quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Paranapiacaba – 09 de outubro de 2011


Quantos preferem a pusilanimidade à ação? Em muitos grupos guerrilheiros, ou mesmo na antiga máfia siciliana, a falta de motivação e a indiferença de um membro perante um momento decisivo, em que tomadas rápidas de decisão e ações enérgicas se faziam necessárias, eram retaliadas com castigos físicos, mutilações e, em casos julgados mais sérios pelos outros membros, a morte. Não sou, contudo, fatalista. Não acredito que o fenecimento dos desanimados possa mudar o mundo. Sinceramente, apoiando-me no sufismo, gosto de pensar que se todos fossem para o mesmo lado – ou fossem iguais e fizessem as mesmas coisas – o planeta se desequilibraria e tombaria. Odes às idiossincrasias! Eu, contudo, escolhi um dos lados: sou do grupo daqueles que primam pela ação.
Uns correm, outros esperam
Periodicamente me questionam o porquê de tantas viagens. Já me perguntaram se corro DE alguma coisa ou PARA alguma coisa. Minha resposta é sempre ambígua: hoje corro PARA alguma coisa, mas sem negar que já cheguei a correr DE alguma coisa. Deparei-me com decepções viajando; e já viajei para tentar olvidar decepções. O certo é que, apesar de tudo, continuo correndo, independente de minhas motivações. Neste dia, 9 de outubro de 2011, por exemplo, corri ininterruptamente, juntamente com o meu camarada Luiz Paulo, das 7h às 19h, por 420km e sob muita chuva. Nem mesmo a Anhanguera, a Bandeirantes e o Rodoanel, enfadonhos caminhos que nos levaram à Indo Tibririçá e posteriormente a Rio Grande da Serra e a Paranapiacaba, foram capazes de suprimir nossos ímpetos.
Paranapiacaba e a bruma
Amigos de Mauá e Suzano me instigavam a visitar Paranapiacaba – “lugar de onde se vê o mar”, em tupi – há muito tempo. Tardiamente, então, resolvi conhecer o local, incorporado ao município de Santo André desde 2002. É, na verdade, uma vila edificada pelos ingleses que se instalaram neste pedaço da Serra do Mar, em 1860, para construir, gerenciar e operar a estrada de ferro Santos-Jundiaí, que a partir de 1867, com o nome Estação Alto da Serra (foi mudado para Paranapiacaba em 1907), passou a transportar, até o porto de Santos, praticamente toda a produção cafeeira do estado de São Paulo, além, logicamente, de passageiros. Esse café seguia posteriormente, via mar, para os mercados da Europa.

Locomotiva a vapor inglesa Sharp-Stewart, fabricada em 1867

A passarela
Fomos surpreendidos, logo ao chegarmos, com a densa bruma que envolvia a vila. Deixamos as motocicletas na chamada Parte Alta, próximas à Igreja Bom Jesus de Paranapiacaba, e descemos a pé uma limbosa – e portanto escorregadia – ladeira de paralelepípedos rumo à passarela que dá acesso à Parte Baixa. Desta ladeira já é possível visualizar o grande emaranhado de trilhos, o Relógio da Estação (que dizem ser uma réplica do Big Ben, de Londres), uma locomotiva a vapor inglesa Sharp-Stewart (fabricada em 1867 e que hoje transporta esfumaçadamente turistas pelos trilhos), alguns trens em funcionamento e outros carcomidos pelo longo tempo de desuso. Dos corrimões da passarela a visão é ainda mais nítida. Senti-me, observando deste ângulo, um pouco mais a par da dinâmica da vida humana na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX.
Parte Baixa da Vila
Acessamos a Parte Baixa assolados por uma fina porém constante garoa. O movimento de turistas, nos bares ao pé da passarela, era intenso, mas nada que “poluísse” em demasia as fotografias. Caminhamos, sempre ao som da locomotiva que silvava ao longe, por praticamente todos os quarteirões, admirando o estilo vitoriano das casas de madeira que um dia abrigaram operários e chefes ingleses que trabalhavam na estação. Uma em especial prendeu nossa atenção, visto ser a mais suntuosa e localizada sobre um monte, que ulteriormente descobrimos se tratar do ponto mais elevado da vila.

