domingo, 27 de novembro de 2011

Piracaia e Joanópolis – 20 de novembro de 2011


Para algum lugar próximo vou quando para longe o pensamento voeja. O ciclo incessante de internalizações não me apraz, e o tentar dele me desvencilhar não me parece um jogo muito saudável, ou que possa ser suportado por estações a fio. Ao invés de intentar extrair de meu imo os pensamentos que não me são agradáveis, busco iluminar as vias de acesso para outros que condizem com o atual momento de meu espírito, viajando. Estou submerso em uma onda proveniente de annwn, das praias de Atlântida ou de qualquer outro local igualmente incompreendido, e esse contato direto com a água me é benéfico. Os entes que de perto observam este bailar não me proveem uma canoa, e no fundo, como eu, acreditam que necessito passar por tudo isso, solitário. Faz parte do meu treinamento de desapego às coisas materiais e à perfunctória palavra daqueles seres humanos que insistem em querer sustentar o que seus músculos, tendões e nervos não são capazes.
Companheiros de viagem
Passados cinco dias após o regresso de Ilha Bela, recebi um chamado – praticamente uma convocação – de Rodrigo Costa Gil, companheiro de outras incursões, para uma curta viagem a Joanópolis, extremo norte do Estado de São Paulo, na divisa com Minas Gerais. Havia mencionado esta cidade em várias de nossas querelas sobre lugares passíveis de visitação, e então era chegada a hora de para ela incursionarmos. Vencendo alguns empecilhos, como a falta de capital e de saúde, consegui recrutar Luiz Paulo Blanes e Thiago Lucas Santos, este último recém adepto da quadra filosófica “motociclismo, aventura, blues e utopia” que venho disseminando entre meus conhecidos há alguns meses. Agindo diligentemente, pusemos na estrada quatro almas, oito pneus e muitas ganas de conhecer um local que para mim não era estranho. Contudo, em momentos como este me recordo das palavras de um sábio que infelizmente os caminhos errantes da existência apartaram do rol de pessoas que eu gostaria que estivessem por perto. “O lugar pode ser o mesmo. O momento, contudo, é novo”.
Portal de Piracaia
Eu, Thiago Lucas e Luiz Paulo partimos de Americana com o sol ainda ensaiando sua diária aparição. Adentramos a Via Anhanguera, que dista apenas alguns metros de minha gleba, e por ela seguimos até a Rodovia Dom Pedro, na qual nos reunimos a Rodrigo, que pacientemente nos aguardava nas imediações de Campinas. Com a trupe completa, dirigimo-nos sem demora a Atibaia, de onde acessaríamos uma rodovia de mão única que nos levaria diretamente ao coração de Joanópolis. Entretanto, o plano não se desenrolou como o idealizávamos: para alcançarmos Joanópolis teríamos que atravessar Piracaia, uma cidade a qual até então não nos atentáramos. Enquanto fotografávamos o belo portal da cidadela, a partir de um jardim floridamente adornado, Rodrigo obteve um folheto que relacionava, com um minucioso mapa, todos os pontos turísticos da cidade. Não sou um grande admirador deste tipo de mídia, mas me interessei pelo Santo Cruzeiro, na parte urbana, e por uma cachoeira, distante cerca de 22km da cidade, na parte rural. Por tabela, conheceríamos uma cidade a mais.
Escadaria para o Santo Cruzeiro
O Santo Cruzeiro está disposto no caminho que naturalmente trilharíamos em direção a Joanópolis. Sem delongas, então, o localizamos. O local nos chamou a atenção por se situar sobre um morro, a 1200m de altitude, o que nos daria uma vista privilegiada de Piracaia, quiçá da região. Porém, não contávamos ter que subir a pé 590 estreitos degraus para alcançar o cume. O topo da escadaria, visto do primeiro degrau, era impossível de ser discernido, pois a luz do sol o afrontava ferozmente, enchapelando-o com um halo de luz ofuscante. A boa notícia é que há 8 paradas para descanso. Como bons sedentários, utilizamos cada uma delas. Do último lance já era possível visualizar um enorme crucifixo amarelo de 14 metros de altura. Dizem ser o maior do mundo. Enquanto subia cheguei a balbuciar algo do tipo “não sou católico e, mesmo do alto do meu ateísmo, tenho que passar por este martírio”? A resposta veio serena, por parte de Luiz Paulo, o poeta boêmio, que despretensiosamente degustava um cigarro de palha: “Tem. É a sua sina. E agora também a minha”.

