Por quantos caminhos perambulo? Por incontáveis, e sempre com o mesmo surrado par de botas, presente de meu pai. Descobri-me mais forte do que outrora acreditava ser. Sou testemunha ocular de incomensurável pobreza material e espiritual, e ao mesmo tempo me vejo inserido no que a “inocente” ignorância humana ainda não conseguiu extinguir, por mais que esteja engajada a tal: a garbosidade de nossos ecossistemas e de suas paisagens. Eu poderia ser apenas mais um que olha mas prefere não enxergar. Contudo, trabalho para que meus olhos esmiúcem o que observo, pois tenho a certeza angustiantemente absoluta de que tudo pode não estar em seu devido lugar se um dia eu decidir regressar.
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O carcará solitário, em Barretos |
Viajei sozinho. Infelizmente uma jornada deste porte é tida como um ato insano por muitos. Se eu não a levasse a cabo ao estilo “Miragaia René Angelino” certamente permaneceria em casa, o que considero deprimente. Gostaria de ter meus companheiros comigo mas não posso esperá-los, uma vez que os mesmos carregam outras aspirações e nem sempre priorizam a aventura, que para mim é o que norteia a fuga da existência mesquinha a que estamos fadados. Tenho a minha “poderosa”, no fim das contas. Sozinho, portanto, realmente não estou.
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Rio Grande |
No dia 12 de julho, da janela de minha casa, pude observar um dos mais belos nasceres-do-sol dos últimos anos. A primeira foto da viagem foi, então, registrada por minha câmera. Deixei meus familiares e amigos apreensivos ao debandar, às 8 da manhã. Bem sabem que esse é o meu destino, e logicamente uma hora ou outra todos terão que se acostumar com o fato de sempre me verem partir. Segui pelas já conhecidas Anhanguera e Washington Luiz até a cidade de Araraquara, onde optei por "dobrar" à direita na rodovia Brigadeiro Faria Lima. Passei por Barretos e cheguei à Colômbia, já na divisa SP/MG. Uma parada no Rio Grande, como de praxe, inspirou-me a prosseguir, agora no estado de Minas Gerais.
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Pelo cerrado de Minas Gerais |
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Ema no cerrado |
Estava no cerrado. O tempo quente e seco começou a me assolar. As rodovias federais, todas em reforma, tornaram a viagem lenta. Não reclamei pelo fato de estar em um tipo de vegetação que aprecio demasiadamente, apesar de os ventos da mesma “destruírem” o meu pescoço. Ao visualizar um bando de emas caminhando a poucos metros do acostamento, encostei a “poderosa” e tirei algumas fotografias. Dando continuidade, passei por Prata e Ituiutaba. Cheguei à divisa MG/GO e atravessei a ponte sobre o rio Paranaíba, alcançando São Simão, no estado de Goiás. Decidi pernoitar em solo goiano, visto que havia rodado, a esta altura, 700km.
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Cataratas de Itaguaçu |
São Simão foi uma grata surpresa. O cartão-postal da cidade é a Praia Artificial do Lago Azul, de onde é possível apreciar um fim de tarde com um céu repleto de cores. As nuvens esparsas e ralas criam efeitos interessantes tempos após o sol ter se posto. Do cais pude apreciar esses fenômenos e fotografá-los. Logo ao acordar me dirigi ao distrito de Itaguaçu (muito embora os moradores insistam em pronunciar Itaquaçu) para conhecer as Cataratas do Rio Itaguaçu, uma cadeia de 180 graus de cachoeiras que impressiona pelo volume de água e barulho consequente. Um tímido arco-íris em meio às águas completou o cenário. Apesar da beleza do espetáculo, tive que prosseguir, uma vez que sequer na metade do caminho estava.
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Fim de tarde em Goiás |
As rodovias federais estão todas em obras, como supracitado. Lentamente passei por Paranaiguara, Cachoeira Alta, Aparecida do Rio Doce, Jataí, Mineiros e Santa Rita do Araguaia, esta última já na divisa GO/MT. O marco divisório de estados é o Rio Araguaia, mais parecido com um córrego do que propriamente com um rio. Para se ter uma base das dimensões do mesmo, toma-se como referência a ponte de menos de 30 metros que o atravessa. Transpassei-a, alcançando então o estado de Mato Grosso, mais precisamente a cidade de Alto do Araguaia. Nela fui parado por um policial rodoviário federal, que gentilmente me passou informações sobre a estrada que estava por vir.
