segunda-feira, 18 de junho de 2012

Serra da Canastra – de 06 a 10 de junho de 2012


Qualquer lugar é melhor do que o solo que ora me serve de sustentação. Minha lei suprema de que a estática é a pior das atitudes humanas – ou a falta delas – em nenhuma outra época me foi mais condizente do que neste exato momento. O mundo parece querer revelar-se em seus mais íntimos detalhes, expondo-me pormenores que, em uma fase mais juvenil e abstrata de minha vida, eu simplesmente ignorava. Todos os sinais estavam lá, escancarados. Todos os cheiros, desde os adocicados aromas das campinas até as mefíticas carcaças em decomposição, alimento exclusivo dos carniceiros alados da nossa notável avifauna. Todos os sons, começando pelo zunir ininterrupto e eloquente das asas de grandes mosquitos hematófagos, passando pelos gritos destrambelhados das gralhas cancans e terminando com o tonitruante contato da água com o fundo de um vale. Toda as serras e seus desenhos que, em um primeiro momento, hipnotizam e desnorteiam os sentidos, e depois, num segundo e terceiro momentos, parecem inverter sua primeira impressão, passando então a nortear e a tentar emprestar um real sentido, um alento ao espírito de um viajante-errante como eu. Enfim, sem medo de redundar, todos os lugares são melhores do que aqui, e é isso que me mantém tocando em frente.
Apenas como reforço, ressalto que todas as fotos são clicáveis para uma mais ampla visualização.
Saída de Ipeúna
A ideia de uma incursão para a Serra da Canastra partiu de meu grande amigo Newton Norio Nabeta, camarada de longa data, daqueles que o tempo, a distância e os vieses que a vida de cada um segue não são capazes de apartar. Grande admirador da região, o mesmo me instou a visitá-la em sua companhia. Estariam juntamente conosco Thaís Diniz Reis e Dona Noriko, namorada e mãe de Newton, respectivamente. Eu, que em inúmeras ocasiões tive a oportunidade de circundar os limites do Parque Nacional, chegando inclusive a ver os desenhos de seus píncaros, finalmente teria companhia para desbravar o cerrado imponente deste pedaço de Minas Gerais. Tínhamos um objetivo específico em mente: visualizar, e se possível fotografar, a vida selvagem livre, abundante nos domínios da Canastra. O tempo sisudo que afligira os dias anteriores ameaçava a realização de tal tarefa, já que tendenciava a prolongar-se pelos dias da incursão, eivando-os com seu entristecedor tom acinzentado. Contudo, em nenhum momento deixamos de pensar na possibilidade de extrair algum proveito dos belos cenários, longos a perder de vista, por mais que as intempéries nos dissuadissem de grandes ambições visuais. Foi pensando assim que parti com minha moto, no dia 06 de junho, de Sumaré, com direção à pacata Ipeúna, nas redondezas de Rio Claro, onde me juntaria aos supracitados parceiros da faina que teria início no alvorecer do dia posterior.
Pica-pau-do-campo
Já era noite, o aguaceiro descia desenfreado dos céus e eu tinha pressa. Em pouco mais de trinta minutos venci os 90km de distância entre Sumaré e Ipeúna, utilizando, para tal, as vias Anhanguera e Washington Luiz. Nos 590 metros de altitude do município de apenas 7000 habitantes, aos pés da Serra de Itaqueri, hospedei-me na casa de Newton. Era evidente que ambos ansiávamos pelo dia seguinte. Planejáramos essa viagem com muita antecedência. Para mim a incursão seria diferente, primeiro por estar no alto de uma chapada que eu apenas havia visto no horizonte, como já frisado; e segundo por ter que viajar de carro, após a pertinácia de Newton em insistir para que eu fosse juntamente com os três, no mesmo veículo, para dividirmos as despesas. Vi muitas vantagens no desenrolar de todo o caminho palmilhado por quatro pessoas e quatro rodas. Um amigo de longa data a acompanhar-me; uma bióloga, Thaís, pronta a sanar algumas dúvidas sobre o cerrado da Canastra e sua ululante fauna; e Dona Noriko, profundamente interessada na flora repleta de cores na altitude da serra. Eu, com meu sempre notável e aflorado interesse pela avifauna, procuraria também aprender mais sobre os mamíferos que vagam livremente pelos campos limpos do Parque Nacional da Serra da Canastra, criado em 1972 com o objetivo de proteger as nascentes do São Francisco, o maior rio exclusivamente brasileiro.

