segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Itirapina, São Carlos e Ibaté – 22 de outubro de 2011


Ouço um chamado do passado enquanto no presente momento me preparo. Vozes ecoam, reminiscentes do sofrimento imposto por inexoráveis algozes aos escravos africanos sob os plenilúnios do Brasil Colônia, impetrando minha memória e meu respeito. Auguro voltar no tempo, visualizar em detalhes as escoriações provocadas por ininterruptas chibatadas que impiedosamente se atritavam com a pele negra, mas o zéfiro da realidade sopra lateralmente e me dissuade. O “não-poder” controlar o tempo renega a mim o “poder-voltar” os séculos, tornando-me hirto. Incapaz de presenciar fatos há muito consumados, amparo-me na História e na sua fatídica impotência em me fazer crer nos seus dizeres. Porém, não a tendo como única detentora da verdade, exorto a mim mesmo e parto à procura dos cenários onde a ignomínia se desenrolou. Que estejam, feito um pavão macho com penas em leque e instigado pelos feromônios do gênero oposto, concupiscentes ao meu desejo de conhecê-los, apesar de os protagonistas que os fizeram de palco estarem, há muito, em estado pueril.
Ajapi
Uma viagem curta oportuniza, além de descobertas, um maior envolvimento do viajante com a região em que está inserido. Com este pensamento em vista, eu, Luiz Paulo Blanes e Rodrigo Costa Gil, munidos de muita vontade e pouca razão, levamos a cabo uma incursão de 14 horas por aproximadamente 400km. O escopo seria conhecer a fazenda escravagista Santa Maria do Monjolinho, encravada em meio ao mar de cana-de-açúcar na zona rural de São Carlos. Entretanto, a utilização de vias secundárias e estradas “em meio ao nada” apresentaram aos nossos olhos imagens de outros locais que indubitavelmente merecem um olhar mais meticuloso em um ulterior momento. Ajapi, distrito de Rio Claro, por exemplo, é um deles. Foi, assim que deixamos a Anhanguera e a Washington Luiz para trás, o nosso primeiro ponto de parada. Todo o caminho que se seguirá foi traçado a partir desta localidade.
Estrada de terra em Ferraz
Ajapi, um hiato de trinta minutos e Ferraz: a tríade que constituiu a primeira parte do trajeto. Em uma estrada de terra com áreas alagadas, passagens sobre o Rio Corumbataí e trânsito de cavalos, fomos barrados por uma viatura da Polícia Militar. Por meia angustiante hora nos interrogaram, revistaram e obrigaram a fazer projeções do futuro. “Para onde vão? O que lá farão”? A constituição me assegura o direito de ir e vir, mas aparentemente tenho que prestar contas de minhas movimentações. Pacientemente aguardamos e, quando liberados, prosseguimos. A visualização de cabeças-secas, aves que havia visto somente no Pantanal Norte até então, e um lagarto de grandes proporções cruzando a estrada dispersaram a atmosfera nebulosa que pairava sobre nossas cabeças depois da estapafúrdia “inquisição”.

Charco com garças e cabeças-secas entre Ajapi e Corumbataí

Carcará em Corumbataí
Alcançamos Corumbataí, pequena cidade já mencionada em uma viagem para Analândia. Após algumas fotografias da praça central, embrenhamo-nos por uma outra estrada de terra que se estende de um dos bairros da cidade à Rodovia Washington Luiz. Nela, um carcará se alimentando deixou que eu sorrateiramente me aproximasse. Ver esta ave é corriqueiro, mas em nenhum momento freio o ímpeto de parar o que estiver fazendo para admirá-la. Meus camaradas, impacientes, muitas vezes me repreendem por tantas paradas. No fim das viagens acabam me agradecendo pelo grande volume de fotos. Prosseguindo, cruzamos a rodovia supracitada e localizamos uma estrada de areia, envolta por uma mata relativamente fechada, que pelo curso julguei que nos direcionaria a Itirapina. Entretanto, a dificuldade de pilotagem quase nos instou a abdicar desta via. Rodrigo que o diga: receoso quanto ao solo em questão, por cinco vezes foi levado ao chão. Felizmente não se machucou e não avariou sua motocicleta, podendo continuar numa vagarosa toada.
A caminho de Itirapina
Em meio à monocultura da cana-de-açúcar esporadicamente encontramos garbosas paisagens. O portal de uma fazenda, na estrada traiçoeira em que estávamos, foi uma grata surpresa. Cansados pela areia e sem saber ao certo onde a estrada culminaria, repousamos à sombra do “monumento” feito de rochas circulares empilhadas. Próximo a ele, um carro vindo na direção oposta foi “abordado” por mim. O condutor confirmou que seguindo pela areia chegaríamos a Itirapina. Continuamos, então, agora na certeza de nossos passos. Poucos quilômetros adiante a mata se abriu, detritos já poluíam as margens da estrada e odores putrefatos exalavam de pilhas de lixo. Sabíamos que a “civilização” estava próxima.

