quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Marechal Mascarenhas e Desemboque – de 10 a 12 de fevereiro de 2013



Quanto mais perambulo por este país, mais me certifico de que unir o que é histórico e o que é natural numa mesma rota é mais incomplexo do que parece. Enquanto os meios de veiculação de imagens, vídeos e informações turísticas, em sua completude quase sempre comandados à mão-de-ferro por grandes corporações televisivas e comercializadoras de pacotes preconcebidos, tentam “vender a ideia” de que regiões ou cidades que comutem essas duas características são raras e distantes (exemplos: Paraty e Salvador), outros, como eu, procuram informações a respeito de ermos praticamente desconhecidos e olvidados pelo turismo de consumo atual, aquele que transforma lugares e seus atrativos em simples produtos a serem comprados em suaves prestações pelos que, por não augurarem desperdiçar muito tempo em pesquisas ou por ignóbil comodidade, preferem adquirir o que já está pronto. Não é questão de eu achar que minha maneira de viajar é melhor que a de quem consome. É, admito, apenas uma tentativa infrutífera de incutir um pouquinho de criticidade no já bem alienado “pensar” de grande parte dos “viajantes” brasileiros. 
Companheiros de aventura
Uma viagem se principia muito antes de dar partida a um motor e se enviesar pelas estradas que levam ao destino pretendido. Ela começa semanas, meses, anos antes, e fagulham de uma simples ideia que, fomentada, vai ganhando força, delineando-se de acordo com nossas possibilidades e expectativas. Essa, que agora me atrevo a relatar, vem sendo nutrida desde a leitura do estupendo Sertão da Farinha Podre, de José Ferreira de Freitas, isso lá pelos idos de 2010. O livro, que relata a história do Triângulo Mineiro desde sua ocupação exclusiva por índios, onças e sucuris “engolidoras de gente” até os dias mais atuais, passando pelas fases bandeirantista e aurífera, em várias de suas páginas menciona o povoado de Desemboque, do qual muito ouro foi extraído e contrabandeado no século XVIII. Era de difícil acesso por estar envolto por uma cadeia intrincada de serras no vale do rio das Velhas, nos contrafortes do Chapadão da Zagaia e do grupo de montanhas que formam atualmente o Parque Nacional da Serra da Canastra. Além das informações históricas contidas na publicação, pouco se encontra de realmente substancial sobre o vilarejo, que hoje pertence ao município de Sacramento (MG), muito embora diste 70km do mesmo. Se não fosse pelas poucas fotos de alguns viajantes eu talvez nem desconfiasse que tal lugar ainda existisse. Por fim, no Carnaval de 2013, em que uma viagem ao Paraná fora programada e, na iminência da partida, cancelada, voltei minhas forças para o norte, arrebanhando para acompanhar-me Luana Romero e Luiz Paulo Bombarda Blanes. De quebra, passaríamos pela minha “menina dos olhos” no sul mineiro, o rio Grande, numa parte de seu curso ainda desconhecida por mim. 
Estrada Franca-Ibiraci
A partida de Americana se deu às 7:30h de um domingo em que antevíamos um tráfego intenso na Anhanguera, que liga a capital São Paulo e o interior paulista ao Triângulo Mineiro, região essa que José Ferreira de Freitas classificou como a Mesopotâmia Triangulina, um “bico” formado pelos cursos dos rios Grande e Paranaíba, que ao confluírem formam o gigantesco Paraná. O desenho retilíneo da rodovia evoca o enfado, e o cultivo em larga escala da cana-de-açúcar em seus acostamentos contribui para a longevidade desse estado de espírito. Sem muitas emoções avançamos por Cravinhos e pela metrópole Ribeirão Preto, acessando a partir dessa última a rodovia Cândido Portinari. Passamos pelos rios Pardo e Sapucaí e pelos perímetros urbanos de Brodowski (cidade natal do artista plástico que nomeia a rodovia) e Franca, a partir da qual o cenário drasticamente se transforma. Os altos edifícios da “capital calçadista” se minimizam no retrovisor à medida que trilhamos a vicinal Franca-Ibiraci, na crista da Serra de Franca. O modo de vida simples do interior paulista e do sul de Minas Gerais começa a ficar evidente. Sobre o lombo de cavalos sitiantes perambulam, com um pano de fundo formado pelas Furnas dos Taveiras e serras dos Borges e dos Garcias. Enquanto cruzamos a divisa de Estados, testemunhamos a consolidação das plantações de café. Estamos, portanto, já em Minas Gerais, mais precisamente no conglomerado urbano de Ibiraci (mãe da árvore, em tupi), que com seus 12000 habitantes não parecia estar disposta a celebrar o Carnaval. O mesmo se passava conosco e, registrando a imponente Igreja de Nossa Senhora das Dores, ou Matriz de Ibiraci, aceleramos em direção ao vale do rio Grande, distante ainda 30km dali.

Furnas dos Taveiras e serras dos Borges e dos Garcias

Matriz de Ibiraci

Capela da Piçarra

Casa de Visitas na Vila de Furnas
Deixar Ibiraci e direcionar o foco para a região da Usina Marechal Mascarenhas de Moraes, onde pretendíamos pernoitar, é praticamente adentrar um novo mundo, no qual altas montanhas escondem vales magníficos e vistas que alcançam quilômetros de distância, mesmo com o tempo deveras nublado. O cerrado demonstra sua força, principalmente no trecho da esburacada vicinal que une o Povoado da Laje ao rio Grande. No vale entre as serras da Chapada e da Tocaia, numa região conhecida como Piçarra, encontra-se uma capela azul-turquesa e um simples cruzeiro de madeira rubra, no alto de um pequeno morro encarapitado em meio a um descampado plano. É a Capela de Nossa Senhora de Lourdes, ou simplesmente Capela da Piçarra, de 1931. Procuramos guarida no arredores da pequena edificação católica, mas a falta de opções e o grande contingente de pessoas que rondavam por ali nos incitaram a prosseguir em direção ao vale do rio Grande. Questionando os cidadãos locais, sempre dispostos a colaborar com toda a benevolência característica do sul mineiro, passamos a primeira guarita da usina e encontramos abrigo na Vila de Furnas, ou Vila da Usina Mascarenhas, um local histórico inaugurado por Juscelino Kubitschek e antigamente frequentado por políticos do alto escalão, como o governador mineiro e vice-presidente militar Aureliano Chaves e o próprio Kubitschek, idealizador de Brasília. Como citado no prólogo, a junção do histórico com o natural mais uma vez se mostrou evidente, pois pássaros, como o xexéu, a maria-faceira, o bem-te-vi-pequeno, o tucano e o carrapateiro, e aracnídeos como a temida aranha-armadeira, dividiam o mesmo espaço com as construções históricas da década de 1950, uma época que, apesar de recente, provocou grandes transformações no Brasil e clama seu devido lugar à História nacional. Afinal, pretendia-se crescer 50 anos em 5, e embora tal meta não tenha sido alcançada, muito de bom e de ruim se fez com vistas a tal.