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Pôr-do-sol na Praia Artificial do Lago Azul, em São Simão/GO |
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Serra da Petrovina |
Os caminhões e o asfalto do Mato Grosso são percalços aos quais eu não estava habituado. Há muitos grãos de milho espalhados pela pavimentação e em alguns momentos é necessário escolher em quais buracos “cair”, visto que são muitos. Tentei selecionar os menores, mas como todo ser humano fiz algumas más escolhas. Quilômetros depois e eu estava na Serra da Petrovina. Todos deveriam em algum momento da vida descer esta serra, seja de moto, bicicleta ou a pé. Suas grandes montanhas com cumes platôs são serpenteadas por uma estrada admiravelmente perigosa, e a beleza do local pode tirar a atenção do condutor em alguns momentos. Aqui acontecem inúmeros acidentes ao longo do ano, e a maioria é fatal.
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Mirante do Centro Geodésico |
Cheguei à Rondonópolis, enfrentei a poeira e o tráfego local e me dirigi à Jaciara, onde pernoitei. No outro dia acordei disposto a conhecer a Chapada dos Guimarães, que não estava nos meus planos originais. Adentrei uma estrada que me levou por Dom Aquino e Campo Verde. Logo na entrada da cidade de Chapada dos Guimarães fotografei a Cachoeira da Martinha, duas quedas d'água em forma de degraus. No centro da cidade me estabeleci em um hotel, deixando as tralhas atreladas à moto para rodar livremente pelos atrativos locais. Tentei conhecer a caverna Aroe Jari, mas um “mata-burro” com vãos muito separados impossibilitou a minha chegada. Tive que voltar e procurar outros pontos. Gostei particularmente do Mirante do Centro Geodésico da América do Sul, de onde é possível ver a cidade de Cuiabá, que segundo cálculos de Marechal Rondon e do Exército Brasileiro está realmente edificada no centro da América do Sul. O fim de tarde nele é enigmático, pois ao mesmo tempo se tem uma faixa alaranjada no céu ao sul e tons arroxeados em volta da lua ao norte.
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Chapada dos Guimarães |
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Cachoeira dos Namorados |
Posso utilizar este espaço também para criticar, muito embora não me sinta à vontade para tal. O Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, infelizmente, estava fechado. Segundo os guardas da portaria, não há monitores para guiar os visitantes no interior do parque. Por um lado há um aspecto positivo: os recursos naturais são preservados, uma vez que a interferência humana direta inexiste. Todavia, para quem havia viajado 1600km até então, não poder ser agraciado com a natureza do parque muito me desagradou. Que nossos governantes olhem com mais carinho a situação de nossos espaços naturais preservados. E principalmente que “olhem” para os que ainda não são preservados e desesperadamente necessitam passar a ser.
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Descendo para Cuiabá |
Sem mais o que fazer, comecei a descer a chapada em direção a Cuiabá. No caminho visitei outras cachoeiras, algumas delas em propriedades particulares. O mirante Ninho da Águia, que também chamou a minha atenção, estava fechado para “melhor se adequar ao turismo”. Pelo menos é o que dizia uma faixa na portaria do local, que se situa ao lado de uma base militar com torres do CINDACTA. Para maximizar a minha falta de sorte, minha motocicleta começou a apresentar problemas a 8km de distância de Cuiabá. A gasolina cara e ruim do Mato Grosso fez mais uma vítima. Ancorei em uma pamonharia à beira da estrada e prestativamente contactaram uma oficina no centro da capital matogrossense. Pouco tempo depois eu e minha moto seguíamos de camionete ao núcleo de Cuiabá para remediar os danos causados pelo líquido cuja matéria-prima provoca desde grandes guerras até pequenos problemas em carburadores.