Hidrelétrica de Furnas e o Rio Grande

Zona Rural de São Roque de Minas
O dia 07 nem recebia seus primeiros raios de sol quando desorganizadamente empilhamos nossa bagagem no veículo que nos levaria ao destino pretendido. Deixamos Ipeúna sob uma fina garoa, às 6 da manhã, cruzando o vale do Rio Passa Cinco em direção a Rodovia Anhanguera. Revoadas de garças-vaqueiras sobrevoavam o teto que, admito, não estou acostumado a ter por estar sempre sobre uma motocicleta. Na altura de Araras pendemos para Pirassununga, abandonando a Anhanguera e transpassando o Rio Mogi em Cachoeira de Emas. Poucos minutos depois contornávamos Santa Cruz das Palmeiras e Mococa, adentrando o Estado de Minas Gerais por Arceburgo. Com os cafezais preenchendo a paisagem, passamos por Guaxupé e Muzambinho, vencendo a sinuosidade da rodovia até Monte Belo, e posteriormente subindo e descendo pela serra até Alterosa, já na região do Lago de Furnas. Em seguida viriam Areado e Carmo do Rio Claro, esta última com sua imponente Serra da Tormenta. Sempre com a imensidão do Mar de Minas à direita, acessamos a MG050 e adentramos um desvio que nos direcionou a Hidrelétrica de Furnas. Sobre a barragem tive a oportunidade de observar os imensos cânions formados pelo alagamento da represa e também irrequietos pica-paus-do-campo. De um mirante obtivemos uma ampla panorâmica da hidrelétrica, construída em 1963, e das corredeiras do Rio Grande, que formam pequenas ilhotas imediatamente após a passagem da água pelas oito elongadas e delgadas turbinas. Prosseguindo, contornamos o norte do Lago de Furnas, por Capitólio, e chegamos a Piumhi, trespassando-a. Paralelamente ao Rio São Francisco, mas em sentido contrário ao de sua corrente, topamos com São Roque de Minas, cidade com aproximadamente 7000 habitantes e que, por estar situada aos pés da Serra da Canastra, seria nosso “quartel general” durante os dias em que desbravaríamos este ermo mineiro.
Portaria do PN da Serra da Canastra
Rodáramos pouco mais de 500km até então. As badaladas do sino da matriz de São Roque de Minas delatavam o advento das 16h. Tínhamos, portanto, perdido o tempo limite para a entrada nos domínios do Parque Nacional da Serra da Canastra. Mesmo correndo o risco de sermos barrados pelos brigadistas da portaria, principiamos a subida da serra por uma enlameada e sinuosa estrada de terra, cortando fazendas locais, sobrepassando os mataburros e esquivando do letárgico gado mineiro. O tempo nublado impedia a vista total dos cumes das montanhas mas não a dos pássaros, que se exibiam escancaradamente para nossas lentes. Fotografei espécimes de joão-de-barro, sabiá-do-campo, bico-de-pimenta, pássaro-preto e noivinha-branca. Como esperado, encontramos as porteiras do parque fechadas. Por detrás de um muro de pedras o guarda do parque nos informou que poderíamos seguir apenas até a nascente do Rio São Francisco, não muito distante dali, e regressar, já que estouráramos o prazo. Com a promessa de retornarmos antes das 18h, aceleramos o carro para o interior da Canastra. Inseridos num espaço protegido por leis federais com uma área superior a 14000 hectares, demos início ao safári (como o chamou Newton) pelo cerrado, já que este é um dos únicos Parques Nacionais em que existem estradas transitáveis entrecortando-o. Pudemos, portanto, pilotar vagarosamente pelas terras machucadas pelo excesso de chuvas, observando, da janela, a paisagem acinzentada pela tenacidade da neblina. Os grandes morros de pedras de calcário, ora cobertos por baixas árvores retorcidas ora pelo capim-rubro e pelo capim-estrela seco, adornavam, quase sufocados pela umidade das brumas, o horizonte que, neste fim de dia, não nos daria o ensejo de topar com bicho algum.