Carrapateiro

Aranha-armadeira

Tucano

Rio Grande
Devidamente alojados e destituídos do excesso de bagagem, coletamos algumas informações da região com Marcos Williams, gerente das instalações da vila, que gentilmente nos indicou os pontos mais interessantes nos arredores da usina. Já eram 15h e não pretendíamos ir a Desemboque nesse mesmo dia, visto que as estradas que nos levariam a ele são precárias e demandariam muito tempo e esforço, obrigando-nos a postergar a faina para o dia seguinte. Some-se a isso o céu que, de nublado, passara a austeramente negro, desabando sobre nós a princípio uma refrescante garoa, e ulteriormente um acachapante aguaceiro. Restou-nos fotografar a grandiloquente Usina Hidrelétrica de Marechal Mascarenhas, antiga Usina de Peixoto, a partir de um mirante da Serra da Chapada. Logo atrás, um pouco mais elevado que a barragem, um paredão da Serra do Funil. O rio Grande, de um azul transparente, corria em seu curso natural após a usina entre as serras de Peixoto, ao norte, e a da Chapada, ao sul, esta começando metros depois da barragem e se estendendo rio abaixo, sentido oeste. Foi na da Chapada que nos embrenhamos, pois era a única estrada existente. Acabamos calhando numa ponte antiga e de simples engenharia sobre o rio Grande, da qual se obtém uma vista estupenda do mesmo. De tão transparente é possível ver rochas enormes submersas a três ou quatro metros abaixo de sua superfície. Guarnecido pela sempre presente Serra da Chapada, ao sul, e pela Serra de São Jerônimo, ao norte, foi a primeira das inúmeras visões inesquecíveis que essa viagem me proporcionou. Eu, um grande admirador do rio Grande e que ainda não tive a oportunidade de conhecê-lo por completo, a exemplo do que fiz recentemente com o Itabapoana (link aqui), nutri ainda mais o meu desejo de um dia levar a cabo essa empreitada. Assim vivem os viandantes, irrefreáveis devaneadores, caçando aventuras dentro de outras aventuras.

Usina Hidrelétrica de Marechal Mascarenhas com o paredão da Serra do Funil logo atrás

Serras do Peixoto, à esquerda da barragem, e da Tocaia, à direita

Ponte sobre o rio Grande e montanha da Serra da Chapada

Cachoeira do clube
No lado norte do rio Grande se principia o Triângulo Mineiro propriamente dito, o adunco “nariz” de terra que, no período bandeirantista, pertenceu a Goiás. Recomendo novamente aqui a leitura, aos mais interessados pela história da Mesopotâmia Triangulina, do livro Sertão da Farinha Podre (outro nome dado ao triângulo), de José Ferreira de Freitas. Conta-nos ele que, no ano de 1915, o doutor Joaquim Inácio da Silveira, Ouvidor Geral de Paracatu, outro influente julgado da época, raptou a jovial Ana Jacinta em uma visita a Araxá. Os pais de Dona Beja, como era conhecida a moça, denunciaram o enfatuado homem ao Governador de Goiás. O Ouvidor Geral, utilizando-se de sua influência com a Coroa Portuguesa, engrossa o coro de vozes que já clamava há tempos pelo desanexamento do Triângulo de Goiás e passagem para a posse de Minas. Em 1816, o Triângulo é proclamado mineiro, e Joaquim Inácio da Silveira se safa, pois cometera um delito em um território em que as leis goianas já não o atingiriam. Cômico, com certeza, mas o certo é que não estávamos ali por causa de Dona Beja, mas sim em busca de algo testemunhável, que pudéssemos registrar em fotos. Seguindo as coordenadas de Marcos, meu xará da Vila de Mascarenhas, bordejamos o norte do rio por uma estrada estreita, desviando de pedras e cachoeiras temporárias que escorriam pelos imensos paredões da Serra de São Jerônimo. Cruzamos por vários ranchos de pescadores e nos deparamos com os portões de um clube que, cobrando-nos R$5,00 cada, nos permitiu o acesso a uma trilha de quartzito que nos apresentou à primeira cachoeira da incursão. Não era sabido o seu nome, a propósito, por mais que interpelássemos os funcionários do clube. Não gozava sequer de forma, por sinal, visto que as chuvas do dia e as dos dias anteriores descarregaram um turbilhão de água serra abaixo, transformando a queda em um irrefreado rio caudaloso vertical, na falta de palavras mais esclarecedoras para o fenômeno. Lamentando, demos meia volta e retornamos à entrada do clube, que oferecia uma bela vista dos paredões de arenito da Serra da Chapada, do outro lado do rio, e das pequenas cachoeiras que escorrem por ela em direção ao Grande, que nesse ponto já apresentava indícios do represamento pela Usina de Estreito, alguns quilômetros rio abaixo. Infelizmente é assim: onze hidrelétricas, se não construírem outras enquanto escrevo, num curso de 1300km. Pode-se dizer, sem medo de errar, que quase pouco sobrou do verdadeiro leito do rio. Foi esse o último pensamento do primeiro dia de viagem, enquanto regressávamos à vila, sob forte chuva, para pernoitarmos.

Princípio do Reservatório de Estreito

Serra da Chapada

Cachoeira temporária formada pela chuva
  
Xexéu
No dia 11, logo pela manhã, despertados pela algazarra dos soturnos xexéus e das espalhafatosas maritacas, saímos rapidamente da vila no encalço do distrito de Desemboque. Refizemos o mesmo caminho do dia anterior, passando pelo mirante da usina e pela ponte, mas agora subindo uma estrada mista de terra e pedra para o norte. A situação calamitosa da via provocou alguns sustos, mas os pontos de observação oportunizados pelas curvas perigosas e escorregadias fizeram os entraves valerem a pena. A altitude subia drasticamente e a visão do vale do rio Grande e das serras que o ladeiam, lá embaixo, foi inegavelmente a segunda a me marcar. O cheiro do cerrado e o capim-estrela nos envolviam, e sobrepassando pontes de madeira calhamos no alto da Serra das Sete Voltas, visualizando o Lago de Peixoto bem ao longe, ao sul. Desviando um pouco da rota, descemos para um vale à procura da Cachoeira Nascentes das Gerais, tida como a maior da região. A descida, em si, pagou mais uma vez o sacrifício. Ao norte via-se o Chapadão da Zagaia, uma mesa de pedras que escondia nosso real objetivo, já que Desemboque fica ao norte do mesmo. Na Fazenda do Danilo, após alguns minutos, deixamos as motos à sombra de goiabeiras e trilhamos, a pé, o caminho por entre o cerrado e capões de mata até a supracitada cachoeira, que com 83 metros de queda esbanjava força e imponência. Era impossível chegar a menos de 3 metros do local do choque da água com o poço. Por incrível que pareça, tal contato produzia ondas parecidas com as dos mares menos agitados. Nem mesmo Luiz Paulo, exímio nadador e bravio “domador” de quedas d'água se atreveu a uma aproximação mais íntima. Era o segundo dia de viagem e a segunda cachoeira nos derrotava. Porém, não há como nos quedarmos cabisbaixos quando emparedados pela maravilhosa Serra das Sete Voltas, ouvindo atentamente aos relatos de Danilo, proprietário da fazenda que detém a cachoeira em seu território, sobre suçuaranas, lobos-guará e tamanduás que perambulam por ali nos fins de tarde. “Os bichanos vêm atrás das minhas galinhas”, disse ele se referindo aos predadores, “mas não me aborreço. Cheguei e essas bandas depois deles”.

