sábado, 3 de setembro de 2011

Pedra Azul, Vitória e Vila Velha – de 26 a 30 de agosto de 2011


Em uma das escolas que leciono, noto amiúde o ato de auto isolamento de um dos funcionários responsáveis pela faxina. Ele está sempre presente, dialogando ridentemente conosco durante o almoço. Porém, logo após a refeição, o homem de meia-idade se esvai. Busca refúgio nas imediações da caixa d'água da unidade de ensino, onde vagarosamente saboreia uma fruta, numa rotina que apelidei de “a sobremesa do eremita”. Muitas vezes a curiosidade nos encoraja a desmistificar, a perguntar, a querelar. No que se refere à ritualística deste nobre homem, garanto, minha curiosidade é obstruída pela compreensão dos fatos. Nunca quis realmente saber os motivos que levam este ser humano a “fechar-se em seu casulo” por alguns minutos. Simplesmente procuro entendê-lo passivamente, pois, no imo, considero-me semelhante a ele. A diferença é que busco a soledade em locais diversos, já que a mesma paisagem é capaz de me oferecer alento apenas uma única vez.
Ponte Rio-Niterói
A ideia de viajar para o Espírito Santo, estado que até então não conhecera, eclodiu de desencontros no planejamento de uma incursão para Foz do Iguaçu, no Paraná. De supetão, uma viagem ao sul do Brasil, para dois, metamorfoseou-se em uma viagem ao nordeste da região sudeste, para um. Mais uma vez eu e minha motocicleta, numa teimosa e resistente simbiose, nos embrenhamos por caminhos há muito existentes, mas que até então permaneciam desconhecidos às nossas vistas. Assim disse, um dia, o camarada Levi.
Casimiro de Abreu
Parti de Sumaré, após o já tradicional café pré-viagem com Mariângela, às 12:30h do dia 26 de agosto. Decidido a ganhar terreno para aproximar-me o máximo possível do Espírito Santo, logicamente com vistas a tornar a peleja do sábado menos desgastante, segui pelas rodovias Anhanguera, Dom Pedro e Dutra, alcançando o município de Piraí/RJ às 17:40h. Neste ponto principiava-se a descida da Serra das Araras. Entretanto, a caída da noite somada a minha vociferante prudência me obrigaram a pernoitar às margens da BR-116 em um reduto de toxicômanos, meretrizes e caminhoneiros boêmios. "Olhando de perto, a vida é bem feia". Certo, André Vianco?

Primeira imagem do Espírito Santo, às margens do rio Itabapoana

Cariacica/ES
O sábado, dia 27, amanheceu chuvoso, mórbido. Desci a serra e, para o meu desalento, ao pé da mesma o cinza permaneceria. A chuva, contudo, cessara. Numa boa toada cruzei por Nova Iguaçu e Rio de Janeiro. Na capital fluminense trespassei a ponte Rio-Niterói – e seus pouco mais de 13km – observando a Baía de Guanabara e seus cargueiros. Do outro lado, em Niterói, localizei rapidamente a BR-101, permanecendo na mesma até o município de Cariacica/ES, passando, dentre outras cidades, por Casimiro de Abreu/RJ, Campos dos Goytacazes/RJ e Iconha/ES, e também, logicamente, pela divisa  do Rio de Janeiro com o Espírito Santo, demarcada naturalmente pelo rio Itabapoana. Cariacica foi meu “quartel general” por duas noites. Próxima à Vitória e à Domingos Martins, logística e geograficamente me foi prestimosa.
Rota do Lagarto
No dia 28 rumei para Domingos Martins/ES, pacata cidade da serra capixaba colonizada por alemães, pomeranos e italianos. O aspecto europeu de seu portal rendeu algumas fotos, mas o meu objetivo, na verdade, era conhecer Pedra Azul, distrito que dista cerca de 30km da sede da cidade via BR-262 (sentido Belo Horizonte). Prestamente alcancei o local almejado, adentrando, após deixar a 262, a Rota do Lagarto, estrada de paralelepípedos que direciona o viajante à cancela de entrada do PEPAZ (Parque Estadual da Pedra Azul). A vista de uma das curvas da Rota impressiona. A Pedra Azul (que empresta o nome ao distrito), e também a Pedra do Lagarto “escorada” a ela, dão laivos de sua beleza mesmo a muitos metros de distância. A imponência destas obras da natureza me afetam da mesma forma que os grandes ditadores um dia sonharam em afetar os seus subordinados.