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A última cachoeira da Chapada dos Guimarães com sentido a Cuiabá |
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Clodoaldo, sua equipe e eu na oficina |
Graças a esse empecilho pude conhecer Cuiabá. Estive por algumas horas na cidade escaldante e comi uma feijoada às margens do Rio Cuiabá com o termômetro marcando 37 graus. Clodoaldo, um mecânico experiente de Itapetininga/SP, consertou minha motocicleta rapidamente e pude continuar rumo ao Pantanal. Passei ainda por Várzea Grande e segui por duas rodovias que me levaram à Poconé, portal de entrada e capital do Pantanal Norte. Como já era tarde, decidi adiar para o próximo dia a travessia da Transpantaneira.
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Transpantaneira e charcos |
No sábado realizei um antigo sonho: enfrentar, sozinho, a MT-060, mais conhecida como Transpantaneira. Com seus 145km de terra e 125 pontes de madeira (é a rodovia com o maior número de pontes do mundo), tem seu início na cidade de Poconé e se estende até Porto Jofre, às margens do Rio Cuiabá, praticamente em linha reta. Essa rodovia foi idealizada no começo de 1970 e tinha em seu projeto a ambição de ligar o Mato Grosso ao Mato Grosso do Sul, unificando assim os dois estados pantaneiros. Começou a ser construída em 1972, e quatro anos depois seu debuxo foi abandonado. Não foi edificada uma ponte sobre o Rio Cuiabá e estradas não foram “abertas” no Pantanal Sul. Basicamente o viajante deve trespassar sua extensão e voltar, pois ela não leva a lugar algum. Como aventureiro e ávido por conhecer a fauna pantaneira, foi o que me dispus a fazer. O término da estrada pode dar de cara com o nada. Todavia, o importante é o que se mostra durante o caminho. Neste caso, para mim, os meios justificaram o fim.
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A avifauna pantaneira |
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Tuiuiús |
Nunca vi tantos animais dividindo o mesmo espaço. Tuiuiús (ave símbolo do Pantanal), cabeças-secas, jacarés, capivaras, gaviões-belos, martins-pescadores e garças cohabitam os charcos formados pela chuva nas laterais das rústicas pontes de madeira. Um carcará e um urubu-de-cabeça-vermelha “dialogavam” no meio da estrada e pareciam não se incomodar com a minha presença. Um filhote de veado, que parecia perdido, foi fotografado antes de se embrenhar em meio à vegetação mais densa. Há relatos e fotografias de pessoas que viram onças, sucuris e outros animais raros. Não tive essa felicidade. No pôr-do-sol, enquanto voltava para Poconé, consegui fotografar um casal de tucanos sobre uma árvore seca e alguns gaviões-belos.
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Cabeça-seca |
No domingo, dia 17, me dirigi ao Porto Cercado. A Estrada Parque que leva a ele é asfaltada, tem 40km de extensão e também encontra seu fim no Rio Cuiabá. Como é época de seca, poucos charcos são vistos nos seus arredores, e mesmo assim muitos animais os povoam. Por falar em seca, é importante lembrar que o Pantanal é um bioma caracterizado por áreas alagáveis, que em estações chuvosas é praticamente todo tomado pela água, voltando a mostrar sua vegetação típica de savana estépica nas estações secas, que vão de maio a setembro. Muitas pessoas acreditam que o Pantanal é um grande pântano, pela semelhança dos nomes, mas a verdade é que há poucas áreas pantanosas dentro dele.
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Maçaricos-reais |
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Rio Paraná |
Hora de principiar o retorno. Na segunda-feira deixei Poconé e o Pantanal Norte. Consegui chegar à Aparecida do Rio Doce, em Goiás, no começo da noite, e por lá resolvi pernoitar. Decidido a visitar uma velha amiga, na terça-feira segui por Caçu e cheguei à Lagoa Santa, na divisa GO/MS. A ponte sobre o Rio Aporé, divisa natural dos estados, desmoronou devido a temporais no fim de janeiro de 2010. Por sorte uma pequena balsa, que suporta apenas uma moto ou 3 pessoas por vez, me transportou para o outro lado. Três horas depois eu estava em Três Lagoas/MS, cidade que conheci em uma outra oportunidade. Fiquei na casa de Priscila por dois dias, aproveitando o tempo para fotografar a ponte ferroviária sobre o Rio Paraná e a Lagoa Maior. Tive o prazer também de saborear o tererê paraguaio vendido no camelódromo da cidade.
