um bar, a capela de São Benedito, os ipês floridos e os barulhentos periquitões-maracanãs que se exibem entre as flores amarelas. Toda essa placidez deveria se perpetuar na estrada até Itatinga, mas infelizmente um perrengue infernal se instaurou na sequência. Areia. Muita areia. Para completar, a noite (ou segundo a física, a ausência do dia) já dava as caras. Quase nem nos atentamos ao alaranjado pôr-do-sol sobre os milharais e aos gatunos tucanos, que sozinhos ou em trios saltitavam sobre as árvores semiapodrecidas dos capões de cerrado da cuesta. Por volta das 16h calhávamos na cidade de Itatinga, termo tupi que significa “pedra branca”. Naquele município de 17 mil habitantes, o segundo de nossa aventura pela Polo Cuesta, a 840m de altitude, pernoitaríamos após 101km rodados nesse primeiro dia. Foram 66km desde Paranapanema, incluindo uma travessia de balsa.

Pôr-do-sol sobre os milharais da cuesta
Tucanuçus
Itatinga

Abadia Cisterciense
Amadureceu o dia 24 e, com ele, nossa vontade de partir. Restava-nos ainda o território de mais nove municípios e o tempo era escasso. Incontinenti, então, registramos a igreja de São João Batista, de 1889, e partimos para o leste, deixando a zona urbana para ganhar novamente as estradas de chão da zona rural de Itatinga. Pouco mais de 1km depois adentrávamos, ao norte, o portal da Abadia de Nossa Senhora da Assunção de Hardehausen-Itatinga. Não vou me atrever a contar em pormenores a história da vinda dos cistercienses, de origem alemã, ao Brasil, pois seria um ato profano de minha parte. Afinal, são quase 900 anos de longevidade, uma saga que começou na Alemanha, em 1140, e que na época mais obscura da humanidade, sob o jugo da eloquência de Hitler, foi obrigada a migrar das terras germânicas para outros países, entre eles o nosso. A abadia, ou mosteiro, então, foi fundado em 1951, seis anos após o término da Segunda Guerra Mundial. Prefiro me ater ao que Luana e eu vimos: uma construção de linhas duras, quadradas, remetendo talvez ao neogótico francês, a exemplo do Santuário do Caraça, em Minas Gerais (link). Um amplo espaço totalmente arborizado, defronte as escadarias de acesso ao templo principal, abrigam pássaros de todas as sortes, desde suiriris a gaviões, como o gavião-miúdo. Deles provêm as únicas “vozes” que cortam o silêncio e a sensação de paz do local. Queria eu passar um tempo maior ali, fotografando aves e os pequenos mamíferos que certamente se escondem ou perambulam entre os pinheiros. Contudo, ainda tínhamos um longo caminho pela frente, e o dia estava apenas começando. Como última informação, vimos um irmão cisterciense passando pelo jardim nos fundos da abadia. Logo flagramos: é um santuário estritamente masculino.



Santuário de Nossa Senhora da Assunção de Hardehausen-Itatinga

Caminho para Pardinho
De volta à estrada de chão, rumamos para o leste, contornando propriedades rurais quase sempre de terrenos arrendados para grandes plantações de eucalipto. Em um certo ponto encontramos uma vicinal asfaltada que, por curvas serpenteantes, foi nos levando pelo flanco sul da Serra de Botucatu até um grande morro triangular de aproximadamente 900m de altitude. Abandonando temporariamente a moto no começo de sua trilha de acesso, subimos a pé, com a ajuda de cordas e corrimões rústicos de madeira, augurando obter uma visão privilegiada dos beirais da cuesta. Infelizmente isso não foi possível, visto ser o cume do monte um local apenas parcialmente “pelado”. O excesso de vegetação, predominantemente mata atlântica, inviabiliza a formação de clareiras. Encontrar um mirante aqui é impossível. Descemos, reavemos nossa moto e seguimos até que o asfalto cessasse e a terra fosse novamente nosso solo. Demos uma guinada para o norte, arrostando a areia fofa entre canaviais e o chão duro de eucaliptais, e chegamos à rodovia Castello Branco. Nela pendemos para o leste, mais uma vez, mas apenas por 2,5km, quando subimos para o norte por uma outra estrada de chão, agora território de Pardinho. Ascendemos, sem grandes paisagens, por entre as serras da Boa Vista e de São Fernando, calhando na Fazenda Santa Cruz e na Capela de Nossa Senhora de Aparecida, em ruínas. A altitude ali beirava os 950m. Nossa única companhia eram as barulhentas gralhas cancans.
Pequena elevação da cuesta
Capela de Nossa Senhora de Aparecida, em ruínas