O estilo vitoriano da arquitetura de Paranapiacaba

Subida ao Castelinho
Subimos por uma rústica escadaria de pedras o íngreme morro. No cume, a casa de dois andares, de um vermelho escuro muito bem conservado, é, na verdade, um museu denominado Castelinho. Dentro dele estão permanentemente expostas algumas peças da ferrovia e a memória social da vila. Soubemos, por intermédio do monitor, que esta casa foi construída em uma posição estratégica, a partir de uma rosa-dos-ventos no assoalho amadeirado do escritório. Nela moraram os engenheiros-chefe da São Paulo Railway Co. (este era o nome da empresa composta por ingleses responsáveis pela estação até 1946). De cada janela é possível visualizar uma parte distinta de Paranapiacaba, o que dava ao engenheiro um poder de vigília sobre a estação e a vila, além de respeitar o padrão hierárquico inglês da época (os “superiores” deveriam estar posicionados geograficamente acima dos “inferiores”).
Museu do Funicular
Do Museu Castelinho retornamos à passarela. Do meio desta se ramifica uma pequena rampa que nos direcionou à bilheteria do Museu Ferroviário do Funicular. Pagamos uma irrisória quantia e adentramos este local histórico, que conta, por meio de fotos e maquinário antigo, um pouco da história da ferrovia na região. Logo na porta de entrada um convidativo vagão vermelho-amarelado airava com passadismo o que estava por vir na parte interna de uma cadeia de prédios antigos. Inteiravam o cenário o recepcionista, vestido como os comissários de vagão da época, e um quadro de Getúlio Vargas, que em 1946, período em que se encerrou o contrato de concessão aos ingleses, recentemente terminara seu regime ditatorial. Todo o patrimônio da Vila Ferroviária foi, deste ano em diante, incorporado ao Governo Federal, o que explica o sucateamento procedente até 2002, ano em que a foi comprada, como já frisado, por Santo André.

Entrada do Museu do Funicular

Sistema Funicular
O museu não recebe este nome ao acaso. Cabos de aço sobre os trilhos eram atrelados aos vagões, ajudando-os a vencer as encostas íngremes da Serra do Mar. Esses cabos eram puxados por imensas engrenagens presentes na Estação de Paranapiacaba. Todo o conjunto desse aparato auxiliar ficou conhecido como Sistema Funicular, e os motivos que o levaram a ser adotado pelos ingleses é compreensível. Afinal, economicamente era muito mais viável montar este simples sistema do que construir quilômetros de trilhos suspensos sobre a serra. Hoje o funicular da vila é nomeado Primeiro Funicular da Serra, visto ser o pioneiro de tal empreendimento em solo brasileiro.
Estação abandonada
Inegavelmente conhecemos boa parte de Paranapiacaba. Sem mais o que desbravar, optamos por retornar às estradas. Por mera curiosidade, meu último desejo, e também o de meu intrépido camarada, era acessar a vila por uma estrada de terra que culminaria diretamente na Parte Baixa. Voltamos cerca de 5km em direção a Rio Grande da Serra e localizamos a dita estrada, que se iniciava após o cruzamento de diversas linhas de trem, como não poderia deixar de ser. Estáticos por muitos minutos, enquanto aguardávamos a passagem de um quilométrico trem, aproveitamos para fotografar uma estação de passageiros abandonada. Entretanto, um guarda da ferrovia incontinenti nos repreendeu com um silvo de seu apito. Assentimos. O trem, enquanto isso, desobstruira o caminho. Seguimos.