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Solitário feito um gavião-belo |
Na quinta-feira eu estava de volta ao estado de São Paulo, após transpassar a Usina de Jupiá na divisa MS/SP. Antes do meio-dia me encontrava em São José do Rio Preto, cidade na qual residem tios e primos. Dormi por lá e completei o retorno na sexta-feira, não sem antes passar pela perigosa e linda serra entre Torrinha e Santa Maria da Serra. Foram, ao todo, 4250km rodados, 5 estados desbravados e 11 dias de aventuras para guardar na memória. Cheguei magro, fisicamente debilitado e maltrapilho. Minha motocicleta pesava o dobro de tanta terra encrustada. Contudo, todos os sacrifícios foram recompensados. Ninguém pode usurpar o que vemos e vivemos. Sempre que retorno um profundo sentimento de dó se apossa de mim. Sinto pena daqueles que não podem ver o que vejo, seja por falta de oportunidade seja por pusilanimidade. Em um mundo consumido pelo trabalho alienado, estresse, bebidas e entorpecentes, viajar é uma alternativa sensata. Viajar é o meu ópio. É o meu escape.
Para onde vou agora? Não sei, mas sei que vou. Enquanto meu corpo cansado gozar de um mínimo de resistência para algum lugar irei. Ainda há o que conhecer antes que tudo acabe; ainda há também pessoas, como eu, dispostas a conhecer tudo o que um dia vai acabar. Aos leitores que se apegam às palavras de minhas postagens, hei de dissuadi-los de nefasto intento. Se realmente quiserem sentir o zéfiro, os sons da fauna e a beleza da flora, esqueçam as impressões escritas por mim sobre eles. Conheçam-lhes, por si sós, e construam as suas. E, ulteriormente, peço encarecidamente que troquem experiências comigo.
E abaixo um blues inspirado pela fauna pantaneira. Dedico-o também a Mariângela “Monami”, aos meus pais e a Franciane pelo suporte logístico e psicológico durante os dias em que estive, sozinho, na estrada. É bom poder contar com a ajuda de pessoas queridas mesmo que não estejam por perto.
"Descobri-me mais forte do que outrora acreditava ser." - colocar na lista de coisas boas da vida.
ResponderExcluirLer os relatos de suas viagens é sempre uma maneira de viajar junto, além de conhecer e aprender muito.
As fotos, não preciso comentar, são perfeitas!
Obrigada pela lembrança ao final do relato, é bom saber que, mesmo de maneira ínfima, ajudei de alguma forma...
Beijos!
Parabéns Marcão por esse relato. Mesmo com sono e cansado não consegui parar de ler este magnífico texto. Gostaria muito de ter pelo menos 1/100 da sua coragem e espírito de aventura...
ResponderExcluirE ao ler seu texto sinto-me ao menos revigorado com a expressão de suas alegrias e descobertas.
Mais uma vez, meus parabéns!!!
Ser sua amiga significa um orgulho muito grande para mim posso dizer que fiquei bastante emocionada e admirada pela sua determinação e bom humor que concretizou uma viagem inesquecível como essa.
ResponderExcluirÉ notável que as pistas eram altamente precárias, estruturas muito aquém das que podemos encontrar hoje nesse mesmo trajeto, isso sem falar em ir de moto, que era indiscutívelmente um coragem principalmente por ir sozinho (na minha opinião foi com Deus) para tal trajeto, porém de forma alguma limitou os planos.
Voce serve como parametro para nos lembrar que não existem limites para fazer algo de que se irá recordar por toda a vida. Muitas pessoas podem fazer isso e não faz nem 1/10 da viagem acima, bem como não leva pra casa um motivo de orgulho como esses. Parece clichê, mas isso realmente não tem preço.
Como sempre amei o Blues e este com um motivo especial um mega master abraço e um beijo no coração por ser esta pessoa pra lá de especial.
Muito bom...
ResponderExcluiré bom saber que o nosso país ainda dispõe de uma beleza única e perfeita
parabéns pela matéria e pela aventura
abraço