Fazenda Santa Cruz

Campo de trigo mourisco
Com altitudes ainda elevadas, girando em torno de 930m, fomos avançando pelos imensos campos floridos de trigo mourisco e por pequenas propriedades rurais visando chegar rapidamente a Pardinho, terceiro município da Cuesta de Botucatu. A avifauna ululante novamente nos impedia de seguir sem paradas, obrigando-nos a registrá-la. As gralhas continuavam rondando. Os joões-de-barro e os sabiás-do-campo também. Em um grande mourão, de longe ouvíamos as bicadas do resistente pica-pau-do-campo trabalhando em sua nova moradia. E quando todo esse naturalmente equilibrado cenário desapareceu, dando lugar a uma horrenda pastagem seca pontilhada por cupinzeiros milimetricamente equidistantes, a atenção, que já se desviava de volta para a estrada de chão, ganhou sobrevida. Nesse mesmo pasto, espalhados por duzentos metros quadrados, inúmeros carcarás descansavam ao sol, ingerindo nos intervalos as larvas e os adultos de cupins que vertiam dos cupinzeiros estourados. Nunca vi tantos coabitando o mesmo ambiente. Deve ser por esse motivo que um quiriquiri solitário, de longe, apenas observava, não ousando se aproximar. Nesses deleites ornitológicos terminamos nossa cruzada pela zona rural de Pardinho, pensáramos. Fotografamos ademais, em um açude, para agora sim finalizar, o frango-d'água, a marreca pé-vermelho, a biguatinga e a maria-faceira. Quarenta e sete quilômetros após Itatinga atracávamos em Pardinho, município com 6 mil habitantes no alto de 900m da cuesta. Rumaríamos agora, partindo da Matriz do Divino Espírito Santo, para Bofete, quarta cidade na rota que traçáramos.

Pica-pau-do-campo

Pasto de carcarás

Pardinho

Seriema
De Pardinho subimos para o norte por uma serpenteante estrada municipal asfaltada na crista da Serra Comprida. Seis quilômetros depois acessávamos uma via de terra a leste e fomos perdendo altitude, caindo para a casa dos 700m. Essa súbita queda não foi motivo para perdermos o interesse pela paisagem. É que aqui, desde os primeiros metros no solo arenoso e incerto, avistávamos, ao longe, o cartão postal mais emblemático da Cuesta de Botucatu: o Morro das Três Pedras. Enquanto nos aproximávamos para uma vista mais detalhada, a partir de um mirante na Fazenda Três Pedras, registramos as seriemas que, em casais, ora ou outra atravessam as estradas rurais e somem em meio aos eucaliptos. Já no mirante, separados do monumento natural apenas pelo vale do rio do Peixe, admirávamos em minúcias um morro de pedra, largo, preso em meio a dois morros também de pedra, mas estreitos. É o Morro das Três Pedras, com pontos culminantes na centena dos 700m. Que lugar magnífico! Tanto que fomos acompanhando-o no horizonte enquanto trilhávamos, sentido sudeste, pelas zonas rurais de Pardinho e Bofete. As vistas que se revelavam, à medida que nos aproximávamos de Bofete, quarta cidade de nossa rota, eram muitas vezes divergentes da testemunhada no mirante. A natureza, assim como personalidade dos humanos, tem muitas faces. Passamos ainda pelos contrafortes de alguns outros morros de menor apelo estético, como o Grande e o dos Órgãos. Já na zona rural de Bofete, cercados por búfalos e vigiados do alto por gaviões-caboclos em uma estrada praticamente plana, a 600m de altitude, vencíamos os últimos metros dos 35km trilhados desde Pardinho e atracávamos defronte a Igreja de Nossa Senhora da Piedade, no núcleo de um município de 10 mil habitantes.