Vista do alto da Serra de São Jerônimo

Chapadão da Zagaia

Cachoeira Nascentes das Gerais

Pica-pau-branco
Estava eu ardendo em febre quando abandonamos o vale e recuperamos a rota no alto da Serra das Sete Voltas. A chuva do dia anterior, que nos deixara encharcados, fazia sua vítima. Deixei de sentir calafrios no alto do Chapadão da Zagaia, pouco após cruzarmos pelo povoado de Sete Voltas, mais um dos distritos de Sacramento esquecidos à própria sorte nas intrincadas serras circundantes da Canastra. Uma estrada lisa, barrenta, em meio a uma plantação de soja, fez com que Luiz experimentasse o gosto da terra mineira. Felizmente não se machucou e nem avariou sua moto. O ponto positivo foi a presença, na mesma região, do tucano-de-bico-verde, espécie cada vez mais rara devido a destruição do seu habitat natural, do pica-pau-branco e da ave símbolo de nossas aventuras, o caracará, ou carcará. Em certo ponto do caminho as estradas sumiram, muito embora meu mapa apontasse para a existência de uma. Interpelamos um cidadão, solitário em seu rústico casebre no meio do nada, e o mesmo nos informou que teríamos que atravessar uma plantação de soja, depois uma quiçaça alta e finalmente encontraríamos a estrada. Quando nos demos conta estávamos envolvidos por todos os lados pela braquiária do Chapadão da Zagaia, sem condições de continuar sem colocar em risco principalmente Luana, que vinha engarupada em minha moto. Um outro motociclista, todo enlameado, vinha em sentido contrário e nos exortou a regressar ao povoado de Sete Voltas e tentar um outro caminho que, embora mais longo, seria mais rápido e certamente menos tenebroso. Olhei para Luiz e senti que o mesmo gostaria de prosseguir, custasse o que custasse. Eu também, mas tinha que pensar em Luana. Por fim, acabamos usando o bom senso e volvendo a Sete Voltas. De lá para Desemboque foi um “tirinho” por estradas de terra hediondas, mas possíveis de se trafegar. Numa última reta, descendo o Chapadão da Zagaia pelo norte, tratores impediram nossa progressão e fomos obrigados a entrar em uma plaga revolvida, recém preparada para o plantio da soja. Quase Luana e eu, a exemplo de Luiz, conhecemos o gosto da terra mineira.

No alto da Serra das Sete Voltas

Povoado Sete Voltas

Tucano-de-bico-verde

Desemboque
Tudo é plácido quando se entra em Desemboque. Parece que até mesmo as aves velam a sua calmaria, deixando de produzir os sons que lhes são característicos. Duas ruas de paralelepípedos, algumas casas coloniais aparentemente abandonadas, um par de igrejinhas que resistem ao tempo e poucos e vagarosos transeuntes são os elementos de um cenário que, na centúria XVIII, certamente foi mais ululante. Não era para menos: havia muito ouro naquela época. De tão próspero, o Desemboque chegou a ser sede de governo e subordinar todas as outras vilas da região da Mesopotâmia Triangulina aos seus desígnios. Suas origens são incertas, mas há quem diga que tudo começou com as bandeiras comandadas pelo paulista Bartolomeu Bueno do Prado, caçador de índios e negros, que de tão sádico e carniceiro carregava consigo uma fieira com as orelhas decepadas dos corpos que ceifava a vida. Expulsaram os índios caiapós, nativos da região, encontraram ouro e deram início ao povoado. O certo é que era um local de difícil acesso (e ainda é), visto ser a primeira vila propriamente dita do Triângulo Mineiro (na época goiano), e muito do ouro foi roubado e contrabandeado. A Coroa Portuguesa exigia um quinto (“o” quinto) de tudo o que era extraído, mas a fiscalização, quando demonstrou que se tornaria mais eficaz, encontrou apenas os últimos resquícios da pedra preciosa, responsável pela ascensão e pela ruína de todo e qualquer ponto onde fora descoberto até então. Desemboque, subitamente, desfigurou-se. Os moradores, nômades do ouro, debandaram à procura de novos veios. Deixou de ser centro de poder, pois ali já não havia produção intelectual e concentração de riquezas.

Remanescente da arquitetura colonial

"Seo" Lázaro conosco

Igreja do Rosário, de meados do século XVIII, construída para os escravos

Detalhe da Ig. do Rosário
Logo ao apearmos das motos fomos recepcionados pelo senhor Lázaro, único habitante local que se encorajou a conversar com três pessoas em estado lastimável, cobertos de barro, puaca e carrapichos de diversos formatos. O simples homem, trajando roupas surradas e um chapéu de palha, contou-nos um pouco da dinâmica sonolenta de Desemboque, vilarejo de onde partiu para o estrelato nacional o ator Lima Duarte. Explicou-nos um pouco sobre as duas igrejinhas que ainda resistem ao tempo, uma construída para os brancos, em 1743, e a outra, na parte mais alta da vila, para os negros, que não podiam frequentar a dos brancos, datada de 1750, aproximadamente. Ambas são simples capelas de barro, sendo a primeira chamada de Nossa Senhora do Desterro do Desemboque e a segunda de Nossa Senhora do Rosário. “Seo” Lázaro nos exortou a adentrar a dos brancos e conhecer o seu interior já muitas vezes saqueado. Assim o fizemos, despedindo-nos do homem que, como todos os outros de Desemboque, sobrevive pela agricultura de subsistência. Vencendo o pequeno portão férreo e enferrujado, desviamos dos túmulos desorganizados dispostos pelo espaço defronte ao átrio da igreja de Nossa Senhora do Desterro do Desemboque e entramos pela porta lateral do templo, registrando seu simples altar datado de 1762. É todo entalhado em madeira com detalhes dourados, numa rusticidade que Luana e eu não testemunhamos em Ouro Preto e Mariana, onde as igrejas se rebuscaram em demasia devido à ambição e à competição entre as famílias ou grupos que as erigiam. Enfim, foi a última visão de um local histórico no qual se gasta apenas uma hora para conhecê-lo por completo. Logicamente a região, por estar nos pés de serras, esconde cachoeiras e vales magníficos, mas infelizmente não teríamos tempo de procurá-los nessa oportunidade. Destarte, é sempre bom deixar um motivo para voltar.

