Destrinchando caminhos. Escancarando o Brasil. Compondo quimeras e melodias sobre duas rodas.
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012
Zona Rural de Limeira – 05 de fevereiro de 2012
Do alvorecer deste meu desejo insano de mapear o Brasil para cá muita coisa mudou. Angariei novos companheiros de peleja e incubei amores neonatos, além logicamente de solidificar – e em alguns casos fragilizar – as relações com pessoas que já faziam parte de meu cotidiano. Não é fácil obter o respeito de quem não entende sua luta, e muitas vezes me passo por incompreendido. Questionam-me insistentemente, chegando a afirmar que minhas viagens são uma fuga de algo, como se algum ser dismórfico e desenfreado estivesse em meu encalço. Na verdade, tudo o que aprendi com a Filosofia não teria sentido se eu não testasse suas prerrogativas in loco, o que os marxistas mais ortodoxos rotulam como práxis, ou, utilizando o senso comum, um elo entre teoria e prática. Idealizar o ser humano sem conhecê-lo, sem compreender suas produções culturais, sem investigar o ambiente em que subsiste é mera especulação. Immanuel Kant nasceu, viveu e feneceu em uma mesma cidade, nunca deixando os domínios da mesma. Por mais que tenha deixado um legado meritório, acredito que suas teorias tenham pecado por não entender o ser humano globalmente. Ele o entendeu “königsbergamente”, ou regionalmente, se preferirem. Não intento incorrer no mesmo erro de Kant.
Moto & mato: diversão barata
Já há mais de um mês eu não viajava. Infelizmente nem sempre um professor tem recursos financeiros disponíveis para longas viagens. Em minha última grande empreitada, para Foz do Iguaçu, fiz a asfixiante descoberta de que viajar de moto, principalmente pelas rodovias de tráfego rápido, pode ser uma diversão onerosa, diferentemente de tempos mais remotos, quando pedágios eram gratuitos para duas rodas e a gasolina tinha um preço bem mais acessível, permitindo ao aventureiro chegar mais longe mesmo com baixo orçamento. Contudo, alternativas baratas são facilmente encontradas, bastando ao aventureiro apenas mudar o foco de suas andanças. Tenho uma teoria singela, mas eficaz: todas as cidades possuem uma zona rural, e essas zonas vão se tornando maiores à medida que vamos nos distanciando das grandes capitais. Eu poderia – reitero que o dinheiro é escasso – simplesmente me entregar à estática, ao ócio, mas optei mais uma vez pela ação: percorreria a terra vermelha da zona rural de Limeira, município vizinho de Americana. Mais precisamente, buscaria desbravar as cercanias do Bairro de Jaguari, onde uma importante malha aquífera entrecorta resquícios de mata e plantações de laranja e cana-de-açúcar.
Sol e terra vermelha
O domingo, e seus tórridos 32° Celsius, eram convidativos a um roteiro menos desgastante, mas o exagerado esplendor do astro-rei em nenhum momento me dissuadiu de meu intento. Após alguns contatos com antigos companheiros de aventuras e desventuras, vi-me só com minha motocicleta. Ninguém se arriscaria no campo, não com aquele sol causticante sobre os capacetes de resina, conhecidos como “fornos em potencial”. Luana Romero havia dito na noite anterior que me acompanharia, o que me deixou bastante surpreso. Desde que a conheci, viajava sem a sua companhia, por relutância própria e de seus pais. Agora seria diferente. Era o ensejo perfeito para que eu a mostrasse minha forma de ver o mundo. Logicamente eu incorreria no risco de assustá-la, mas ao mesmo tempo poderia incandescer em seu cerne o veio paterno de sua família, pescador e mateiro. Com todos esse pensamentos em meu encéfalo, partimos da Praia Azul, em Americana, visando acessar a Rodovia Anhanguera, sentido interior paulista. Dez quilômetros depois transpassávamos uma ponte sobre o Rio Piracicaba, concebido na confluência dos rios Jaguari e Atibaia a um quilômetro dali. Este grande monstro de água demarca naturalmente a divisa Americana/Limeira.