Aguardando a passagem do trem

Acesso por terra
A estrada de terra, esburacada mas transitável, e com algumas pontes de madeira que me recordaram a Transpantaneira, nos levou sem perigo algum pelo meio da mata atlântica até a Parte Baixa de Paranapiacaba. Fomos novamente repreendidos por um outro guarda quando atravessávamos os portões semiabertos da empresa que controla o tráfego na ferrovia. Deixamos a localidade e discernimos um pouco à frente, abandonada às margens da mesma estrada, uma locomotiva semelhante a que transporta turistas próxima à passarela. Suas condições, não obstante, são lastimáveis. Esta foi a última imagem da vila. Partimos.
Lagoa de Taquarussu
Poderíamos ter regressado pelo mesmo caminho. A chuva não cessara e a exaustão incomodava. Porém, a estrada de terra não findava em Paranapiacaba. Prolongava-se Serra do Mar adentro. Prosseguimos por ela. De todos os caminhos que os pneus de minha motocicleta estiveram em contato, este sem dúvidas foi o mais estreito de todos. Pedras, barro, declives e aclives íngremes quase nos obrigaram a abandoná-lo, mas teimosamente continuamos. O que nos acalentou foram as coordenadas dadas por um sonolento vigia, deitado em um casebre às margens da estrada. Supostamente ele deveria abrir e fechar a cancela controlando o movimento nesta área, que é protegida por ser integrante do Parque Natural Nascentes de Paranapiacaba. A cancela, contudo, jazia partida em duas. Aproveitamos as dicas do velho homem e mantivemo-nos na estrada, chegando pouco tempo depois a Taquarussu.

Resquícios da ligação de Taquarussu com Paranapiacaba

Taquarussu
Uma lagoa esverdeada, uma igreja, um coreto e seis casas: descrição mais fiel da Vila de Taquarussu é impossível. Hoje pertence a Mogi das Cruzes, mais precisamente ao distrito de Quatinga. Durante a Segunda Guerra Mundial funcionava neste local, cercado por brumosas montanhas e mata atlântica, uma mineradora de origem italiana que provia carvão à Estação de Paranapiacaba, uma vez que a Inglaterra estava diretamente envolvida no confronto, ficando impossibilitada de suprir a demanda. Conhecemos uma família local. Com um sotaque italiano, confidenciaram se tratar de uma vila zelada carinhosamente por todas as seis famílias que ainda subsistem neste recôndito. “Aqui sempre está assim. Sempre pintadinha. Sempre charmosa”. Além disso, deram-nos coordenadas para o restante da estrada de terra.
Última imagem de PNB
Optando pelo viés esquerdo em cada bifurcação, e sem perder de vista um aglomerado de torres de energia no horizonte, encontramos asfalto. Saímos na Subestação de Tijuco Preto, em Mogi das Cruzes, que transmite para a região a energia proveniente da Hidrelétrica de Itaipu. Cruzamos toda a cidade de Mogi e Suzano, onde acessamos a Rodovia Ayrton Senna. Minutos depois estávamos na Marginal Tietê, em São Paulo, buscando a Rodovia dos Bandeirantes. Daí pra frente, o mesmo: Anhanguera, Americana, casa. Quando a viagem se encerra, que as lembranças fervilhem e nutram o ensejo de uma próxima.
PARA algo? DE algo? Como bom iconoclasta, em certos momentos prefiro contrariar ambos e responder que viajo POR algo. Esse bucolismo, essa inquietude, essa centelha que me propulsiona... Viajo POR tudo isso. Não me reconheceria se agisse de outra maneira ou se me prostrasse indiferente a esse sentimento. A todos aqueles que preferem o sedentarismo (no sentido de se fixar num mesmo local) ao nomadismo, minhas sinceras saudações. Todavia, e não me tenham por esnobe quando brado tal sentença, escolho ser assim: antagônico a vossas mercês.


Mais fotos aqui.

E abaixo um blues composto para o passadismo de Paranapiacaba e Taquarussu.

Um comentário:

  1. Faça o que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples, você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade.
    Hoje eu vi este trecho e lembrei de você é do Mario Quintana, cada vez que leio algo do seu Blog lembro como é fácil ser feliz e curta a vida um beijo no coração da sua sempre amiga Marry

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