O maior crucifixo do mundo

O Santo Cruzeiro
A vista de cima do morro não é tão magnífica quanto eu imaginava. Para quem gosta de observar edificações e a dinâmica de uma cidade habitada por 26000 cidadãos, é uma boa pedida. Dei preferência à apreciação do bem cuidado jardim, das hortênsias que adornavam a escadaria e da arquitetura do crucifixo em si, bem como a do coreto e a de uma casa que deve servir de almoxarifado ou algo parecido. Ao fundo notei uma estrada, e logo depois descobri que poderíamos ter chegado ao topo por ela, sobre nossas motocicletas, o que seria bem menos desgastante, mas nem um pouco emocionante. Dois cães nos fizeram companhia, pelo menos enquanto conseguiram se manter sobre as quatro patas, visto que o sono lhes era implacável. Foi bom ter fotografado cenários com o azul dos céus ao fundo, o que não acontecera na viagem anterior, na qual o cinza foi a tônica. Após o descanso da subida, descemos pela mesma escadaria. A jornada começaria a ficar mais natural deste ponto em diante. Mal sabíamos disso.
O princípio da trilha a pé
Com o mapa turístico em mãos, e também nos baseando em algumas informações de transeuntes, adentramos a zona rural de Piracaia com sentido ao Bairro do Pião, onde pretendíamos visitar uma cachoeira homônima. Por 22km serpenteamos entre a Serra da Mantiqueira, passando inclusive pela Represa de Jacareí e por sua barragem. O perigo destas áreas é evidente em cada curva, já que não se pode esperar que o gado permaneça sempre nas pastagens que fazem a vez de acostamento. Demoramos certo tempo para vencer os quilômetros citados, dada a complexidade do traçado da vicinal. Por fim alcançamos o Bairro do Pião, pacato como todo distrito distante do cerne de uma cidade. Nele, placas rústicas feitas à mão nos indicaram o caminho para a cachoeira, que incorreu ser por estrada de terra. Em uma das bifurcações nos perdemos, mas prontamente um morador de um sítio local, também sobre uma motocicleta, nos indicou o viés correto. Entramos por ele e, quase no fim da estrada, um tronco de árvore atravessado na trilha impossibilitou nosso avanço. Deixamos nossas motocicletas e findamos o percurso a pé.
Cachoeira do Pião
A trilha margeava um córrego de águas barrentas. A mata foi se fechando, mas não em demasia. Passamos por algumas pedras limbosas e, na primeira clareira, avistamos a Cachoeira do Pião. Uma queda simplória, marrom como o córrego, de talvez 4 metros, mas com uma força considerável. É um daqueles lugares que você não enxerga a beleza em um primeiro momento; num segundo, talvez. Eu a enxerguei num quarto momento, quando armei minha câmera sobre o tripé e o dispus em meio à corredeira. Tentei buscar outros ângulos para fotografá-la, mas infelizmente a disposição das pedras e da mata adjacente inviabilizaram tal tentativa. Não muito contente com o resultado, aproveitei para posicionar-me em um ponto próximo à queda para estudar o mapa, visto que não poderíamos nos demorar por ali. Minha intuição, que poderia ser embasada por uma bússola que jazia quebrada na mochila de Luiz Paulo, bramia que a continuação da estrada de terra nos levaria diretamente a Joanópolis. Aventei a ideia aos meus camaradas, mas os mesmos se mostraram relutantes. No fim das contas, a relutância resultou coerente. Quando retornamos ao bairro para levantar maiores informações sobre a estrada, relataram-nos que a mesma se encontrava em precárias condições. Aclives com pedras soltas, em meio a Serra da Mantiqueira, dificultariam o trajeto, o que não me desanimou. Contudo, estávamos em quatro. Democraticamente foi decidido que seguíssemos via asfalto.