Montanhas graníticas da Serra da Canastra

Nascente do Rio São Francisco
Sabíamos que, neste primeiro contato com o alto da Canastra, dos 700m de altitude da portaria em diante, por causa peremptoriamente do tempo instável, não veríamos mamífero algum. Tal fato, contudo, não impediu que fotografássemos pequenos pássaros, como uma saíra-amarela fêmea, uma noivinha-branca e dois carcarás, pássaro notadamente com o maior número de indivíduos no parque. No que se refere à flora, destacavam-se as sempre-vivas, algumas se verticalizando a mais de um metro e meio do solo. Mesmo secas, queimadas e amareladas pelo outono perpetuam sua altivez e exuberância. Cupinzeiros imensos, muitos com igualmente imensos buracos, possivelmente abertos por tamanduás, servem de pouso para as grandes aves de rapina, o que foi observado nos dias posteriores. Neste primeiro, contudo, continuávamos subindo pela única estrada, sentido leste-oeste, e nada de grandes emoções no tocante à fauna. Aos 1300 metros de altitude, uma estátua de um São Francisco com o braço esquerdo levantado, mas curiosamente com uma mão faltante e um crânio humano aos pés, nos indicava que, ali por perto, nascia o Rio São Francisco. Apesar de todas as controvérsias – alguns estudiosos dizem que ele nasce subterraneamente, fora dos limites do Parque Nacional – não deixamos de admirar o começo (ou talvez não) do curso de quase 3000km deste que é o maior rio inteiramente nacional. Vencendo 5 Estados (Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas), deságua esplendorosamente no Oceano Atlântico, percorrendo cerrado e sertão. Pude, juntamente com meus companheiros de viagem, beber de suas águas, liturgia semelhante ao que fizera em Salesópolis, nas nascentes do Rio Tietê.

Sempre-viva

Monumento a São Francisco nas proximidades da nascente do Velho Chico

Curral de Pedras
A “poça d'água” envolta por calcário, cuja rota de acesso é pavimentada por pedras de quartzo e ornamentada por cipó-são-joão, de onde o Velho Chico origina suas andanças, seria nosso ponto máximo de entrada no parque no dia 07, como aventáramos ao vigia da portaria. Entretanto, optamos por quebrar a promessa e vagar um pouco mais pelo alto da Canastra. Quando o sol já ameaçava debandar por detrás dos morros e da rala vegetação de um campo limpo, o altímetro marcou 1500 metros de altitude. Este ponto, o culminante, me deu a sensação de literalmente estar sobre as nuvens, visto que era possível ver algumas delas abaixo da linha da serra, no vale compreendido entre a Canastra e a Babilônia. A iluminação natural, formada por uma ação conjunta entre raios de sol esparsos, nuvens e ventos gélidos, desenhava vírgulas alaranjadas nos céus dos arredores do Curral de Pedras, local onde uma antiga fazenda, anterior à desocupação para a criação do Parque Nacional, mantinha seu gado preso. As muretas eram feitas com as próprias pedras de calcário, abundantes na Canastra. Uma encosta de um pequeno morro serviu, inclusive como barreira natural para que a desagregação da manada fosse evitada. Uma observação: pedras eram historicamente utilizadas para demarcar o necessário. Muitas muretas podem ser observadas em vários pontos do parque. Mesmo sendo um aspecto interessante, há de se ressaltar que esses amontoados de pedra servem de abrigo principalmente para cascavéis e vespeiros. Ficamos, portanto, muito receosos com os mesmos, e como já era passada a hora de deixar o parque, voltamos para o leste, com a noite nos envolvendo e com os noturnos bacuraus, empoleirados na terra da estrada, servindo de “obstáculos” ao caminho do carro.