Igreja de Nossa Senhora do Desterro do Desemboque, de 1743

Cemitério defronte à igreja

Altar entalhado em madeira

Adeus, Desemboque
Saindo do vale do Araguari, antigo rio das Velhas, subimos novamente ao alto do Chapadão da Zagaia e rumamos sentido oeste, vencendo mata-burros, buracos, lama e revoadas de canários-da-terra. Carrapateiros, curicacas, carcarás e seriemas eram vistos esporadicamente. Após 50km de estradas de chão alcançamos o asfalto das imediações da cidade de Sacramento, ao qual pertence o Desemboque. Já sentindo a umidade do rio Grande, descemos ao vale de mais uma de suas represas, a de Jaguara, antiga conhecida da viagem que Rodrigo Gil e eu fizemos em 2012, quando passamos por ela a caminho de Três Marias (link aqui). Passando a ponte, voltamos para São Paulo, pois de Ibiraci em diante o rio demarca a divisa entre os Estados. Em Rifaina, acessamos uma outra estrada de chão que, circundando a Serra da Chave, nos conduziu até o asfalto que, se o seguíssemos em direção ao norte, daria acesso a Usina de Estreito. Como rumamos sentido sul e posteriormente ao leste, acabamos circundando Claraval e chegando ao Povoado da Laje, citado no primeiro dia de viagem. Daí pra frente foi necessário apenas refazer o percurso, descendo ao vale da Capela da Piçarra e embicando para o vale do Reservatório de Peixoto, alcançando, exauridos e maltrapilhos, no principiar da noite, a Vila de Furnas, onde mais uma vez pernoitaríamos. Lembrei-me das palavras de Marcos Williams. “Políticos e pessoas convidadas famosas faziam festas aqui e, no outro dia, todas as roupas eram queimadas para não serem reutilizadas ou roubadas e comercializadas pelos empregados ou por quem quer que seja”. Não nos aguardavam com festa. Na verdade, não nos aguardavam. Ainda bem. Nosso Carnaval não anseia festividades, mas sim novos ermos para continuar o processo de (re)descobrimento do Brasil. Restou-nos, então, descansar, para no dia posterior, já a caminho de casa, conhecer novas paisagens.

Carcará

Serra da Chave, em Rifaina

Adeus, Vila de Furnas
No dia 12 de fevereiro, despertados pelos barulhentos xexéus, despedimo-nos de Marcos Williams e da Vila de Furnas para darmos início ao difícil ato de regressar. Aproveitamos ainda uma última dica do benevolente homem, um ser humano raro nos dias atuais. Voltamos para a ponte sobre o rio Grande, mas não a atravessamos. Bordejamos, desta feita, o rio pelo lado sul, por uma estrada que dá acesso aos ranchos instalados nos contrafortes da Serra da Chapada. No terceiro mata-burro, encostamos as motos e seguimos, a pé, por uma trilha entre a mata atlântica fechada, beiradeando um dos inúmeros cursos d'água que descem dos pontos culminantes da serra. Em pouco tempo topamos com a gélida Cachoeira dos Ranchos, que com mais de 40 metros de queda escorria por um paredão de pedras enegrecidas e quase intocadas pela luz solar. Foi uma despedida à altura da magnífica região de Marechal Mascarenhas, que guarda em seus domínios mais de 150 cachoeiras, serras intrincadas, pessoas acolhedoras e paisagens que mesclam o que é ainda natural e o que já foi modificado pelo homem, mas que de uma maneira ou de outra mantém os genes garbosos das épocas da Mesopotâmia Triangulina. Certamente Luiz Paulo, Luana e eu retornaremos algum dia para explorar o que o curto tempo dessa viagem nos furtou de conhecer. Voltando para nossas motos, como que dizendo adeus, um pássaro cada vez mais raro na vida selvagem livre, o sabiá, entre as folhas e a escuridão da mata atlântica se deixou fotografar. Devido às condições de pouca luz, a imagem ficou horrenda, mas serviu como um registro de que a vida, apesar de todos os empecilhos, ainda se esconde para, quem sabe um dia, reivindicar seu lugar no mundo.

Cachoeira dos Ranchos

Detalhe da queda de 40 metros

Sabiá-barranco
  
Vista da Serra da Tocaia
Partindo em definitivo de Marechal Mascarenhas, enveredamo-nos por uma estrada de terra nas proximidades da Capela da Piçarra, subindo a Serra da Tocaia e obtendo belas vistas da Represa de Peixoto. Quando nos demos conta já estávamos em território pertencente ao município de Cássia, contemplando um imenso paredão de arenito do qual descia, longínqua, uma volumosa cachoeira. Conversamos com um senhor, do qual esqueci-me de perguntar a graça, e pedimos informações para chegar à queda d'água, mas o mesmo nos dissuadiu argumentando que não existiam trilhas e que o gado das pastagens adjacentes era potencialmente perigoso. Segundo meus mapas estávamos no sopé da Serra do Itambé. Para não sairmos de “mãos vazias”, o homem nos indicou uma outra cachoeira, longe ainda uns 5km dali, que poderíamos acessar sem problemas. Seguimos, então, pela estrada e, numa venda, enquanto Luiz se deliciava com os “paiêros” artesanais da região, obtive coordenadas para a Cachoeira do Itambé, presente na mesma serra. Fomos até a mesma e, com muitas dificuldades, chegamos a um mirante defronte a queda de 30 metros de altura. O engraçado é que o mesmo homem que nos informara sobre a cachoeira pouco tempo depois veio dar uma olhada para se certificar de que a acháramos, em mais uma mostra de que o povo do sul mineiro carrega um espírito de benevolência cada vez mais raro nos conturbados ambientes urbanos das grandes cidades de São Paulo, como a em que vivo. Foi um local em que nos demoramos em demasia, como que a retardar o regresso definitivo. Afinal, dali para frente seguiríamos pelo asfalto e por áreas mais urbanizadas. O bucolismo se despediu com a visão das águas atingindo com força as rochas triangulares dos contrafortes da Serra do Itambé. Adeus, vale do rio Grande.