Morro das Três Pedras

Vista sul

Bofete

Casimiros
Como nosso escopo não era esmiuçar os centros urbanos da cuesta, logo deixamos a zona urbana de Bofete. Avançamos primeiramente para o norte, por uma via asfaltada. Seis quilômetros depois pendíamos para o leste, passando pelos bairros rurais de São Roque Novo e São João. Aí o asfalto desapareceu e, novamente para o norte, fomos por terra, ganhando uma estrada bem batida até um local conhecido como Casimiros, uma comunidade rural de simples casas de madeira. No céu límpido, sobre nossas cabeças, o gavião-de-rabo-branco espreitava. A freirinha, notadamente encalorada, o que era perceptível pelo seu bico que permanecia aberto, empoleirava-se nos mourões. O beija-for-rabo-de-tesoura, a exemplo do tesourinha-do-brejo no dia anterior, dava um espetáculo à parte, sugando o néctar de uma lantana que crescia destrambelhadamente entre a cerca e a estrada. Anus-pretos, em bandos, obedeciam ao grito do “sentinela” e debandavam mediante nossa aproximação. Reencontramos o asfalto, continuamos rumo ao leste por dois quilômetros e descemos ao sul por uma estrada de chão até o bairro de Binos, já pertencente ao município de Conchas, quinta cidade de nossa rota. Ali registramos, nos charcos, jaçanãs e seus bem-humorados filhotes se refrescando. Curiosas crianças encarapitavam-se nas janelas e portões de madeira, curiosos com o barulho do motor de nossa motocicleta que, por ora, disturbava a calmaria local. No término desse bairro nos deparamos com uma porteira fechada. Abrindo-a, começamos a subir o chamado Alto da Padilha por uma estrada aparentemente há muito não utilizada. Ao longe víamos Conchas e seu conglomerado urbano de 18 mil habitantes. Quarenta e seis quilômetros depois de Bofete apeávamos defronte a Paróquia do Senhor Bom Jesus.

Freirinha

Beija-flor-rabo-de-tesoura

Meninos no bairro de Binos

Conchas
Se existiu nessa viagem um momento que definiu a palavra AVENTURA com certeza essa momento foi a peleja que arrostamos no trecho entre Conchas e Anhembi. Já eram passadas 16h e gozaríamos de apenas mais uma hora e meia de luz solar para derrocar os 50km de estradas de chão entre essas duas cidades. Pouco, eu diria. Optamos por arriscar, saindo do centro urbano de Conchas pelo oeste, e 4km depois nos deparamos com uma porteira fechada, dentro de uma propriedade particular. Fomos informados pela proprietária que, depois da porteira, nada mais havia. Apenas mato, um rio e nenhuma estrada. Meus mapas se equivocaram. Retornamos um bocado, subimos para noroeste, contornamos a igreja rural de São Roque e encontramos mais cercas fechadas de propriedade particulares. Abrimo-las, mas todas nos levaram a outras cercas ou eucaliptais intransponíveis. Restou-nos volver à igreja e seguir para o norte. A situação se agravou. Estávamos literalmente pilotando sobre o pasto, visto que não havia mais estradas. O sol se pôs, a noite nos abraçou e, incapazes de localizar alguma via para Anhembi, optamos por retornar a Conchas para a pernoite desse segundo dia. Mais surpresas, contudo, ocorreram. Pela primeira vez em mais de quatro anos que venho viajando sobre duas rodas um pneu furou. Luana e eu já planejávamos dormir no mato. Por sorte eu trazia na mala traseira da moto um daqueles gases para reparo de câmaras. Se o furo fosse pequeno, talvez ele desse uma sobrevida ao pneu, de forma que pudéssemos trilhar os 6km que nos apartavam de Conchas, onde talvez localizássemos um borracheiro. O spray de gás funcionou, felizmente. Em Conchas, entretanto, nenhum borracheiro aceitava reparar a câmara. Geralmente não gostam de mexer em pneus de moto. O pior é que nem um local para dormir encontramos. Restou-nos torcer para que o gás aguentasse o baque por mais 55km, que é a distância de Conchas a Anhembi por asfalto, via Marechal Rondon e Samuel Castro Neves. Augurávamos ir por terra, mas não foi possível, então que fosse por vias tradicionais. Pernoitamos no entorno da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, no coração de uma cidade com 6 mil habitantes, a sexta de nossa rota. O gás surpreendentemente aguentara.