Céu do fim de tarde da Canastra

Ema
No dia 09, após pernoite em São Roque de Minas, volvemos ao Parque Nacional. O tempo se mostrava mais aberto, apesar de ainda cinza. No caminho para a portaria, sabiás-poca, sanhaços-do-coqueiro, anus-pretos, carcarás, periquitos-reis, suiriris e sabiás-do-campo. Da portaria em diante, após o pagamento de uma simbólica taxa, reiniciamos a exploração visual dos campos limpos e sujos da Canastra. Pegadas e fezes de lobo eram perceptíveis nas paradas à beira da estrada. Ver os bichanos, contudo, foi um prazer do qual não pudemos desfrutar nesta viagem, nem mesmo seguindo os passos do guia Zé Maria, experiente e aclamado por muitos como o “grande atraidor de bichos”. Em sua camionete, pouco à frente de nosso carro, ele vagarosamente ganhava terreno, sempre atento aos dois lados da via. Vimos, como não era de se espantar, apenas pássaros, como a maria-preta-de-topete, o galito, a noivinha-branca, o carcará, o perdiz, o tico-tico-do-campo, o tico-tico, o sanhaço-cinzento e o carrapateiro. A maior ave do cerrado, a ema, foi fotografada quando letargicamente passava por baixo de uma das raras árvores retorcidas de um campo limpo. Em uma bifurcação pendemos para o sul, visando acessar a parte alta, a cabeceira da Casca d'Anta, cachoeira de 186 metros de queda livre e mais famosa atração do parque. Em pouco tempo as corredeiras do São Francisco, num ponto cerca de 15km distante de sua nascente, translucidamente seguiam para uma pequena queda, em forma de degraus de uma escadaria. A Casca d'Anta, alguns metros à frente, despenca do alto da serra em direção ao vale entre a Canastra e a Babilônia. O engraçado é que, do ponto onde estávamos, só ouvíamos. Não conseguíamos ver, apesar da magnitude da cachoeira. O vale, contudo, era uma visão não menos pacificadora.

Rio São Francisco na parte alta da Casca d'Anta

Primeira queda do São Francisco

Ao fundo, a Cachoeira Rasga-Tanga
Da parte alta da Casca d'Anta readentramos a via principal da Canastra, acessando, agora, uma estrada à direita, sentido norte, rumo a Cachoeira Rasga-Tanga. À medida que vamos para esta direção a flora vai se tornando mais colorida e exuberante. O caminho foi se tornando difícil, pedregoso, esburacado, enlameado. A altitude diminuía a cada metro, já que geograficamente estávamos saindo dos píncaros da serra. Todavia, ao fim da estrada, a visão da Rasga-Tanga, ao longe, em demasia nos recompensou. O pequeno vale, formado pelas águas de um manso riacho e com as águas que passam pela cachoeira, de tão limpo e translúcido nos oportunizou a visão de pequenos peixes que se aglomeravam em um “degrau” formado naturalmente em seu leito, rodeado por grandes rochas úmidas. Por falar em rochas, grandes pedras de calcário, com um vistoso líquen alaranjado, estão espalhados pelos campos sujos do cerrado dos arredores do vale, pontilhando o solo em meio a um jardim natural que, apesar de recentemente queimado, reitera o seu garbo ao reflorescer em meio às cinzas. Foi neste estupendo cenário que encerramos nosso segundo dia dentro do Parque Nacional da Serra da Canastra. As nuvens carrancudas e o vento forte, que já nos acompanhavam há algum tempo, resolveram despejar sobre nossos corpos todo o poder que lhes competia. Eram mais de 18h. Não havia mais nada a fazer, pois até mesmo a luz do dia se esvanecia. De volta a São Roque de Minas, acompanhados pela lama e pelo aguaceiro desenfreado de uma portentosa tempestade.

