Ouço um chamado do passado enquanto no presente momento me preparo. Vozes ecoam, reminiscentes do sofrimento imposto por inexoráveis algozes aos escravos africanos sob os plenilúnios do Brasil Colônia, impetrando minha memória e meu respeito. Auguro voltar no tempo, visualizar em detalhes as escoriações provocadas por ininterruptas chibatadas que impiedosamente se atritavam com a pele negra, mas o zéfiro da realidade sopra lateralmente e me dissuade. O “não-poder” controlar o tempo renega a mim o “poder-voltar” os séculos, tornando-me hirto. Incapaz de presenciar fatos há muito consumados, amparo-me na História e na sua fatídica impotência em me fazer crer nos seus dizeres. Porém, não a tendo como única detentora da verdade, exorto a mim mesmo e parto à procura dos cenários onde a ignomínia se desenrolou. Que estejam, feito um pavão macho com penas em leque e instigado pelos feromônios do gênero oposto, concupiscentes ao meu desejo de conhecê-los, apesar de os protagonistas que os fizeram de palco estarem, há muito, em estado pueril.
Ajapi
Uma viagem curta oportuniza, além de descobertas, um maior envolvimento do viajante com a região em que está inserido. Com este pensamento em vista, eu, Luiz Paulo Blanes e Rodrigo Costa Gil, munidos de muita vontade e pouca razão, levamos a cabo uma incursão de 14 horas por aproximadamente 400km. O escopo seria conhecer a fazenda escravagista Santa Maria do Monjolinho, encravada em meio ao mar de cana-de-açúcar na zona rural de São Carlos. Entretanto, a utilização de vias secundárias e estradas “em meio ao nada” apresentaram aos nossos olhos imagens de outros locais que indubitavelmente merecem um olhar mais meticuloso em um ulterior momento. Ajapi, distrito de Rio Claro, por exemplo, é um deles. Foi, assim que deixamos a Anhanguera e a Washington Luiz para trás, o nosso primeiro ponto de parada. Todo o caminho que se seguirá foi traçado a partir desta localidade.
Estrada de terra em Ferraz
Ajapi, um hiato de trinta minutos e Ferraz: a tríade que constituiu a primeira parte do trajeto. Em uma estrada de terra com áreas alagadas, passagens sobre o Rio Corumbataí e trânsito de cavalos, fomos barrados por uma viatura da Polícia Militar. Por meia angustiante hora nos interrogaram, revistaram e obrigaram a fazer projeções do futuro. “Para onde vão? O que lá farão”? A constituição me assegura o direito de ir e vir, mas aparentemente tenho que prestar contas de minhas movimentações. Pacientemente aguardamos e, quando liberados, prosseguimos. A visualização de cabeças-secas, aves que havia visto somente no Pantanal Norte até então, e um lagarto de grandes proporções cruzando a estrada dispersaram a atmosfera nebulosa que pairava sobre nossas cabeças depois da estapafúrdia “inquisição”.
Charco com garças e cabeças-secas entre Ajapi e Corumbataí
Carcará em Corumbataí
Alcançamos Corumbataí, pequena cidade já mencionada em uma viagem para Analândia. Após algumas fotografias da praça central, embrenhamo-nos por uma outra estrada de terra que se estende de um dos bairros da cidade à Rodovia Washington Luiz. Nela, um carcará se alimentando deixou que eu sorrateiramente me aproximasse. Ver esta ave é corriqueiro, mas em nenhum momento freio o ímpeto de parar o que estiver fazendo para admirá-la. Meus camaradas, impacientes, muitas vezes me repreendem por tantas paradas. No fim das viagens acabam me agradecendo pelo grande volume de fotos. Prosseguindo, cruzamos a rodovia supracitada e localizamos uma estrada de areia, envolta por uma mata relativamente fechada, que pelo curso julguei que nos direcionaria a Itirapina. Entretanto, a dificuldade de pilotagem quase nos instou a abdicar desta via. Rodrigo que o diga: receoso quanto ao solo em questão, por cinco vezes foi levado ao chão. Felizmente não se machucou e não avariou sua motocicleta, podendo continuar numa vagarosa toada.