Garibaldi-fêmea

Igreja rural de São Roque

Pôr-do-sol sobre as pastagens de Conchas

Anhembi
Amanheceu o dia 25 e com ele minha preocupação em consertar o pneu dianteiro da moto. O gás do spray mantivera a câmera cheia por toda a noite, mas eu não queria surpresas no meio do caminho e, portanto, tratei logo de procurar um borracheiro. Porém, algumas coisas só são possíveis em cidades minúsculas como Anhembi. Os únicos dois borracheiros da cidade, acreditem, eram parentes. Até aí, tudo bem, se não fosse pelo fato de um membro da família dos mesmos ter morrido no dia anterior. Resultado: os dois foram ao enterro. Luana, eu e nossa avariada moto tivemos que seguir caminho contando com a sorte e confiando no spray. Adentramos uma estrada de terra a oeste da cidade e fomos seguindo sentido Botucatu, avistando aves como o canário-da-terra, a andorinha-serradora e o tucanuçu. Passando sobre a ponte do ribeirão Bom Retiro, afluente do Tietê, flagramos um bando de gralhas-picaças, uma das aves mais belas da nossa avifauna, amarelas e pretas, com uma crista arredondada e olhos azuis. Havia visto esse espécime nos arredores das Cataratas do Iguaçu, em Foz do Iguaçu, e pela primeira vez os visualizei em São Paulo. Prosseguindo, passamos, já na zona rural de Botucatu, pelo bairro de Piapara e sua Capela de São Domingos. Numa última esticada, ora por entre altos eucaliptais ora por terras onde o corte fora recente, avistamos, atravessando o rio Bocaina, que corta a estrada, o Morro do Peru, com 795m de altitude. Vale frisar que vínhamos na casa dos 600m desde Anhembi. Subimos novamente a Serra de Botucatu e entramos na maior cidade da Polo Cuesta, a grande Botucatu, com quase 130 mil habitantes. Foram 45km desde Anhembi.

Bairro Piapara

Gralha-picaça

Chegando a Botucatu

Morro do Peru
A palavra Botucatu se origina do termo ybytucatu, ou “vento bom”, em tupi. Era uma região praticamente desocupada pelo homem branco até os idos de 1830, visto estar em uma parte elevada da cuesta, com altitudes superiores a 800m. Ali residiam os índios Caiouás. Por falar em indígenas, há indícios de que por aqui passavam os Incas em seu trajeto entre o Atlântico e o altiplano andino peruano. Era o denominado Caminho do Peabiru, trilhada, à época pré-descobrimento, a pé, se estendendo por mais de 3 mil quilômetros cortando o território de 4 países (Peru, Bolívia, Paraguai e Brasil), terminando na Capitania de São Vicente, hoje Estado de São Paulo, passando em seus derradeiros quilômetros pelo Planalto de Piratininga, onde está edificada atualmente a megalópole capital São Paulo. Se fatos históricos não podíamos atestar, o mesmo não pode se dizer da imponência e opulência presente na gótica Catedral Metropolitana de Santana, ali a nossa frente, uma obra de 1943 que impressiona pelo cinza enegrecido de suas paredes. Terminado nosso registro, saímos à caça de um borracheiro que aceitasse mexer no pneu dianteiro da moto. Após 3 respostas negativas, encontramos uma alma caridosa já na saída para São Manuel, nosso próximo destino na cuesta. Enquanto o pneu era extraído, minha pobre moto amargava seu terceiro tombo da viagem. Sem danos e agora com o pneu pronto para mais terra, saímos pelos canaviais visando vencer rapidamente os 30km até São Manuel.

Catedral Metropolitana de Santana

Consertando o pneu furado

Adeus, "vento bom"