Águas translúcidas nos limites do parque

Gavião-carijó
No dia 09 nos dirigimos à parte sul da Serra da Canastra, onde o formato de chapada, ou canastra (baú) fica mais evidente. Mesmo com as nuvens e a neblina da manhã envolvendo o topo, cujo desnível com o vale em que estávamos, nas cercanias de Vargem Bonita, é de 300 metros, obtivemos boas panorâmicas dos mirantes improvisados nas clareiras ao longo da estrada de terra. A avifauna mais uma vez nos presenteava com seriemas, gaviões-carijós, tucanos, anus-pretos, anus-brancos, sanhaços-de-fogo e saís-azuis. Até mesmo uma família de perus perambulava despreocupadamente sobre as gramíneas que serviam de acostamento à via. Se soubessem que predadores por ali espreitam talvez não estivessem tão serelepes. Vinte quilômetros depois de Vargem Bonita nos deparamos com uma outra portaria do Parque Nacional. Esta com certeza é a mais visitada de todas, pois simplesmente dá acesso ao maior atrativo da Canastra: a parte baixa da Cachoeira Casca d'Anta. Pagamos uma irrisória quantia e seguimos pela bem demarcada trilha, juntamente com inúmeros turistas, admirando a queda de 186 metros de vários ângulos enquanto nos aproximávamos. A mata fechada, que mesmo os botânicos não sabem definir se Amazônica ou Cerrado, de repente, praticamente aos pés do poço formado pela queda, se abria e dava lugar às quaresmeiras-roxas que, juntamente com os imensos paredões da chapada, o véu de água e o tonitruante barulho do contato com as pedras dão uma identidade toda especial a este local que, apesar de muito popularizado, não deixa de ser um dos mais lindos do mundo. Fiquei particularmente boquiaberto pelo formato da chapada, que olhando de baixo para cima parece mais arredondado do que quando visto de longe, quando o formado de “baú”, portanto quadrado, é mais evidente.


Imagens da face sul da Canastra, onde o formato de baú, ou chapada, fica mais evidente

Casca d'Anta
A Casca d'Anta, a maior queda do curso do Rio São Francisco e também uma das maiores do Brasil, demonstra sua impetuosidade quando ousamos fotografá-la de perto. É praticamente impossível obter uma boa foto sem correr o risco de molhar a lente da câmera. Os ínfimos minutos em que fiquei defronte a esta maravilha do cerrado da Canastra foram suficientes para me encharcar da cabeça aos pés. As gotículas formadas pelo véu de água são esborrifadas para todos os lados, potencializados pela ação dos ventos laterais. Eu, acostumado a sentir o peso de chuvas abissais, não cheguei a me incomodar. Alguns turistas, contudo, volviam suas costas à cachoeira e buscavam os mirantes mais distantes e secos para contemplá-la. Logicamente não se pode ver o poço a partir desses mirantes, mas para os menos suscetíveis à congelante água não deixam de ser boas opções. Como não estávamos ali para desfrutar de um banho, contentamo-nos em apenas usufruir da beleza cênica do local, prendendo nossa atenção nos mínimos detalhes. Um senhor nos chamou a atenção para uma pequena santa que, segundo ele, estava localizada no canto direito da queda d'água, sobre uma ponta de pedra parecida com a barbatana de um tubarão. Num primeiro momento acreditei que a rocha tivesse o formato de uma santa, esculpida pela água, pelo vento e pelo tempo. Aproximando a pedra na câmera comprovei que, na verdade, tratava-se de uma imagem de santa católica mesmo, aparentemente entalhada em bronze. Por mais que eu tenha questionado as pessoas presentes, ninguém soube me responder o motivo pelo qual aquela santa “úmida” ali foi instalada.