Luana, a moto e a zona rural de Limeira
O "castelo" de José Rico
Após a ponte, o perrengue se principia. Sem um séquito a acompanhar-nos, vagarosamente adentramos a Estrada da Ajinomoto, que nos direciona a uma empresa de condimentos alimentícios homônima incrustada, juntamente com outras empresas, na zona rural de Limeira. Logo nos primeiros metros desta estrada se nota uma grande edificação, parecida a um castelo, que só não demonstra maior imponência por estar inacabada. É, na verdade, a casa de José Rico, integrante da dupla Milionário & José Rico, sertanejos que fizeram muito sucesso nas décadas de 1980 e 1990. Eu poderia simplesmente ocultar este fato, mas é impossível não passar por este cenário e relembrar a famosa canção “Estrada da Vida”. “Vou correndo e não posso parar” ecoou tonitroantemente em minha cabeça deste ponto em diante, somando-se à companhia de minha motocicleta e de Luana. Passada a paisagem, entramos em uma estrada de terra à direita, abandonando momentaneamente a Estrada da Ajinomoto. Um quilômetro depois de cortar laranjais, chegamos a uma cerca branca e ao fim do percurso em terra. Dali não era possível continuar com a moto. Segundo minhas coordenadas, o Córrego da Cachoeira, importante afluente do Piracicaba, se encontrava ali. A pé, eu e Luana, seguindo por um alameda de eucaliptos e árvores frutíferas, o encontramos.
A ponte e o córrego
Uma ponte de concreto e tijolos à vista, que tardamos a discernir por conta dos galhos e folhagem sobre a mesma, se elevava sobre o córrego supracitado, dando passagem às suas águas carregadas de sedimentos, rasas e pouco velozes. Conheço bem os córregos que subsistem nos aglomerados urbanos. Sei o quanto sofrem com a poluição industrial. Para mim, ver este córrego, marrom mas incrivelmente translúcido e inodoro, apesar da proximidade com duas grandes cidades, passa uma falsa sensação de que há alguma esperança para as águas do Ribeirão Quilombo, por exemplo. Foi devaneando que escorreguei controladamente por uma pequena ravina, entre bambus e teias de aranha, visando acessar a margem esquerda do córrego. Com alguma dificuldade, e tendo as mãos e antebraços cortados em algumas ocasiões, cheguei à arenosa orla deste não muito portentoso afluente do poderoso Piracicaba. Escorregadio, o local me ofereceu bons ângulos para fotografar a ponte camuflada. Os cortes começavam a arder, mas a paz das águas juntamente com o canto dos pássaros, notadamente anus-pretos, agiram como amenizadores da dor. Com certeza este é um lugar digno de uma posterior visitação. Imaginei-me seguindo o curso do córrego, palmilhando seu fundo com água pelos joelhos, chegando posteriormente ao Piracicaba. No entanto, Luana me aguardava sobre a ponte. Retornei a ela e à motocicleta para prosseguirmos viagem.
Córrego da Cachoeira
O Rio Piracicaba
Subimos na moto e, voltando para a Estrada da Ajinomoto, passamos por um laranjal aberto e que aparentemente se estendia da estrada para bem próximo das margens do rio Piracicaba. Entrecortamos o laranjal até um ponto em que não era mais possível seguir sobre duas rodas. Deixei-as numa clareira, e em seguida nos embrenhamos em capim alto, chegando posteriormente a uma mata mais cerrada, a mata ciliar do rio. Por um canal de escoamento de água aparentemente desativado, desci uma outra ravina – novamente deixando Luana para trás – e, vencendo uma parte desbarrancada, alcancei a margem do Piracicaba. Muito volume d'água marrom e, ao contrário do córrego afluente, cheiro pouco agradável, mas não ao ponto de ser nauseante. Do lado em que eu estava, território limeirense. Do outro lado, território americanense e uma estrutura para captação da água do rio, que talvez esteja inutilizada. Infortunadamente me quedei ilhado, não podendo avançar rio acima ou rio abaixo. A mata fechada e a profundidade das águas me deixaram hirto. Tive que me contentar em fotografar de ângulos pouco apreciativos e em visualizar um bando de macacos que cruzou rapidamente pela copa das árvores próximas. Estes não fui capaz de registrar. Vencendo novamente o desbarrancado, subi em direção à clareira e a Luana. Incontinenti debandamos.