Serra do Itambé

Cachoeira do Itambé vista da estrada

Cachoeira do Itambé
  
O regresso
Por volta das 16h passamos pelo centro de Cássia, pelos perímetros urbanos de Pratápolis e São Sebastião do Paraíso, onde apeamos para descansar pela última vez em solo mineiro, às 17:30h. Na sequência vieram Arceburgo, o rio Canoas e Mococa, já no Estado de São Paulo. Daí pra frente foi só seguir o traçado retilíneo da SP340 até a cidade de Mogi Mirim, onde pendemos sentido Engenheiro Coelho e Limeira. Na Anhanguera, com a noite nos envolvendo, pilotamos até a Praia Azul, em Americana, findando a viagem de Carnaval com o odômetro parcial de minha moto marcando 1000km rodados. Não foi uma incursão longa, mas os perigos das estradas de chão das confusas serras do sul mineiro nos estafaram feito uma viagem de 3000km. Logicamente toda a beleza do que foi contemplado sobrepujará, em minhas memórias, o sacrifício empregado no decorrer da aventura. Voltarei àqueles ermos, certamente, para melhor desbravar tudo o que têm a oferecer. E para aqueles que odeiam as comemorações boêmias que permeiam o nosso feriado de Carnaval, que se dirijam para aquelas bandas, onde festanças praticamente inexistem e a paz é deveras constante. Quem não vê emoção em festividades pode simplesmente estar procurando-a em um local indevido. A alegria, quase sempre, não se encontra na ébria e momentânea felicidade de uma festa, mas sim no ato estático de parar e observar, do alto de uma serra, um mundo aparentemente pacífico, e que só entrará em guerra a partir do momento que para ele regressarmos, pois somos, em suma, os criadores e perpetuadores do caos. Nós, os seres erroneamente chamados humanos, lembrando a fala de um outro querido autor. Mas essa já é outra estória. 
“O silêncio era absoluto, apenas entrecortado pela onomatopeia que caracteriza as matas e cerrados virgens: de fato, o que se podia ouvir eram o assobio do vento, as “vozes” dos animais, representadas por pios, cânticos, trinados ou chilreios dos pássaros, o barulho das fontes, o “urro” das cachoeiras, o uivo de lobos, o miado característico das onças, o tique-taque dos dentes das queixadas... o tombo da caça presa pelas garras da onça faminta... Às vezes, aqui e ali, o silêncio sepulcral era interrompido pelo ranger de árvores gigantes, envelhecidas pelo tempo e bravamente retorcidas pelo redemoinho que sacode ou pelo tufão que ruge... ou pelo pio triste das perdizes que povoam as campinas... pelos guinchos afinados dos micos, até o “ronco” ou “mugido” dos macacos maiores, anunciadores da chuva que vem ou do frio que se vai... ou pelo estalido seco ou abafado do trovão que prenunciava as chuvas ou pelo farfalhar das folhas levemente agitadas pela brisa ou balouçadas loucamente pelo vento que ruge e avassala”. O Triângulo Mineiro, hoje diferente do que era, ainda continua belo, José Ferreira de Freitas, mas em alguns pontos ainda praticamente inacessível. E, como os bandeirantes, nós e outros, “afrontando perigos, contornando cachoeiras, deslizando as canoas sobre toras roliças de madeiras nos varadouros, enfrentando as onças traiçoeiras, as serpes venenosas, os marimbondos e abelhas escondidos, e as gigantes cobras sucuris engolidoras de gente”, continuaremos desbravando-o.


Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.


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Sigo compondo meus curtos blues, como o que segue abaixo em referência ao rio Grande e ao Desemboque. É uma tentativa vã de recuperar a paz e a satisfação que eu sentia em viver quando a responsabilidade era quase nula, em meus tempos de menino, quando somente a sombra de uma árvore piracicabana, um violão e uma lasca de uma ideia eram o suficiente para eu ocupar satisfatoriamente o meu tempo.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Serra das Cabras - 03 de fevereiro de 2013


Nem só de grandes viagens é feito um viandante. As consideradas curtas são mais apreciativas, embora aos mais ambiciosos caiba refutar, pois tanto a chegada ao destino quanto os caminhos alternativos de regresso são rápidos, conhecidos há muito pelas perambulações corriqueiras ou a trabalho, ensejando um tempo maior de exploração do local pretendido. Costumo dizer, para solidificar minha teoria, que grandes incursões fortificam o caráter de um homem, pois exigem do mesmo pertinácia de espírito e resistência física. As pequenas, por outro lado, moldam, aguçam, aperfeiçoam os sentidos, que não são estacionários, como muitos podem pensar. São, pelo contrário, suscetíveis ao treino e, em consequência, a melhoramentos. Frequentemente, em uma longa jornada, nos privamos de descansar à sombra de uma frondosa árvore e de observar, serenamente hirtos, os traços irregulares de uma cadeia de montanhas no horizonte, uma vez que o objetivo final ainda está distante e o tempo é escasso. Nas mais curtas, para-se onde por bem parar entende-se, já que o tempo não é um fator tão limitante. Enfim, embora minhas explanações sobre ambas possam parecer antagônicas e confusas, reitero que são complementares entre si. Um completo caminhante depende de suas águas duais para preencher um hiato na vida que, em sua grande parte, é alienada, apartada do que mais o apraz. 
Caminhos que nos levam
Todos os habitantes da nossa famosa RMC (Região Metropolitana de Campinas) concordam que os nossos redutos naturais, sejam eles de qualquer espécie, rareiam-se. Rios estão condenados, a fauna foi dizimada ou escorraçada para outras regiões e o que resta da vegetação nativa convive, ombro a ombro, com a indesejada monocultura da cana. É um quadro desolador para quem procura, sempre que pode, manter uma certa distância da agitação burocrática e do ambiente acinzentado dos grandes centros urbanos de Americana, Sumaré, Hortolândia, Santa Bárbara d'Oeste e Limeira, só para citar alguns. Não obstante, uma breve pesquisa nos mapas da metrópole campineira é suficiente para encontrarmos algo interessante. Delineia-se, a nordeste, uma área em que a cor verde predomina. Não é um jardim botânico artificial nem tampouco um parque ecológico de grandes dimensões. Trata-se de um triângulo imaginário formado pelo minúsculo distrito de Joaquim Egídio e as cidades de Morungaba, a leste, e Pedreira, ao norte, dentro do qual figura a chamada Serra das Cabras. Nesse cenário, onde os limites entre os municípios se camuflam em meio a resquícios de mata atlântica e incontáveis fazendas coloniais cujas origens remontam ao Ciclo do Café, no começo do século XIX, nos aventuraríamos em busca de cenários ainda desconhecidos de grande parte da população circundante. Recrutei, para acompanhar-me, Luana Romero, sempre ávida, engarupada em minha moto, esbanjando resistência e um olhar afiado à detecção de pequenos pássaros, répteis e mamíferos nas vias em que a necessidade de pilotar cautelosamente me impede de desgrudar os olhos da estrada, e Thiago Lucas Santos, cúmplice de outras aventuras pelo litoral paulista e pela Serra da Mantiqueira. 
Rio Atibaia
Deixamos a Praia Azul, em Americana, às 8:30h de um domingo nublado típico de verão. Ignorando as previsões climáticas, que apontavam para uma possibilidade de 80% de chuva, aceleramos pela Anhanguera até o acesso a Dom Pedro, rodovia essa que nos conduziu pelo perímetro da cidade de Campinas. Com mais de 1 milhão de habitantes, a metrópole interiorana é maior do que a maioria das capitais de Estado brasileiras. Para se ter uma noção, Campo Grande, a bela cidade morena, capital do Mato Grosso do Sul, tem pouco mais de 800 mil. Afastando-nos da área mais urbanizada, passamos pelo acesso ao distrito de Sousas e adentramos o próximo, atravessando uma ponte sobre o sereno rio Atibaia, que nasce da confluência dos rios Atibainha e Cachoeira, entre Atibaia e Bom Jesus dos Perdões, alguns quilômetros ao leste. É, juntamente com o Jaguari, formador do rio Piracicaba, na região do Salto Grande, em Americana, praticamente no “quintal de minha casa”, como gosto de falar. Uma placa alertava à presença do temido carrapato estrela em sua escassa mata ciliar, mas isso parecia não dissuadir o ímpeto de incautos pescadores que se embrenhavam à procura de um bom lugar nas pedregosas barrancas para alocar suas tralhas. A febre maculosa, transmitida por esse aracnídeo hematófago que geralmente parasita capivaras, é potencialmente fatal. Enfim, cada um enfrenta o perigo que julga necessário ao encontro de um sentido para a vida. Lembrei-me das palavras de um imperturbado mineiro que, por horas a fio, imóvel, pescava nas barrancas do rio São Francisco, em Três Marias. “ nunca vai entender o que eu faço aqui parado, meu filho, assim como eu nunca vou entender o que faz por aí, de um lado pro outro, inquieto, em cima de uma moto. Muita gente acha que ter atitude é agir com energia e nunca parar. A minha atitude é o oposto. É uma atitude estática, uai”, disse ele.