A Pedra Azul vista a partir de uma das curvas da Rota do Lagarto

A Pedra Azul
Dentro do parque, às 9 da manhã, eu e um “préstito” de Porto Real/RJ partimos pela Trilha do Cedro Sentado acompanhados pelo guia “Manda-Chuva”. O delgado homem, munido de seus conhecimentos sobre a flora e a fauna locais e respaldado por 26 anos de trabalho dedicados ao parque, transformou o caminho ao “pé” da Pedra Azul em momentos de pura Educação Ambiental. Mostrou-nos inclusive fezes de Jacu crivadas de grãos de café, alimento primário da ave. Esses grãos semidigeridos são extraídos do excremento e, a posteriori, vendidos por cerca de R$300,00 o quilograma. Bizarrices à parte, alcançamos a base da Pedra Azul e, para o nosso deleite, o tom verde era mais evidente do que o azul.
Pedra do Lagarto
A Pedra Azul – e aqui parafraseio “Manda-Chuva” – está inserida no PEPAZ, como já mencionado, parque com apenas 5% de seus 1240 hectares abertos à visitação. O ponto culminante se encontra a 1822 metros acima do nível do mar. Seus 600m de altura – e também a Pedra do Lagarto – são oriundos da solidificação do magma expelido de um vulcão há milhões de anos. É possível identificar inúmeras crateras próximas ao topo, algumas se prolongando por cerca de 8 metros pedra adentro, formando verdadeiras cavernas. Sua composição é basicamente granito e gnaisse revestidos por líquens. Em razão disso é bastante suscetível aos raios solares. Estes, no decorrer do dia, incidem em variados ângulos sobre a superfície da pedra, que por sua vez responde refletindo variadas cores. É azul na maior parte do tempo, mas também é comum visualizar tons de verde e, segundo o guia (não pude verificar pessoalmente), tons de amarelo.

Cachoeira do Zeca

Cachoeira da Matilde
Cinco meses de estiagem castigam a região da Pedra Azul. Das 23 nascentes de rios dentro dos domínios do parque, apenas 3 subsistem. Piscinas naturais, que em outros tempos foram uma grande atração, hoje não passam de poças d'água barrenta. Sem mais o que conhecer, então, decidi retornar à 262 e “descer” para Alfredo Chaves, município que abriga a Cachoeira da Matilde e sua volumosa queda livre de 63 metros. No caminho conheci uma cachoeira menor, a do Zeca, de proporções idênticas às encontradas em São Thomé das Letras/MG, e a Estação Ferroviária de Mathilde. No retorno à Cariacica, próximo ao findar do dia, adentrei ainda uma curta estrada de terra, ramificação da cidade de Domingos Martins, que “desemboca” na popular Cascata do Galo.
Vitória vista do convento
No dia 29, após algumas conversas com as recentes amizades de Cariacica, determinei-me a desbravar o litoral capixaba. De Vitória à Marataízes, no extremo sul do estado, passando por Guarapari, Anchieta e Piuma, tive como única companhia a Rodovia do Sol (ES-60), responsável pela unificação rodoviária das cidades praianas do estado. Fotografei a parte moderna da capital a partir da Ilha do Frade, seguindo posteriormente à Vila Velha pela Terceira Ponte. Subindo sofregamente – e a pé – a ladeira da penitência e seus íngremes 457 metros, que dão acesso ao Convento Nossa Senhora da Penha, tive uma visão panorâmica da Grande Vitória, além de presenciar o que a fé religiosa é capaz de aflorar nos devotos. Vale ressaltar que o convento foi edificado em 1558 no topo do Morro do Moreno, hoje importante reserva de mata atlântica.

Convento Nossa Senhora da Penha

Ponta da Fruta
Algumas praias me chamaram a atenção no decorrer da bela Rodovia do Sol. A de Guanabara, em Anchieta, foi uma delas. Essa praia, que conta com uma base do TAMAR, é área de desova de tartarugas da espécie cabeçuda. Nela não há quiosques, vendedores ou quaisquer apetrechos comuns às praias populares. É sobretudo um refúgio animal e vegetal, já que a restinga do local é relativamente bem preservada. Para o meu azar não consegui fotografar animal algum ou mesmo conversar com a equipe do TAMAR, uma vez que as portas da sede por algum motivo se encontravam cerradas. A Ponta da Fruta, ainda em Vila Velha, é outra praia com um apelo visual muito grande. A forma de suas orlas lembram a logomarca de uma famosa rede de restaurantes fast-food de origem estadunidense.
Praia de Guanabara
Ao chegar à Marataízes, cidade próxima do estado do Rio de Janeiro, iniciei o árduo ato do regresso. Cruzei todo o Espírito Santo, de leste a oeste, até o município de Ribeirão das Dores, na divisa com Minas Gerais. As estradas entre o Rio Preto – divisa natural entre Espírito Santo e Minas Gerais – e Cachoeiro do Itapemirim (cidade natal do "rei" Roberto Carlos) foram as mais marcantes de todos os meus anos motociclísticos. Curvas e mais curvas serpenteiam em meio à Serra do Caparaó, palco de guerrilhas na época da ditadura militar, entorpecendo meus olhos com a vista da segunda maior cota de altitudes do território brasileiro com média de 997 metros, perdendo apenas para a Serra do Imeri, na divisa do Brasil com a Venezuela. 