Cachoeira do Pião vista do curso d'água

Joanópolis
Regressamos ao perímetro urbano de Piracaia, após algumas fotografias da represa com a serra ao fundo e os guizos de alerta de uma cascavel, e acessamos a rodovia que nos direcionaria a Joanópolis. No itinerário margeamos a Represa de Atibainha. Cerca de vinte quilômetros depois atracávamos ao portal de Joanópolis. Utilizando a mesma abordagem de anteriormente, empunhamos um mapa turístico da cidade. O que me trouxe a Joanópolis, desde o princípio, foi a Cachoeira dos Pretos, a maior do Estado de São Paulo, e neste mapa ela era mostrada em destaque. Prestamente deixamos o portal e nos dirigimos a Estrada da Cachoeira dos Pretos. No caminho, o comércio ferrenho de cachaça e queijos, muitos aclives e declives agressivos. Dezoito quilômetros foram vencidos com muita demora, mas o atrativo foi alcançado.
Cachoeira dos Pretos
A Cachoeira dos Pretos tem uma portaria parecida com a de um shopping center: primeiro ponto negativo. Cobraram-nos uma taxa de exorbitante: segundo ponto negativo. Uma rede de restaurantes e lojas de bugigangas para turistas: terceiro ponto negativo. Sou contra tudo isso? Sim. Uma cachoeira é um lugar a se preservar, e o fomento do comércio predatório nos arredores – e eu digo praticamente dentro – dessa maravilha da natureza não caminha neste sentido. Andando ao encontro da queda de 154 metros, testemunhei o desrespeito às águas deste que deveria ser um santuário ecológico, e não um local para churrascadas. O curso de uma corredeira chegou a ser desviado com o intuito de criar uma piscina para banho com as próprias águas da cachoeira: quarto ponto negativo. Já que estou citando pontos negativos, egoisticamente citarei o quinto: não consegui uma boa foto devido ao grande número de pessoas que se revesavam nas pedras próximas ao local da magnificente queda. Ao tentarmos atravessar uma corredeira para talvez obter um melhor visual, o tripé de minha câmera de desgarrou e foi levado pela correnteza. Mesmo com os esforços de Luiz Paulo, nada pôde ser feito para recuperá-lo.
Cachoeira dos Pretos vista da estrada
A Cachoeira dos Pretos, como já frisado, tem 154 metros de queda. Não é daquelas que despencam em queda livre, como que mergulhando em um abismo. Pelo contrário, desce com grande vigor pelas encostas pedregosas da Serra da Mantiqueira. A família Preto, ainda na época dos bandeirantes, era a proprietária das terras onde se encontra a cachoeira, e por este motivo a mesma ficou conhecida como Cachoeira dos Pretos. Circula por Joanópolis uma lenda de que os escravos desobedientes eram jogados para a morte da cabeceira da cachoeira, servindo de exemplo a outros que pretendiam fugir ou fazer “corpo mole” ao trabalho braçal. Contudo, sabe-se que historicamente este conto não pode ser embasado. O primeiro, sim. Apesar de todos os esforços no sentido de torná-la um ponto comercial, eu diria que a queda consegue manter sua imponência natural, podendo ser vista e ouvida de muito longe. Goza de uma carga histórica meritória de muito respeito. Lastimo que alguns não vejam desta forma.