São Manuel
Gostaria eu de dizer que a paisagem entre Botucatu e São Manuel é exuberante, mas simplesmente não posso. O caminho é praticamente todo formado por estreitas vias arenosas e barrentas entrecortando canaviais altos e baixos. É um daqueles locais pelo qual se quer passar logo, sem ao menos se dar ao prazer de uma parada para fotografias. Por isso apeamos apenas defronte a Igreja de São Manuel, neogótica como a de Botucatu, mas consideravelmente menor e de torre única ao invés de dupla. Obras estavam sendo levadas a cabo em seu interior, e os homens que ali trabalhavam gentilmente nos permitiram a entrada. Simples, sem muitos vitrais ou adereços, e pacienciosa como a cidade que a cerca, com seus pouco mais de 40 mil habitantes. Para não sermos eivados por esse espírito letárgico, continuamos na toada para o sul rumo à penúltima cidade da cuesta: Pratânia. E lá vamos nós, cruzando a rodovia Marechal Rondon e enfrentado mais terra. Foram mais 15 entendiantes quilômetros até o pacato bairro Pratinha, já em território de Pratânia, com casas simples de madeira, uma praça central e uma igrejinha, a de Nossa Senhora da Candelária. Foi um presságio para Pratânia, a terra da consagrada dupla caipira Tonico e Tinoco (embora tenham nascido em São Manuel e Botucatu, respectivamente). Há até um museu por lá homenageando-os. Com 5 mil habitantes espalhados em volta da Igreja do São Bom Jesus, teve seu nome originado de tropeiros que, quando aqui chegaram, no século XIX, acreditaram ter encontrado prata nas margens do rio Jacu. Era, na verdade, um composto de sulfeto de chumbo. Se nas minas mineiras existia o ouro de tolo, aqui foi a pseudo-prata que vitimou os desavisados.

Interior da Igreja de São Manuel

Bairro Pratinha, em Pratânia

Pratânia

Suiriri-pequeno
 Saímos de Pratânia em uma toada moderada. Afinal, apenas 25km nos apartavam de Areiópolis, a derradeira cidade da Cuesta de Botucatu na rota que debuxáramos. A avifauna premia a morosidade, e fomos agraciados, logo nos primeiros metros de uma estrada rural a oeste de Pratânia, com a aparição do suiriri-pequeno, de padrão de cores ligeiramente discrepante do suiriri, aquele comum nos grandes centros urbanos. A cana, a exemplo do trecho Botucatu-São Manuel, continuou sendo a tônica da paisagem, numa altitude que se esgueirava pouco acima ou pouco abaixo dos 700m. Um lago de águas tranquilas foi o único local que realmente mereceu alguma atenção. A terra se findou no asfalto da Estrada Municipal Lencóis Paulista-Pratânia. Como Lençóis não estava em nossos planos, pendemos para o leste tão logo avistamos a Capela de Santa Cruz solitária em uma rotatória. Aí foi só enfrentar mais areia, cana e esporadicamente alguns chopins-do-brejo alçando voo, assustados com nossa passagem, cruzar a Marechal Rondon e infiltrar-se por Areiópolis, município com pouco mais de 10 mil habitantes. Finalizamos ali, em frente a igrejinha da Santa Cruz, nossa incursão pela cuesta, após 474km rodados em 3 dias, sendo mais de noventa por cento do caminho todo trilhado em estradas rurais precárias. O calor de Areiópolis e o desgaste físico nos incitaram a logo partir dali e voltar para as bandas de Americana, uma cidade onde, infelizmente, serras não existem para descansar nossos olhos da mesmice urbana.

Lago na zona rural de Pratânia

Flor do aguapé

Areiópolis

O regresso
A volta foi tão rápida quanto as sucessivas entradas e saídas de Eike Batista da lista dos mais ricos do mundo da Forbes. Descemos pela Marechal Rondon, passando pelos entornos de São Manuel, e subimos para o norte até Santa Maria da Serra pela SP-191, que passa sobre um dos braços da Represa de Barra Bonita, do rio Tietê. Chegamos a São Pedro, no alto de uma das mais belas serras paulistas, a de São Pedro, e descemos para Águas de São Pedro, cidade onde o comércio é ululante. Daí foi só vagar até Piracicaba e acessar a SP-304, passando por Santa Bárbara até finalmente apearmos em Americana. Rodamos, no total, 760km, mas nossos andrajos empoeirados com a puaca da Cuesta de Botucatu davam a entender que nos submetêramos a uma faina de maior magnitude. Enfim, estávamos a salvo da areia e de outros perigos da serra do “vento bom”, mas também distantes de suas maravilhas que ainda resistem ao avanço da monocultura canavieira, notadamente em sua porção oeste.
Que, como todos os andejos que nada tem a perder, sejamos livres, tanto a ponto de querermos sempre andar, mesmo não sabendo para onde ir. E que, mesmo sabendo para onde ir, nunca tenhamos um lugar como destino final, mas sempre como metade do caminho para um outro local que, felizmente, nunca sabemos qual será.

 
Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.


E abaixo, um blues composto especialmente para a Cuesta de Botucatu.