Usina Hidrelétrica de Tatu
A Estrada da Ajinomoto, “espinha dorsal asfaltada” da qual se ramificam as “costelas de terra”, foi novamente acessada para que nos aprofundássemos ainda mais no desbravamento desta parte da zona rural de Limeira. Passamos por um comércio local e nos informamos a respeito de uma usina hidrelétrica próxima ao Bairro de Jaguari. Com direção às empresas, mas sem alcançá-las, deixamos o asfalto e adentramos uma estrada de terra em meio a um canavial. Trespassamos uma torre de alta tensão, sob a qual o gado branco pastava – imagino a temperatura das gramíneas – heroicamente sob a intensa luz do sol. Cortamos as poucas casas e a capela do Bairro de Jaguari. O movimento de pessoas era intenso apenas nos arredores de um campo de futebol. Ligeiramente deixamos o vilarejo e pendemos à direita, seguindo as placas com indicações a uma comunidade cristã. Não tardamos a encontrá-la, deixando-a para trás e localizando a Usina Hidrelétrica de Tatu poucos metros ladeira abaixo. Os portões da usina, cerrados, não puderam ser transpostos. Não encontrei nenhum trabalhador ou zelador próximo aos portões, para talvez tentar uma visita interna. Tudo o que pudemos fazer foi fotografar, através da cerca, a casa de máquinas e uma cachoeira de pedras, com talvez 15 metros de queda, no curso do vertedouro da barragem.
Cachoeira da Usina de Tatu
Ribeirão do Pinhal
Não tenho informações pormenorizadas sobre a Hidrelétrica de Tatu. Tudo que sei é que seu reservatório, a Represa de Tatu, foi preenchido por águas canalizadas do Ribeirão do Pinhal, um importante afluente do Rio Jaguari. A balneabilidade da represa é boa, mas o acesso a mesma é complicado, o que a torna pouco conhecida dos moradores de Limeira, Americana e Cosmópolis, cidades que dividem praticamente a mesma zona rural. Atravessamos uma ponte rústica de madeira, ao melhor estilo Transpantaneira, para registrar a translúcida – apesar de marrom – água do Ribeirão Pinhal, comprovando a limpidez da água. Sobre a elevação visualizamos redemoinhos em alguns pontos, o que demonstra uma grande profundidade, inviabilizando aqui um banho para quem não domina bem a técnica da flutuação, o que é o meu caso. Entrar neste ponto do curso da água, portanto, pode ser perigoso. Decidido a não banhar-me, tive por objetivo apenas fotografar a minha paixão da era pós-Pantanal: as pontes de madeira. Luana se divertia ao me ver vencendo as pedras e barrancos para alcançar a base desta simples obra de engenharia de pouco mais de 20 metros de comprimento.
Estação Elevatória do Jaguari
Passada a ponte, seguimos pela estrada de terra e entramos à direita numa bifurcação, chegando à Estação Elevatória do Jaguari. Por ser de acesso restrito, não pudemos adentrar o local para entender o seu funcionamento. Demos meia volta, maldizendo as circunstâncias, e regressamos à bifurcação mencionada, seguindo agora pelo outro viés. Nele permanecemos por alguns metros, deparando-nos com uma maciça cerca branca que impedia nosso avanço. Deste ponto em diante, até Cosmópolis, tudo pertence a Usina Ester. Não somos autorizados a pilotar em suas estradas e canaviais. Encontrei uma trilha que atravessa a cerca. Poderia facilmente tê-la transposto, mas preferi não cometer tal delito. Elenquei como objetivo principal, depois de topar com essa barreira física, pelo menos molhar minhas mãos na Represa de Tatu. Já havia visto a usina. Agora carecia de ver seu reservatório. Para tal, regressamos à ponte e entramos à direita pouco antes de alcançá-la. Uma nova ponte de madeira surgia poucos metros depois. Sob ela, a água que escoa da barragem da usina. Alguns homens se banhavam. Com eles coletamos algumas informações para localizar a represa.
Abra as porteiras, Usina Ester!
Represa de Tatu
Como bom iconoclasta, resolvi contrariar as coordenadas dos banhistas. Eu detinha uma planilha que me instava a chegar à margem da represa pelo flanco sul. Tentamos acessá-la por esta via, cortando canaviais e laranjais, mas uma cerca obstruiu-nos em uma bifurcação da estrada. Teríamos que invadir propriedades privadas. Aquela sensatez que me assola às vezes foi, desta feita, ponderada. Volvemos à ponte dos banhistas e subimos a serra rumo ao norte da represa. Quando a vegetação densa raleou e visualizamos a represa do lado esquerdo, do alto, entramos numa estrada em queda livre até praticamente a beira da água. Sem meios de prosseguirmos com a moto, terminamos o trajeto a pé, por uma picada em mata fechada. Desta vez tivemos sorte. Pudemos fotografar e molhar nossos rostos nas águas mansas da bela Represa de Tatu, e de quebra conhecer um casal de pescadores que, com vocabulário tão simples, não foram capazes de nos dar informações mais detalhadas sobre outros atrativos da região. Permanecemos por um tempo ali, já que Luana se apetece por locais tranquilos como este, talvez por “culpa” de um gene de seu pai pescador.