A caminho de Itirapina
Em meio à monocultura da cana-de-açúcar esporadicamente encontramos garbosas paisagens. O portal de uma fazenda, na estrada traiçoeira em que estávamos, foi uma grata surpresa. Cansados pela areia e sem saber ao certo onde a estrada culminaria, repousamos à sombra do “monumento” feito de rochas circulares empilhadas. Próximo a ele, um carro vindo na direção oposta foi “abordado” por mim. O condutor confirmou que seguindo pela areia chegaríamos a Itirapina. Continuamos, então, agora na certeza de nossos passos. Poucos quilômetros adiante a mata se abriu, detritos já poluíam as margens da estrada e odores putrefatos exalavam de pilhas de lixo. Sabíamos que a “civilização” estava próxima.
João-de-barro sobre o portal de uma fazenda canavieira de Itirapina
Estação de Ityrapina
Dentro de Itirapina por acaso encontramos uma antiga estação de trem. A deterioração, oriunda do longo tempo de desuso e potencializada pelo pouco respeito dos nossos governantes com a memória das ferrovias brasileiras, foi por nós assaz lamentada. Pichações, vagões antigos corroídos pela ferrugem, depredação. Enfim, um cenário em ruínas. A Prefeitura esboçou, em 2007, um projeto de reforma da estação, mas aparentemente nada foi concretizado. Itirapina, no letreiro da estação construída em 1916, está grafada com Y, vestígio da influência inglesa sobre nossas ferrovias. Poderia ser apenas mais um detalhe supérfluo. Ou, visto por um outro prisma, poderia ser uma imagem preservada e apresentada materialmente aos novos cidadãos itirapinenses concebidos todos os dias. Mostrar a História, ao invés apenas de contá-la, é incondicionalmente mais significativo e educativo.
Represa do Broa
Deixamos a área urbana de Itirapina e, via asfalto, adentramos uma estrada municipal em direção a São Carlos. O Balneário Santo Antônio, mais conhecido como Represa do Broa, se situa em meio a essa estrada e, portanto, não poderíamos deixar de conhecê-lo. Suas águas, artificialmente represadas dos ribeirões do Lobo e Itaqueri e dos córregos do Geraldo e dos Perdizes, formam um espelho d'água de 21km². A água límpida e a orla, coberta por areia, dão um aspecto litorâneo ao balneário, o que atrai inúmeros turistas e, infelizmente, muito barulho. Eu diria que não é o lugar mais pacífico do mundo para repousar. Itirapina conta com uma natureza exuberante. Outras localidades podem ser mais apetecíveis para este fim.
Anu-preto em uma exibição às margens da Represa do Broa
Estação do Monjolinho
Seguindo pela rodovia municipal culminamos em uma encruzilhada. Optamos por pender à direita e, um pouco à frente, localizamos a SP-215. Permanecemos nesta por alguns minutos. Discerni, timidamente pregada a uma cerca, uma placa com indicações à fazenda Santa Maria do Monjolinho. Prestamente, em meio aos canaviais e a muita terra, nos dirigimos a ela. Pelo caminho, margeando o poluído Rio Monjolinho, topamos com a Estação do Monjolinho. Sua pintura deteriorada, mas ainda vibrante, nos remete ao período em que esteve em pleno funcionamento, entre 1894 e 1968. Algumas ruínas a envolvem, bem como um restaurante que, apesar de extrair um pouco da nostalgia avivada pela velha estação, de alguma maneira ajuda a preservar a riqueza arquitetônica aqui presente, muito embora os trilhos da estação tenham sido retirados ainda na década de 70.