Um último olhar à serra do mar capixaba

O regresso
A primeira cidade de Minas Gerais por esta via, Espera Feliz, foi meu último local de pernoite. Nela pude comer decentemente após quatro dias vivendo de petiscos em postos de combustível. É engraçado, para não dizer estranho, como nos debilitamos fisicamente quando mostramos propensão à busca de novos “elixires da alma”. Parece que ganhamos, por um lado, mas perdemos por outro. Se o gosto da derrota é parecido com o que sinto nestas condições, que eu sempre saia derrotado. Parafraseando um outro camarada, este saudoso, cada cicatriz é uma vitória.
Espera Feliz/MG
O dia 30, véspera de meu aniversário, foi dedicado inteiramente às estradas de Minas Gerais. Parti de Espera Feliz às 7 da manhã. Americana, meu destino, foi alcançada às 19h. Nenhuma foto; apenas o vento e as paisagens serranas. Passei desatenciosamente por Carangola, Fervedouro, Miradouro, Muriaé, Laranjal, Leopoldina, Maripá de Minas, Bicas, Juiz de Fora, Lima Duarte, Caxambu, São Lourenço, Carmo de Minas, Pedralva e Pouso Alegre. A Fernão Dias e a Dom Pedro foram, então, um caminho natural a seguir até minha cidade natal. Foram, ao todo, 2700km rodados pelos quatro estados da região sudeste e boas imagens registradas pela minha câmera. Devo admitir que me surpreendi com a estrutura e com o povo do Espírito Santo. Moraria em qualquer uma das cidades em que estive. Mais do que fotografias amadoras, trouxe comigo, lapidadas em meu âmago, ternas impressões. 
Estar sozinho não é um escape. Em um mundo no qual perder a fé nos seres humanos é cada vez mais natural, isolar-se ocasionalmente pode ser uma forma de manter a sanidade e de angariar novas esperanças de uma convivência mais solidária com nossos semelhantes. Estar sozinho é um ensejo de sentir o amparo de pessoas que veementemente admiramos, que respeitam nossos momentos de isolamento; pessoas que estão conosco, presentes, mesmo que estejamos distantes. Estiveste certa o tempo todo, Caju: a solidão é física. Tive a noção exata do que me disseste, curiosamente, contemplando a paisagem na Ponta da Fruta. Carrego, ademais, essa força interior, esse ímpeto em ora ou outra deixar tudo para trás. Antagonicamente, para o meu bem e para o bem de meus próximos, tenho a obstinação de sempre volver e disseminar as boas novas. Deixe-se inspirar, monami.
 

Mais fotos aqui.  

E abaixo, um blues para o Espírito Santo, em especial para a Pedra Azul e para esta curta jornada.

5 comentários:

  1. Lindos lugares, lindas fotos, lindo relato...

    Ás vezes a gente precisa se isolar para compreender o quão forte nosso espírito é, e nessas suas viagens, descobrindo novos lugares, o quão perfeito o mundo é, e que no nosso dia-a-dia, deixamos passar, a alegria na beleza das pequenas coisas, de uma flor, do sol, do vento, da natureza, e das pessoas, por mais diferentes que sejam...

    Suas viagens são vida, que você compartilha conosco...

    E repito: a solidão é física, pois o pensamento de pessoas que te querem bem, estarão sempre contigo. Que se lembre sempre disso...


    Um beijo, caju.

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  2. Lindo lindo e lindo, pena não estar com vc, mas com suas palavras me sinto em algum lugar distante, pena não sentir a cachoeira principalmente a do Zeca, que acho que ficaria lá por algumas horas, mas para vc dedico meu primeiro Podium, um beijo no coração e lembra que a Amizade não tem cara, nem idade, não conhece distâncias nem ausências. A Amizade não se mede, sente-se, Não precisa de palavras bonitas, mas sim de ações. A Amizade não se diz, dá-se, sem nada esperar, sem nada pedir. A Amizade nasce, cresce, muitas vezes de um nada, De qualquer coisa, como a minha por vc.

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  3. Marcão.... Parabéns pela riqueza de detalhes no seu relato.

    Abraço

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  4. e ae Marcão é como eu smpre digo "desbravar o existente desconhecidos de nossas vistas"
    essas sus viagens fazem a gente ir com você mas na garupa de nossas imaginações !!!! até a próxima carona ...uuuhuuu

    ABRAÇÃO

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  5. Amei a história da "sobremesa do eremita"...ás vezes é bom tirar um tempinho do nosso dia para estar á sós, para refletir, ou até quem sabe fazer uma oração...procuro sempre fazer isso...dessa forma sinto paz em meio ao caos, a confusão do dia a dia.

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