Vista de um dos mirantes

João-bobo
Nada mais havia para desbravar naqueles confins do parque. A probabilidade de encontrar mamíferos neste dia parecia maior, visto que o calor castigava e o sol luzia forte. Deixamos a porção sul da Canastra e passamos novamente por Vargem Bonita e São Roque de Minas, subindo a serra a partir desta última. Uma vez mais estávamos na mesma portaria que nos recepcionara nos dois dias anteriores. Pelo caminho, notamos a presença de um pássaro muito peculiar, empoleirado na galhada de uma árvore desfolhada pelo outono: o joão-bobo, uma mistura de martim-pescador com qualquer outro pássaro de olhos muito grandes. Foi a primeira ocasião em que pude ver e fotografar este ser tão caricato e pusilânime. De tão “bobo” ele sequer parecia me notar, pois fiquei a poucos centímetros do espécime sem que o mesmo esboçasse qualquer reação. Da portaria em diante, sempre mais do mesmo. Muitos campos limpos a perder de vista, visibilidade perfeita, montanhas de calcário e muitas aves, mas ainda nenhum mamífero. Pilotamos praticamente por todo o leste da Canastra e nada. O nosso ponto final deste 09 de junho, o nosso penúltimo dia no parque, foi um local conhecido como Garagem de Pedras, de onde pudemos avistar um pôr-do-sol meritório de nobres encômios. O espaço, construído com um princípio semelhante ao do Curral de Pedras, feito com rochas de calcário empilhadas, sem argamassa, era o abrigo de carros de um fazendeiro que possuía terras no topo da Canastra antes da desocupação para a delimitação do Parque Nacional, e também no Vale dos Cândidos, que pode ser visto a partir dele, com a não menos imponente Serra da Babilônia ao fundo. Por falar na Babilônia, vale ressaltar que, no projeto original, ela faria parte do Parque Nacional. Contudo, o debuxo foi declinado devido ao alto custo das desapropriações. Há quem diga que está em estudo uma possível ampliação para o englobamento desta serra, mas a recente descoberta de diamantes na Babilônia pode por toda essa revisão a perder.


Garagem de Pedras e o pôr-do-sol da Canastra

Veado-campeiro
São Roque de Minas. Dia 10. Hora de irmos para casa. Supostamente faríamos o caminho inverso do dia 07. Newton, talvez insuflado pelo espírito de aventura que vez ou outra eiva o pensamento de todos os amantes da natureza brasileira, aventou cruzarmos todo o Parque Nacional, de leste a oeste, entrando em São Roque de Minas e saindo no Triângulo Mineiro, mais precisamente no município de Sacramento. Unanimemente aquiescemos. Seria nossa última oportunidade de ver um mamífero. Empilhamos a bagagem, despedimo-nos de São Roque de Minas, que nos acolhera por três noites, e subimos pela última vez a serra pela porção leste. Passamos pela portaria. Daí para Sacramento seriam 150km de incertas e esfrangalhadas estradas de terra. Os periquitos-reis, sanhaços-de-fogo e canários-da-terra continuavam lá, mas não mais os cobiçávamos. As esperanças eram escassas, mas Thaís, com um pedido de PARE e com um olhar penetrante para o capim-rubro alto de um campo limpo, disse ter avistado um veado-campeiro. Com os pés sobre o assoalho do carro, estiquei-me verticalmente para fora, com a porta aberta, e consegui boas tomadas do cervídeo, que tão logo notou nossa presença debandou, saltitando morro abaixo. Há quem discuta o mérito, mas para quem buscava incessantemente este longínquo contato visual aquele momento significou dever cumprido. Aos alcoólatras o álcool apetece, bem como aos consumistas o shopping. A nós, os desbravadores do cerrado, essa visão foi o ápice. O cervídeo marrom, com as áreas em volta da boca, olhos e e ânus brancas e com uma pequena galhada na cabeça, utilizada em confrontos hierárquicos, foi a visão que mais recompensou a faina. Eu poderia ter ido embora somente com essa imagem na cabeça e ficaria feliz por um bom tempo.