Senzala
Da estação à fazenda. Logo na porteira de entrada fomos recepcionados pelas águas de um riacho com suaves cascatas. Estacionamos as motocicletas à sombra de uma grande árvore, próximas a uma velha charrete. Logo à direita uma construção de médio porte, equivalente a uma casa domiciliar de cem metros quadrados, prendeu nossa atenção. Descobrimos se tratar de uma senzala, moradia dos escravos que trabalharam na fazenda até a proclamação da Lei Áurea em 13 de maio de 1988. Dentro dela são mantidas camas e alguns outros “móveis” feitos de bambu, todos construídos pelos infelizes africanos que, no auge da produção cafeeira da região de São Carlos, eram tratados e comercializados como propriedade, e não como cidadãos livres. Ao lado da senzala, correntes e cadeados atrelados a grandes colunas de madeira nos fizeram imaginar os constantes açoites a base de chibatadas. Muitos conheciam a arte da magia negra e da capoeira, e mesmo com todo esse poder sucumbiram.
Aqueduto da Fazenda Santa Maria do Monjolinho
Casa Grande
Andamos por toda a fazenda. Fotografei os aquedutos, o terreiro onde os grãos eram dispostos e a tulha de armazenar café. Restou-nos, por último, a casa grande, local onde residiram os proprietários da fazenda. Suntuosa e com alguns cômodos que permanecem até hoje originais, foi tombada e transformada em Museu Histórico. Dentro dela, um guia chamado Lucas nos passou valiosas informações sobre os costumes da época escravagista. Cada parte da casa é uma visita ao passado. Escarradeiras, uma cadeira-namoradeira, livros antigos, quadros de família, telefones: todos intactos. A casa das mucamas (escravas que faziam os serviços domésticos), uma espécie de edícula da casa principal, muito me interessou, principalmente um pequeno quarto onde eram mantidas em quarentena quando doentes. Dele só saíam curadas ou mortas.
Hidrelétrica de Monjolinho
Deixamos a fazenda e, para encerrar a parte histórica da nossa viagem, seguimos pela Estrada do Matadouro, beirando o Rio Monjolinho até a parte urbana de São Carlos. Ali planejávamos encontrar a Usina Hidrelétrica de Monjolinho, a primeira construída no Estado de São Paulo e a segunda em solo brasileiro e no hemisfério sul, em 1983. Com alguma dificuldade conseguimos acessá-la. Aqui, uma cena inusitada: Luiz Paulo, ao ser informado sobre a história do local, ameaçou se desfazer em lágrimas. É estranho o sentimento de quem viaja e adquire conhecimento durante o processo. Eu e Rodrigo, que já estávamos conscientes destas informações, preocupamo-nos apenas em registrar o momento em fotos. Luiz, por outro lado, sentiu o peso histórico do local e se emocionou simplesmente por estar nele.
Cachoeira Cancan
O horário de verão, por mais que muitos não o suportem, pode ser útil em curtas incursões. Perto das dezoito horas, a posição ainda elevada do sol nos deu a luz necessária para que deixássemos São Carlos em direção a Ibaté, cidade vizinha, com vistas a nos banharmos em uma cachoeira de difícil acesso e, por este motivo, praticamente desconhecida na região. De dentro da cidade se ramifica uma estrada que cessa na Usina da Serra. Porém, antes da usina uma estrada de terra em declive, em meio a canaviais, nos levou a um laivo de mata, preservada por estar adjacente a uma fenda rochosa. Descemos, agora a pé, por uma picada íngreme e pedregosa, rapelando as encostas com a ajuda de cabos de aço e raízes sobressalentes. Escorreguei a la Bear Grylls, em alguns momentos, e quase rasguei minhas calças. Tudo foi recompensado pela cachoeira: mais de 85 metros de queda d'água. Alguns a chamam de Cancan; outros de Cachoeira da Usina da Serra. O certo é que, em um lugar como estes, não há como não se sentir pequeno (vejam o tamanho do Luiz com relação à cachoeira na foto ao lado). Foi o desfecho natural perfeito para um dia repleto de informações históricas.
Cachoeira da Usina da Serra e seu imponente paredão
Qual será a próxima?