Americana
O subir e o apear constantes na motocicleta já se aproximavam de seu momento derradeiro. Atingido o escopo de conhecer a Represa de Tatu, principiamos o regresso para Americana. Subindo pela íngreme estrada de terra, que culminaria no ponto mais alto da pequena incursão, deparamo-nos com uma vista magnífica da cidade de Americana. Os grandes prédios do centro da cidade, as torres da antiga Usina São José, a Represa de Salto Grande: tudo era possível visualizar do ponto em que nos situávamos. Até mesmo um bom pedaço de Paulínia nos saltava aos olhos. Devo admitir que não sou um grande admirador de cidades e grandes edificações, mas um bom mirante em meio ao nada, o que é o caso de locais como este, dão-me uma dimensão diferente, instando-me a tentar enxergar o garbo que meu preconceito renega. Inebriados pela paisagem, descemos a pequena serra pela judiada estrada, daquelas que massageiam todos os órgãos internos do corpo humano, segundo Luana, e retornamos à Hidrelétrica de Tatu, de onde seguiríamos para casa. Para a nossa surpresa, ao chegar ao escoadouro da barragem, os poucos banhistas haviam debandado. Aproveitamos, então, para descer uma leve ravina ao lado da ponte de madeira com o intuito de tatear a cristalina e gélida água do manso regato, proveniente da barragem e da cachoeira citada anteriormente. É um ótimo local para um banho, mas há de se tomar cuidado com a areia barrenta de suas margens. Em alguns momentos afundei meus pés. Torcê-los é esperado. Um certo cuidado é uma douta abordagem.
A água cristalina do vertedouro da Usina de Tatu
Capela do Bairro de Jaguari
Subindo de volta à moto, discernimos, por entre galhos, a cachoeira e a barragem da usina. É realmente uma pena não podermos conhecê-las, fotografá-las. Maldizendo essa impossibilidade, regressamos ao Bairro de Jaguari para uma última parada antes da Estrada da Ajinomoto. Apeamos defronte a Capela de Nossa Senhora de Aparecida, que segundo consta foi fundada em 29 de abril de 1945. Deve atender os poucos moradores de suas cercanias, visto ser de modestas dimensões e pouco suntuosa. Enquanto fotografávamos o templo cristão, um sabiá-barranco saltitava pelos galhos de uma árvore à direita do portão de entrada. Foi a última imagem de um domingo sufocante pelo calor, mas confortante pelo esplendor. Em apenas 60km rodados, mais do que fotografias e belos visuais, fizemos um levantamento da malha aquífera deste esquecido recôndito de Limeira. Que os cidadãos americanenses e limeirenses tenham uma maior gana de conhecimento, buscando compreender o seu solo, seus córregos, represas e rios, tornando-se então realmente um ser que se possa dizer conhecedor de suas raízes. Foi o que internalizei, enquanto concluíamos o curto trajeto de volta para casa. A paz, que em meio ao mato e aos mansos regatos gozei, esvanecia-se à medida em que os pneus de minha moto se atritavam freneticamente com a Anhanguera. Lentamente volvíamos à realidade urbana que tanto combato. Sofregamente eu inspirava, mas os ares já eram outros. Eu voltava a me alienar.
Diga-me para onde vais, e direi quem tu és. Ficais parado, e definhes, pois a beleza da estática é efêmera. O movimento, incessante e desafiador, não. O sol nasce para todos, mas a maneira como incide em cada campo, cidade ou rio é peculiar. Oponho-me aos preguiçosos porque deles não se extrai experiência válida alguma. Apoio-me nos rebeldes, esses que modificam o curso da história porque agem no presente. Sou um rebelde a minha maneira, e peço desculpas se tento influenciar aqueles que convivem comigo. Não o faço por mal. Faço porque a vida é curta, e desistir da mesma por mesquinharias, como o álcool e a pusilanimidade, é uma falta de respeito à nossa própria anatomia, engendrada unicamente para o deslocamento. Perdoem-me os cautos, mas que componham panegíricos a nós, e somente a nós, os incautos.
Nostalgia!
ResponderExcluirbuen texto. Hermosas imágenes.Me gusto'. un gusto seguirte amigo. Te envío un cordial saludo deseándote un buen día.
ResponderExcluirConsegui ver o que eu queria o castelo do ze rico
ResponderExcluirSe pretende viajar, confira o link:
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