A maior cachoeira do Estado de São Paulo

Caminho para Iponina
Saindo da Cachoeira dos Pretos, retornamos a Estrada da Cachoeira dos Pretos. Deste ponto em diante os mapas turísticos que detínhamos não serviram aos nossos propósitos. Por isso não me apeteço por este tipo de mídia: destacam somente o trivial. Eu tinha algumas informações sobre uma cachoeira distante cerca de oito quilômetros dali, na mesma estrada, mas por terra, visto que o asfalto findava tendenciosamente na portaria do “complexo comercial” Cachoeira dos Pretos. Principiamos o caminho, agora mais rústico, cruzando a parte rural de Joanópolis. Angariamos informações dos moradores dos sítios locais, e com muito custo topamos com uma porteira de madeira fechada, 8km terra adentro. Do outro lado um trator jazia abandonado à própria sorte, o que era notado pela água de chuva acumulada sobre suas “garras” e pela ferrugem de sua lataria. Uma moradora de um sítio vizinho nos certificou de que a trilha para a “cachoeira menos badalada” de Joanópolis se principiava após a porteira. Salientou também que a propriedade era particular. Teríamos, portanto, que invadir o local, o que não nos freou em nenhum momento.
Cachoeira de Iponina
Pulada a porteira e passado o trator, seguimos ligeiramente pela trilha. Duzentos metros depois avistamos um córrego com as águas vindo de encontro a nós. O barulho de águas violentamente se chocando contra rochas já era perceptível, e não demoramos muito para avistar a Cachoeira de Iponina, queda que, segundo um morador quase surdo a quem pedimos informações no começo da estrada de terra, é a primeira maravilha de Joanópolis. Há de se escutar a voz da experiência, pois o velho homem viveu seus mais de 70 anos todos nesta cidade, e portanto deve conhecer todos os seus recônditos. Devo dizer, incorrendo no risco de parecer fútil, que Iponina foi a cachoeira mais intrigante a que direcionei meus olhos. São 20 metros de queda d'água torrencial, de ininterruptas pancadas contra rochas igualmente sólidas, mas que com o tempo vêm sucumbindo e sendo sumariamente perfuradas pelo furor da impressionante força de contato de Iponina. Eu e Luiz Paulo ousamos nos aproximar do chafariz formado no ponto de choque entre água e pedra, mas o volume d'água aumentava significativamente a cada minuto. Acredito que chuvas no curso do córrego anterior à cabeceira da cachoeira fizeram-na ganhar ainda mais poder de “destruição”. Tivemos que deixar a congelante água antes que fôssemos engolidos.

A ferocidade de 20m de queda

Vista da cabeceira de Iponina
Thiago Lucas, enquanto enfrentávamos o turbilhão, localizou uma trilha que ascendia em direção à cabeceira da cachoeira. Eu, Luiz Paulo e Rodrigo, então, nos colocamos na mesma com vistas a alcançar o ápice da queda. Há de se tomar cuidado com a taquara-lixa que margeia esta trilha. Em vários momentos cortei minhas mãos e braços na textura desta planta. A vista lá de cima, contudo, impressionou, mesmo com o desmatamento evidente. Neste sereno lugar pudemos fazer uma retrospectiva desta viagem de apenas 400km, trocar informações sobre outros locais que auguramos visitar em breve e, acima de tudo, repousar. O retorno se principiou poucos minutos depois, pela mesma estrada de terra e Estrada da Cachoeira dos Pretos. No centro de Joanópolis nos sentamos a Praça da Matriz para interagirmos com alguns cidadãos e nos divertimos com o sotaque “amineirado” destes. Acessamos uma rodovia adjacente ao portal de entrada da cidade e passamos por Vargem antes de encontrarmos a Fernão Dias. Dela adentramos a Dom Pedro, de onde nos despedimos, em Campinas, de Rodrigo Costa Gil. Os três que sobraram ainda enfrentaram a Anhanguera, finalizando um dia em que visávamos conhecer apenas uma cidade, mas conhecemos duas.
Não questiono mais meus pensamentos. São parte de mim, do que sou, do que aspiro. Já me isolei, me afundei no álcool e em antidepressivos. Já abracei a desesperança. De nada disso me orgulho. Hoje tenho pores-do-sol a caçar, cachoeiras a me acalentar e sempre estradas a me sacolejar, a fazer-me sentir vivo, parte integrante deste mundo. E o engraçado é que, procurando viajar solitário, encontrei companheiros que incrivelmente sentem e procuram o mesmo que eu. Minha fé no ser humano parece estar se despertando de seu estado inerte, de sua hibernação que eu acreditava perpétua. Agora não há apenas um eu, uma motocicleta, um mundo, sonhos e um triste blues. Há muitas vozes ao meu redor, que vociferam mais sonhos e dão a oportunidade ao mundo de querer se escancarar mais, de expandir seus horizontes. Mas não adianta abrir a janela e esperar que através deste minúsculo quadrado os céus me ofereçam respostas. É preciso levantar. É preciso agir. É preciso viajar.


Mais fotos aqui.

E abaixo um blues, com toques de música caipira, composto especialmente para as cidades de Piracaia e Joanópolis.


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