Voltamos já com a noite nos envolvendo. O caminho ortodoxo do retorno, pela Washington Luiz e Anhanguera, em nada se assemelhou às perigosas estradas que desafiamos na ida. Em Rio Claro, uma parada para reflexão. Mesmo exaustos, ainda demonstramos ganas para planejar uma próxima incursão. Não chegamos a um consenso, mas sei que estáticos nunca estaremos. Eu, pelo menos, não estarei. Acompanhar-me-ão, intrépidos camaradas?
Já não ouço mais nada. Aquela voz retumbante, que por muito tempo me fez retornar aos poços da leviandade; que me fazia crer que palavras doces e pouca atitude eram algo benéfico; e que me abandonou em um momento de fraqueza irresoluta, já não tilinta dentro de minha cabeça. Busco o equilíbrio só, e só por ele subsisto. Uma enfatuação crescente toma meu coração emprestado e, apesar de quimérica, me acalenta em demasia. Adeus ao meu minúsculo passado e boas-vindas ao passado do mundo, este sim maiúsculo e digno. Estou a seu dispor. Por favor, insista em querer revelar-se.
E abaixo um blues para uma certa donzela, tão desconhecida e bela quanto a cachoeira Cancan. Que a distância e o tempo a perpetuem como minha musa. Que me sirva de inspiração mesmo que não saiba. Mesmo que a contragosto. Dedico-o também ao Rio Monjolinho e à História que se engendra às suas margens.
Quantos preferem a pusilanimidade à ação? Em muitos grupos guerrilheiros, ou mesmo na antiga máfia siciliana, a falta de motivação e a indiferença de um membro perante um momento decisivo, em que tomadas rápidas de decisão e ações enérgicas se faziam necessárias, eram retaliadas com castigos físicos, mutilações e, em casos julgados mais sérios pelos outros membros, a morte. Não sou, contudo, fatalista. Não acredito que o fenecimento dos desanimados possa mudar o mundo. Sinceramente, apoiando-me no sufismo, gosto de pensar que se todos fossem para o mesmo lado – ou fossem iguais e fizessem as mesmas coisas – o planeta se desequilibraria e tombaria. Odes às idiossincrasias! Eu, contudo, escolhi um dos lados: sou do grupo daqueles que primam pela ação.
Uns correm, outros esperam
Periodicamente me questionam o porquê de tantas viagens. Já me perguntaram se corro DE alguma coisa ou PARA alguma coisa. Minha resposta é sempre ambígua: hoje corro PARA alguma coisa, mas sem negar que já cheguei a correr DE alguma coisa. Deparei-me com decepções viajando; e já viajei para tentar olvidar decepções. O certo é que, apesar de tudo, continuo correndo, independente de minhas motivações. Neste dia, 9 de outubro de 2011, por exemplo, corri ininterruptamente, juntamente com o meu camarada Luiz Paulo, das 7h às 19h, por 420km e sob muita chuva. Nem mesmo a Anhanguera, a Bandeirantes e o Rodoanel, enfadonhos caminhos que nos levaram à Indo Tibririçá e posteriormente a Rio Grande da Serra e a Paranapiacaba, foram capazes de suprimir nossos ímpetos.
Paranapiacaba e a bruma
Amigos de Mauá e Suzano me instigavam a visitar Paranapiacaba – “lugar de onde se vê o mar”, em tupi – há muito tempo. Tardiamente, então, resolvi conhecer o local, incorporado ao município de Santo André desde 2002. É, na verdade, uma vila edificada pelos ingleses que se instalaram neste pedaço da Serra do Mar, em 1860, para construir, gerenciar e operar a estrada de ferro Santos-Jundiaí, que a partir de 1867, com o nome Estação Alto da Serra (foi mudado para Paranapiacaba em 1907), passou a transportar, até o porto de Santos, praticamente toda a produção cafeeira do estado de São Paulo, além, logicamente, de passageiros. Esse café seguia posteriormente, via mar, para os mercados da Europa.