Estrada da Bocaina
Ao fundo, a Serra das Cabras

Seriemas
A estrada que se segue após a ponte é de um chão batido de consistência semelhante à do asfalto. Sem emoções, em suma. Vencendo-a, entrecortamos o distrito campineiro de Joaquim Egídio, antigamente conhecido como Bairro do Laranjal, e nos dirigimos incontinenti para uma outra estrada de chão, a da Bocaina, a primeira ao sul na vicinal Campinas-Morungaba. Ladeada primeiramente por extensas pastagens e sítios, começa a metamorfosear-se à medida que se aproxima das margens do sempre presente rio Atibaia. Surgem eucaliptos, que impregnam o ambiente com seu aroma peculiar, casais de seriemas ressabiados pelo transitar de nossas motocicletas, sedes de fazendas coloniais do ciclo cafeeiro e, mais notavelmente, os desenhos dos píncaros da Serra das Cabras, nosso escopo, bem ao longe. Em um determinado momento, cercas vivas naturais chamaram a nossa atenção. Talvez escondessem apenas mais uma fazenda. Um grande portão de madeira, entreaberto, nos convidou a uma espiada. Entramos, sorrateiros, visando fotografar o máximo possível até que alguém nos advertisse. Tratava-se do campo de golf da Fazenda Guariroba, esporte praticado pela elite financeira do mundo todo. São greens imensos, com aparagens de diversas alturas, divididos por um regato artificial que desemboca diretamente no rio Atibaia, esse emparedado, na margem oposta, por um monte de rala vegetação e de um verde mais escuro que o do campo. Embora seja um ambiente elitizado e artificial, não há como não enaltecer o zelo e a maestria com que são cuidados esses palcos esportivos. Saímos incólumes dali, ferindo com pesadas botas um gramado que acostumou-se historicamente com a delicadeza de refinados sapatos italianos.

Fazenda Guariroba

Campo de golf

Regato artificial que desemboca no rio Atibaia

Capela abandonada
Continuando pela mesma estrada, passamos por uma antiga capela abandonada, de feição assombrosa, e topamos com a Usina Hidrelétrica de Salto Grande, recentemente tombada como patrimônio cultural de Campinas. A casa das turbinas, construída em pedras, mesclam o passado, notável em sua arquitetura, e o presente, visto em seus modernos motores de refrigeração externos. Recebe três imensos tubos de ferro, provenientes da barragem, pelo qual a água do rio Atibaia corre, em declive, rumo às turbinas que geram energia desde a primeira década do século XX. Figura entre as dez primeiras usinas hidrelétricas do país, instalada em uma cidade pioneira em iluminação urbana. Conheci, no ano de 2011, juntamente com Rodrigo Gil e Luiz Paulo Blanes, a primeira do Estado de São Paulo e segunda do Brasil e da América Latina, a Usina do Monjolinho, em São Carlos, mas eu diria que essa é melhor aparentada e preservada, apesar de historicamente menos interessante em nível nacional. A estrada de chão a beiradeia, mas um amontoado de pedras impossibilita que se siga, de moto, por essa via. Alguns ciclistas passaram por nós, ergueram suas bicicletas e continuaram na trilha. Infelizmente não conseguiríamos fazer o mesmo com nossas pesada motos. Thiago, contumaz, tentou subir, arriscando danificar partes vitais do motor, mas estancou, não indo para frente nem para trás. Após muito esforço conseguimos manobrar a bichana entre as pedras e retornar aos portões da usina. Como última lembrança do lugar, registramos um besouro, de carapaça de um vermelho vívido, que subia, pelas gramíneas, em direção às úmidas rochas que atravancaram nosso caminho.

Usina Hidrelétrica de Salto Grande

Casa das turbinas

Besouro-vermelho

Joaquim Egídio: herança cafeeira
Voltar pela mesma estrada não é algo que eu aprecie muito, mas as circunstâncias nos obrigaram a tal. Como um aditivo para o meu inconformismo, a chuva, mesmo que na forma de garoa, deu as caras. Procuramos abrigo em Joaquim Egídio, no átrio da igreja de São Joaquim e São Roque, construída em 1926, na última década do Ciclo do Café. Por mencionar esse período, foi nele que o Bairro do Laranjal, nome com o qual era conhecido à época, começou a ser efetivamente povoado, a partir da demanda da Fazenda Laranjal, tanto por trabalhadores paulistas como por europeus, que se instalaram na região e alavancaram-na. O café, considerado o ouro paulista do século XIX, trouxe desenvolvimento e afetou toda a dinâmica local. Nesse pano de fundo surgiu a iluminação pública, até então uma utopia mesmo nas grandes cidades como a capital Rio de Janeiro. Primeiramente foi produzida a vapor, e posteriormente por usinas como a de Salto Grande. A ferrovia e os bondes, a partir das duas últimas décadas do século XIX, foram concebidas com o intuito de escoar a produção das fazendas, que não era pequena. A herança de toda essa história é um casario antigo e bem preservado, que atualmente alberga restaurantes refinados e que, obviamente, não entraram no nosso roteiro. Enquanto caminhávamos pelas ruas, aguardando o cessar do gotejo dos céus, apreciamos a arquitetura ímpar, difícil de se encontrar nas modernas cidades da RMC. Destacamos um prédio que abriga a subprefeitura de Campinas, onde antigamente funcionava uma alfaiataria. Retornando à igreja, reavemos nossas motos e nos pusemos de volta na rota traçada. A chuva cessara.