Cachoeira da Gurita e seu poço

Mais veados-campeiros
Seguindo pela estrada, pendemos um pouco para o norte para uma parada em São João da Canastra. A Cachoeira da Gurita, neste distrito de São Roque de Minas, despenca com pouca força do paredão rochoso compreendido nos limites do Parque Nacional. O poço verde formado por essa queda d'água é mais agradável aos olhos do que toda a figura da cachoeira em si. O pica-pau-verde-barrado é presença notável nos arredores, e com alguma sorte consegui fotografar um. Deixando o pequeno povoado, retornamos ao interior da Serra da Canastra e, enquanto subíamos, percebi que um urubu, possivelmente o de cabeça-vermelha, sobrevoava, em círculos, uma área próxima a que estávamos. Este indivíduo pousou por detrás de uns arbustos queimados e eu, visando uma boa tomada, apeei do carro e pulei para dentro do cerrado, que estava um pouco acima do nível da estrada. Minha surpresa, ao volver meus olhos para o norte, foi grande. Não vi urubu algum. Entretanto, a vista foi bem mais recompensadora. Não apenas um, mas agora dois veados-campeiros, tranquilamente comiam os brotos recém-nascidos do cerrado enegrecido pelas queimadas controladas. Alardeei a notícia e todos desceram do carro para observar os dois espécimes que, por incrível que pareça, não pareciam muito preocupados com a nossa presença. A dúvida quanto ao gênero de ambos perdurou até o término da viagem. Seriam mãe e filho? Macho e fêmea? Duas Fêmeas? De quebra, localizei, um pouco acima, o urubu, e este era realmente o de cabeça-vermelha. Poderia ser o urubu-rei, uma das aves mais belas do Brasil, mas não havia porque reclamar.

Urubu-de-cabeça-vermelha

Curicacas
Lentamente avançávamos rumo ao oeste da Serra da Canastra, e nada de interessante surgia pelo caminho, pelo menos no que se refere à fauna. O cerrado continuava ali, preservado, ora limpo ora recoberto por suas típicas árvores retorcidas. O sabiá-do-banhado e o carrapateiro apareceram como que para mostrar que não estávamos sozinhos dentro do parque. Após quase duas centenas de quilômetros sacolejando por irregulares estradas de terra chegamos ao extremo oeste, mais precisamente à portaria de Sacramento. O vigia desta nos informou que ainda teríamos que percorrer mais 70km até encontrarmos asfalto. Fora dos limites dos Parque Nacional a paisagem mudou completamente. Extensas plantações de milho e sorgo, eucaliptos, pinheiros. Em uma plaga ociosa fotografamos curicacas que, em um bando de 8 indivíduos, rasantes e ruidosas rasgarem os céus a poucos metros de nosso carro. Sem maiores surpresas alcançamos a rodovia que nos levaria ao vale do Rio Grande, nela permanecendo, sentido sul, até a ponte sobre a Represa de Jaguara, que demarca a divisão entre os Estados de Minas Gerais e São Paulo. Do outro lado da ponte, já em nosso Estado natal, adentramos a primeira cidade: Rifaina. Eu e Rodrigo Costa Gil estivemos aqui há dois meses atrás, de passagem para Três Marias, viagem na qual conhecemos o Rio São Francisco e sua primeira represa: Três Marias. Mas esta era diferente. Intimei-me com a nascente do Velho Chico e sua maior queda, com os píncaros da Serra da Canastra, com a fauna e a flora de um paraíso protegido do centro-sul mineiro. Enquanto trilhávamos a Rodovia Cândido Portinari e a Anhanguera, em direção a Ipeúna, eu e meus devaneios já cogitávamos um retorno, mas desta vez sobre duas rodas. A Serra da Babilônia, infelizmente negligenciada pelos projetos do Parque Nacional, será meu escopo. É preciso ver o Vale dos Cândidos de um outro ângulo. De Ipeúna para minha casa, delineava um “plano de ataque”. Que esse dia chegue, veloz feito as serpentes que rastejam pelo calcário da Canastra.

Um último adeus a Serra da Canastra

Rifaina

“Observei um tristonho homem perambulando com suas lágrimas, assim como costumávamos fazer. Por isso tivemos (e temos) que passar para não refletir todo o ódio que presenciamos. (...) Não há escapatórias: a mágoa um dia te encontrará. Dúvidas pairarão sobre nossas cabeças, mas brevemente encontraremos a paz. Só estejamos preparados para ela. (…) Eu partirei, mas não permita que meus amigos se olvidem de mim. Você sabe o que digo. E, no tempo certo, eu regressarei para te dizer o porquê disso tudo. O porquê de chorarmos”. (Newton Nabeta, Ílton Aguari e Marcos Vinícius Gazola. Trecho de Reflections, do Overlost, composta em 2006)



Mais fotos aqui.

E abaixo, um simples blues especialmente composto para a Serra da Canastra e sua exuberante fauna.