João-de-barro sobre o portal de uma fazenda canavieira de Itirapina

Estação de Ityrapina
Dentro de Itirapina por acaso encontramos uma antiga estação de trem. A deterioração, oriunda do longo tempo de desuso e potencializada pelo pouco respeito dos nossos governantes com a memória das ferrovias brasileiras, foi por nós assaz lamentada. Pichações, vagões antigos corroídos pela ferrugem, depredação. Enfim, um cenário em ruínas. A Prefeitura esboçou, em 2007, um projeto de reforma da estação, mas aparentemente nada foi concretizado. Itirapina, no letreiro da estação construída em 1916, está grafada com Y, vestígio da influência inglesa sobre nossas ferrovias. Poderia ser apenas mais um detalhe supérfluo. Ou, visto por um outro prisma, poderia ser uma imagem preservada e apresentada materialmente aos novos cidadãos itirapinenses concebidos todos os dias. Mostrar a História, ao invés apenas de contá-la, é incondicionalmente mais significativo e educativo.
Represa do Broa
Deixamos a área urbana de Itirapina e, via asfalto, adentramos uma estrada municipal em direção a São Carlos. O Balneário Santo Antônio, mais conhecido como Represa do Broa, se situa em meio a essa estrada e, portanto, não poderíamos deixar de conhecê-lo. Suas águas, artificialmente represadas dos ribeirões do Lobo e Itaqueri e dos córregos do Geraldo e dos Perdizes, formam um espelho d'água de 21km². A água límpida e a orla, coberta por areia, dão um aspecto litorâneo ao balneário, o que atrai inúmeros turistas e, infelizmente, muito barulho. Eu diria que não é o lugar mais pacífico do mundo para repousar. Itirapina conta com uma natureza exuberante. Outras localidades podem ser mais apetecíveis para este fim.

Anu-preto em uma exibição às margens da Represa do Broa

Estação do Monjolinho
Seguindo pela rodovia municipal culminamos em uma encruzilhada. Optamos por pender à direita e, um pouco à frente, localizamos a SP-215. Permanecemos nesta por alguns minutos. Discerni, timidamente pregada a uma cerca, uma placa com indicações à fazenda Santa Maria do Monjolinho. Prestamente, em meio aos canaviais e a muita terra, nos dirigimos a ela. Pelo caminho, margeando o poluído Rio Monjolinho, topamos com a Estação do Monjolinho. Sua pintura deteriorada, mas ainda vibrante, nos remete ao período em que esteve em pleno funcionamento, entre 1894 e 1968. Algumas ruínas a envolvem, bem como um restaurante que, apesar de extrair um pouco da nostalgia avivada pela velha estação, de alguma maneira ajuda a preservar a riqueza arquitetônica aqui presente, muito embora os trilhos da estação tenham sido retirados ainda na década de 70.
Senzala
Da estação à fazenda. Logo na porteira de entrada fomos recepcionados pelas águas de um riacho com suaves cascatas. Estacionamos as motocicletas à sombra de uma grande árvore, próximas a uma velha charrete. Logo à direita uma construção de médio porte, equivalente a uma casa domiciliar de cem metros quadrados, prendeu nossa atenção. Descobrimos se tratar de uma senzala, moradia dos escravos que trabalharam na fazenda até a proclamação da Lei Áurea em 13 de maio de 1988. Dentro dela são mantidas camas e alguns outros “móveis” feitos de bambu, todos construídos pelos infelizes africanos que, no auge da produção cafeeira da região de São Carlos, eram tratados e comercializados como propriedade, e não como cidadãos livres. Ao lado da senzala, correntes e cadeados atrelados a grandes colunas de madeira nos fizeram imaginar os constantes açoites a base de chibatadas. Muitos conheciam a arte da magia negra e da capoeira, e mesmo com todo esse poder sucumbiram.