Igreja de São Joaquim e São Roque, de 1926

Prédio da subprefeitura, antigamente uma alfaiataria

Casebre de taipa de pilão
Pelo asfalto da SP081, de reconhecido valor paisagístico, nos dirigimos aos píncaros da Serra das Cabras. Testemunhamos um importante trabalho de plantio de mudas nativas nas margens da rodovia, conhecida popularmente pelo nome Campinas-Morungaba, ou Sousas-Morungaba. Um casebre de taipa de pilão, solitário e deteriorado, na margem esquerda, clamava por um registro. Sedes de grandes fazendas se distribuem nos arredores, e nos trechos de subida de serra desaparecem, dando lugar a curvas sinuosas e a uma mata mais densa. Não há acostamentos. Luana, com um sutil tapa em minha perna direita, sinalizou ter visto algo. Imediatamente dei meia volta e retornei alguns metros. Em uma goiabeira, alimentavam-se dos frutos já maduros um bando de saguis-de-tufos-pretos, os mesmos encontrados às margens do rio Mogi Guaçu. Foi difícil fotografá-los. Se movimentam muito rapidamente, caminham sobre os fios de energia elétrica e se escondem entre as folhagens, tornando o simples ato de focar um exercício de paciência. Por fim, conseguimos um único nítido registro desse ser que habita diversos tipos de vegetação, como o cerrado e a mata atlântica, mas que também subsiste, como o onipresente urubu-de-cabeça-preta, em locais desfigurados pelo homem, o mesmo que muitas vezes o aprisiona e o vende ilegalmente, escravizando-o e apresentando-o à solidão, a qual não está habituado por viver em bandos enormes, com mais de dez indivíduos. Contamos, no que vimos, pelo menos sete. Lembrei-me mais uma vez do pescador do Velho Chico. Se me quedasse parado, vendo um rio passar, certamente não me desapontaria cada vez mais com meus semelhantes.

Urubu-de-cabeça-preta, sempre uma presença marcante

Sagui-de-tufos-pretos
  
Pôneis na Serra das Cabras
Em uma bifurcação, o asfalto acabou. Terra para a esquerda, sentido Morungaba; terra para a direita, subindo definitivamente a Serra das Cabras. Optamos pela segunda opção. Como bônus, se tempo nos restasse, desceríamos e encararíamos a primeira. Ascendemos pelo pedregulho e por íngremes ladeiras e rapidamente chegamos ao topo da serra, o chamado Monte Urânia, no qual se encontram as instalações do Observatório Municipal de Campinas, ou Observatório de Capricórnio. Uma imensa arquibancada, aparentemente abandonada, deve servir (ou serviu) como um local de observação a olho nu para a identificação de estrelas e constelações. Obviamente esses mesmos corpos celestiais podem ser vistos pelo telescópio aqui instalado, no ponto mais alto de Campinas, com altitudes beirando os 1100m. Porém, ainda era dia, o céu estava nublado e não poderíamos desfrutar naquele momento de toda a estrutura oferecida pelo observatório. Enviesamo-nos, então, por uma propriedade particular, na qual funciona uma pequena cantina, e mediante um pagamento de R$5,00 cada pudemos andar livremente pelo topo de Campinas, onde formações rochosas peculiares atiçam a imaginação. Pôneis e vacas pastam solenes, como diria Rodrix, mas cabras, que segundo consta serviram de inspiração para a nomenclatura da serra, não deram o ar da graça. Esqueci-me de perguntar ao proprietário, mas talvez nem existam mais ali. O cenário, contudo, do qual o cerrado é mero coadjuvante, existe, e ele palmilharíamos.

Cerrado e formações rochosas no Monte Urânia

Observatório de Capricórnio

Conjunto rochoso
 Um “mata burro” azul, uma trilha, pedras e mais pedras pelo caminho e um odor característico do cerrado sucessivamente nos levaram a um amontoado de rochas seculares lapidadas pelo tempo, pelo vento e pelas intempéries. Dentre elas se destacam duas: a da Águia e a da Agulha. A primeira, um bico aquilino com 6 ou 7 metros de altura, e a segunda, uma torre ainda mais alta, vertical, de quase 10 metros de altura. Em volta delas há ainda outras de silhuetas menos interessantes. Com algum esforço é possível escalar, sem apetrechos de rapel, a Pedra da Águia, mas não a da Agulha. Logo abaixo, descendo pelo mato, há uma outra propriedade particular, cercada, e então volvemos um pouco para adentrarmos uma outra trilha, que nos introduziu em uma mata fechada e depois calhou em uma plataforma natural conhecida como Pedra Mor. A partir dela se obtém uma bela vista da rodovia Dom Pedro, das cidades de Itatiba e Jundiaí e da face norte da Serra do Japi (vimos a sul na última viagem rumo ao Morro do Voturuna, que pode ser acessada aqui). Imediatamente abaixo, um vale preenchido por uma mata atlântica densa esconde ribeirões que nascem ali mesmo, no alto da Serra das Cabras, e descem como afluentes do rio Atibaia, suprindo a demanda de água nas fazendas locais no decorrer de seus breves cursos. Por estarmos sós num local nem tão alto, mas bem acima do nível onde as cidades da região foram construídas, fui insuflado por uma serena paz, a mesma que eu idealizara quando resolvi traçar uma rota essencialmente “verde” em uma cidade notadamente “cinza”, como é o caso de Campinas. Por falar na metrópole, estávamos já na sua divisa com Morungaba, uma vez que a Serra das Cabras naturalmente demarca os limites entre as duas.

Pedra da Agulha e Pedra da Águia

Itatiba, Jundiaí e a Serra do Japi vistas da Pedra Mor

Pedra Mor

Zona rural de Morungaba
Com tempo de sobra e com mais nada a fazer no alto do Monte Urânia, instaurou-se o momento bônus da curta incursão. Não sabíamos bem o que encontrar nas incertas e perigosas estradas barrentas entre Campinas e Morungaba. Pedreira, que mencionei no começo da postagem, no fim das contas foi deixada de lado, e acabamos nos concentrando mais na ponta leste do triângulo. Na bifurcação mencionada há pouco, valendo-nos da nova abordagem, seguimos dessa vez pela esquerda, passando por sedes de fazendas abastadas e pequenas montanhas salpicadas, como corriqueiro na região, por rochas graníticas arredondadas. Logo após o casarão da Fazenda Paineiras e um túnel natural formado pela vegetação alta e de copa curvada, um mar de lírios-do-brejo surgiu diante de nossos olhos, um jardim natural sensorialmente extasiante. Mais à frente, escapando incólumes dos escorregões oportunizados pela lama, uma pequena represa com eucaliptos ao fundo foi também digna de contemplação. Sem querer nos aproximávamos do outro formador do rio Piracicaba, o rio Jaguari. Nos últimos metros, na iminência do fundo de seu vale, uma outra surpresa: imensas torres de comunicação por satélite da empresa Embratel. Por não podermos fotografá-las de perto com alguém servindo como escala, não consegui precisar a altura, mas são tão gigantescas quanto os montes posteriores a elas. Por fim, numa íngreme última arrancada, o Jaguari corria livre em uma parte pedregosa de seu leito. Mais uma vez uma placa alertava à presença do temido carrapato estrela, e mais uma vez ela era ignorada por alguns pescadores.

"Mar" de lírios-do-brejo

Rio Jaguari

Torres da EMBRATEL

Subindo o vale do Jaguari
 Atravessamos o rio Jaguari sobre uma simples ponte e recomeçamos, a partir da outra margem, a subida do vale. A estrada, sempre uma mescla de terra, buracos transversais e pedras, em alguns momentos era ladeada por cercas de arame farpado, e em outros essas cercas simplesmente desapareciam por falta de serventia, já que magnânimas pedras arredondadas faziam o trabalho. Foi em uma dessas que escalamos para obter uma bela panorâmica do vale que acabáramos de deixar. De quebra vimos, ao fundo, as torres da Embratel, agora diminutas em meio à imensidão verde da zona rural de Morungaba, e a própria cidade de Morungaba, cravada entre a serra. Um céu impar, de nuvens rajadas, exibindo seu azul apenas nas entrelinhas, colaborou com o cenário que, para mim, foi o ápice dessa curta incursão pelos arredores da Serra das Cabras. Tenho certeza que meus companheiros sentiram o mesmo, visto que foi neste ermo que mais nos demoramos. Nem mesmo as passagens, na sequência, pelo bairro rural Areia Branca e sua igrejinha de 1925, no território de Amparo, e pelas imediações do Pico da Fortaleza, já em vias de reencontrarmos, depois de muitos quilômetros, o asfalto, sobrepujaram a complexidade do vale do rio Jaguari, rio que nasce nos cumes da Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais, e vem sendo degradado por todo o seu curso até se unir ao Atibaia, “no quintal de minha casa”, dando vida ao rio Piracicaba, que por sua vez engrandece o rio Tietê, que por sua vez alimenta o rio Paraná, e que por sua vez, no Estuário do Prata, entre o Uruguai e a Argentina, encontra-se com o rio Uruguai e, finalmente, é despejado no Oceano Atlântico. É uma cadeia de encontros que o ser humano, com suas imensas barragens e inconsequente degradação, ainda não conseguiu frear.

Vale do rio Jaguari

A vista mais marcante da viagem

Bairro Areia Branca, em Amparo

Morungaba e a Mantiqueira
 Alcançamos o centro de Morungaba pela rodovia Engenheiro Constâncio Cintra, e já nos dávamos por satisfeitos quando avistamos algumas placas turísticas que apontavam para um mirante e um cruzeiro no alto da serra que descêramos há pouco. Eram ainda 16:30h e, portanto, subimos mais uma vez a Serra das Cabras, agora pelo lado morungabense. Reitero que esse conjunto de montanhas faz a divisa natural entre Joaquim Egídio (Campinas) e Morungaba. No Cruzeiro, ao lado da base de uma cruz de três metros de altura, vimos a cidade de Morungaba e, bem longe, um naco da Serra da Mantiqueira, essa tão explorada pelos aventureiros desde o ciclo do ouro, anterior ao do café. Ascendendo ainda mais, no tal do Mirante, Campinas se apresentou em seu melhor ângulo: longínquo. Bem longínquo. Os prédios pareciam se acotovelar em busca de espaço. É uma maquete desordenada, e a sua desorganização social advém ou é propiciada por essa também desorganizada disposição pelo planalto. Mais uma vez me arrisco a citar filósofos autônomos que conheci pelas diversas estradas da vida. “As cidades crescem desordenadas não por si sós, mas pelo simples fato de que cabeça dos homens que as concebem também é desordenada. Não há como extrair um mínimo de sanidade da plena loucura”, uma vez me disse um cidadão uruguaio do Chui. Abstrações à parte, arrostamos mais um trecho de terra e calhamos no mesmo local em que estivéramos no meio do dia, o Observatório Municipal, sobre o Monte Urânia, rodeado por toras de eucalipto recém cortadas.

Campinas vista do alto da Serra das Cabras

Observatório Municipal de Campinas
  
Adeus, Joaquim Egídio
 Hora de regressar. Descemos pela última vez a Serra das Cabras, ganhamos o asfalto e atravessamos Joaquim Egídio, que no princípio da noite começava a se abarrotar de jovens, o que me trouxe à cabeça, como em outras ocasiões, a imagem de Santa Maria e da mocidade que lá perdeu a vida. Rodrigo e eu pernoitamos na cidade, nos fins de dezembro, quando seguíamos em direção ao Chui, e aprendemos a admirar seu povo. Agora, com todos imbuídos na recuperação psicológica pós-tragédia, o admiramos ainda mais. Voltando ao presente, passamos pela antiga estação de trem e por um outro distrito de Campinas, Sousas, antes de acessarmos a rodovia Dom Pedro. Na Anhanguera, deixando Campinas em definitivo, atravessamos a Área Cura de Sumaré e o perímetro urbano de Nova Odessa, observando, ao longe, uma Paulínia que acendia suas primeiras luzes na noite do dia 03 de fevereiro. Na Praia Azul, esse bairro tão esquecido, isolado do resto de Americana, pilotamos pelos últimos minutos dessa pequena incursão de 230km. Mais do que imagens inesquecíveis de ermos que primam pela maestria arquitetônica do grande mestre chamado Tempo, ficou evidente o fortalecimento dos laços fraternais entre os companheiros de aventura. Já há um bom tempo não viajo sozinho, e embora minha alma clame por momentos de solitude, vejo a estação como um grande avanço na concepção de mundo das pessoas que me cercam. Logicamente não sou um bom exemplo para ninguém, mas ver meus convivas economizando o pouco que ganham, como eu, para se imbuir no desbravamento do Brasil é algo que me deixa muito orgulhoso. No fim, quero que deem sentido à vida, e se o sentido é parar e ver um rio passar, que seja! Porém, gostaria muito que fosse diferente, como sair por aí conhecendo a História que já passou, o presente que passa e o futuro que não se espera, mas ao qual se vai de encontro. 
Andejo, o mundo está aí, a sua volta, e tudo o que ele exige, para dele poderes desfrutar, são pés firmes. Embora tentem te vender ideias, procure, instintivamente ou através do relato de outros andejos, por locais em que a maioria gritante, que consome uma viagem como um mero produto e não a vive, desconhece ou considera inapta para receber “gente”. As grandes paisagens estão em locais não acessíveis por highways, freeways ou qualquer outro tipo de rodovia bem pavimentada. Muitas delas exigem coragem, resistência e teimosia. Muitas delas exigem o real VOCÊ, e não aquele sujeito citadino eivado das falsas aparências que uma vida em sociedade demanda.


Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui. 


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E abaixo, um lamento ao bandolim para a Serra das Cabras e suas pitorescas formações rochosas.