Aqueduto da Fazenda Santa Maria do Monjolinho

Casa Grande
Andamos por toda a fazenda. Fotografei os aquedutos, o terreiro onde os grãos eram dispostos e a tulha de armazenar café. Restou-nos, por último, a casa grande, local onde residiram os proprietários da fazenda. Suntuosa e com alguns cômodos que permanecem até hoje originais, foi tombada e transformada em Museu Histórico. Dentro dela, um guia chamado Lucas nos passou valiosas informações sobre os costumes da época escravagista. Cada parte da casa é uma visita ao passado. Escarradeiras, uma cadeira-namoradeira, livros antigos, quadros de família, telefones: todos intactos. A casa das mucamas (escravas que faziam os serviços domésticos), uma espécie de edícula da casa principal, muito me interessou, principalmente um pequeno quarto onde eram mantidas em quarentena quando doentes. Dele só saíam curadas ou mortas.
Hidrelétrica de Monjolinho
Deixamos a fazenda e, para encerrar a parte histórica da nossa viagem, seguimos pela Estrada do Matadouro, beirando o Rio Monjolinho até a parte urbana de São Carlos. Ali planejávamos encontrar a Usina Hidrelétrica de Monjolinho, a primeira construída no Estado de São Paulo e a segunda em solo brasileiro e no hemisfério sul, em 1983. Com alguma dificuldade conseguimos acessá-la. Aqui, uma cena inusitada: Luiz Paulo, ao ser informado sobre a história do local, ameaçou se desfazer em lágrimas. É estranho o sentimento de quem viaja e adquire conhecimento durante o processo. Eu e Rodrigo, que já estávamos conscientes destas informações, preocupamo-nos apenas em registrar o momento em fotos. Luiz, por outro lado, sentiu o peso histórico do local e se emocionou simplesmente por estar nele.
Cachoeira Cancan
O horário de verão, por mais que muitos não o suportem, pode ser útil em curtas incursões. Perto das dezoito horas, a posição ainda elevada do sol nos deu a luz necessária para que deixássemos São Carlos em direção a Ibaté, cidade vizinha, com vistas a nos banharmos em uma cachoeira de difícil acesso e, por este motivo, praticamente desconhecida na região. De dentro da cidade se ramifica uma estrada que cessa na Usina da Serra. Porém, antes da usina uma estrada de terra em declive, em meio a canaviais, nos levou a um laivo de mata, preservada por estar adjacente a uma fenda rochosa. Descemos, agora a pé, por uma picada íngreme e pedregosa, rapelando as encostas com a ajuda de cabos de aço e raízes sobressalentes. Escorreguei a la Bear Grylls, em alguns momentos, e quase rasguei minhas calças. Tudo foi recompensado pela cachoeira: mais de 85 metros de queda d'água. Alguns a chamam de Cancan; outros de Cachoeira da Usina da Serra. O certo é que, em um lugar como estes, não há como não se sentir pequeno (vejam o tamanho do Luiz com relação à cachoeira na foto ao lado). Foi o desfecho natural perfeito para um dia repleto de informações históricas.

Cachoeira da Usina da Serra e seu imponente paredão

Qual será a próxima?
Voltamos já com a noite nos envolvendo. O caminho ortodoxo do retorno, pela Washington Luiz e Anhanguera, em nada se assemelhou às perigosas estradas que desafiamos na ida. Em Rio Claro, uma parada para reflexão. Mesmo exaustos, ainda demonstramos ganas para planejar uma próxima incursão. Não chegamos a um consenso, mas sei que estáticos nunca estaremos. Eu, pelo menos, não estarei. Acompanhar-me-ão, intrépidos camaradas?
Já não ouço mais nada. Aquela voz retumbante, que por muito tempo me fez retornar aos poços da leviandade; que me fazia crer que palavras doces e pouca atitude eram algo benéfico; e que me abandonou em um momento de fraqueza irresoluta, já não tilinta dentro de minha cabeça. Busco o equilíbrio só, e só por ele subsisto. Uma enfatuação crescente toma meu coração emprestado e, apesar de quimérica, me acalenta em demasia. Adeus ao meu minúsculo passado e boas-vindas ao passado do mundo, este sim maiúsculo e digno. Estou a seu dispor. Por favor, insista em querer revelar-se.


Mais fotos aqui.

E abaixo um blues para uma certa donzela, tão desconhecida e bela quanto a cachoeira Cancan. Que a distância e o tempo a perpetuem como minha musa. Que me sirva de inspiração mesmo que não saiba. Mesmo que a contragosto. Dedico-o também ao Rio Monjolinho e à História que se engendra às suas margens.

2 comentários:

  1. Lugar nostálgico, roteiro muito bem elaborado!

    Me atraem ferrovias, me atraem barragens, me atraem cachoeiras! Simplesmente perfeito, e muito bem relatado!

    Parabéns!

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