Locomotiva a vapor inglesa Sharp-Stewart, fabricada em 1867
A passarela
Fomos surpreendidos, logo ao chegarmos, com a densa bruma que envolvia a vila. Deixamos as motocicletas na chamada Parte Alta, próximas à Igreja Bom Jesus de Paranapiacaba, e descemos a pé uma limbosa – e portanto escorregadia – ladeira de paralelepípedos rumo à passarela que dá acesso à Parte Baixa. Desta ladeira já é possível visualizar o grande emaranhado de trilhos, o Relógio da Estação (que dizem ser uma réplica do Big Ben, de Londres), uma locomotiva a vapor inglesa Sharp-Stewart (fabricada em 1867 e que hoje transporta esfumaçadamente turistas pelos trilhos), alguns trens em funcionamento e outros carcomidos pelo longo tempo de desuso. Dos corrimões da passarela a visão é ainda mais nítida. Senti-me, observando deste ângulo, um pouco mais a par da dinâmica da vida humana na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX.
Parte Baixa da Vila
Acessamos a Parte Baixa assolados por uma fina porém constante garoa. O movimento de turistas, nos bares ao pé da passarela, era intenso, mas nada que “poluísse” em demasia as fotografias. Caminhamos, sempre ao som da locomotiva que silvava ao longe, por praticamente todos os quarteirões, admirando o estilo vitoriano das casas de madeira que um dia abrigaram operários e chefes ingleses que trabalhavam na estação. Uma em especial prendeu nossa atenção, visto ser a mais suntuosa e localizada sobre um monte, que ulteriormente descobrimos se tratar do ponto mais elevado da vila.
O estilo vitoriano da arquitetura de Paranapiacaba
Subida ao Castelinho
Subimos por uma rústica escadaria de pedras o íngreme morro. No cume, a casa de dois andares, de um vermelho escuro muito bem conservado, é, na verdade, um museu denominado Castelinho. Dentro dele estão permanentemente expostas algumas peças da ferrovia e a memória social da vila. Soubemos, por intermédio do monitor, que esta casa foi construída em uma posição estratégica, a partir de uma rosa-dos-ventos no assoalho amadeirado do escritório. Nela moraram os engenheiros-chefe da São Paulo Railway Co. (este era o nome da empresa composta por ingleses responsáveis pela estação até 1946). De cada janela é possível visualizar uma parte distinta de Paranapiacaba, o que dava ao engenheiro um poder de vigília sobre a estação e a vila, além de respeitar o padrão hierárquico inglês da época (os “superiores” deveriam estar posicionados geograficamente acima dos “inferiores”).
Museu do Funicular
Do Museu Castelinho retornamos à passarela. Do meio desta se ramifica uma pequena rampa que nos direcionou à bilheteria do Museu Ferroviário do Funicular. Pagamos uma irrisória quantia e adentramos este local histórico, que conta, por meio de fotos e maquinário antigo, um pouco da história da ferrovia na região. Logo na porta de entrada um convidativo vagão vermelho-amarelado airava com passadismo o que estava por vir na parte interna de uma cadeia de prédios antigos. Inteiravam o cenário o recepcionista, vestido como os comissários de vagão da época, e um quadro de Getúlio Vargas, que em 1946, período em que se encerrou o contrato de concessão aos ingleses, recentemente terminara seu regime ditatorial. Todo o patrimônio da Vila Ferroviária foi, deste ano em diante, incorporado ao Governo Federal, o que explica o sucateamento procedente até 2002, ano em que a foi comprada, como já frisado, por Santo André.
Entrada do Museu do Funicular
Sistema Funicular
O museu não recebe este nome ao acaso. Cabos de aço sobre os trilhos eram atrelados aos vagões, ajudando-os a vencer as encostas íngremes da Serra do Mar. Esses cabos eram puxados por imensas engrenagens presentes na Estação de Paranapiacaba. Todo o conjunto desse aparato auxiliar ficou conhecido como Sistema Funicular, e os motivos que o levaram a ser adotado pelos ingleses é compreensível. Afinal, economicamente era muito mais viável montar este simples sistema do que construir quilômetros de trilhos suspensos sobre a serra. Hoje o funicular da vila é nomeado Primeiro Funicular da Serra, visto ser o pioneiro de tal empreendimento em solo brasileiro.
Estação abandonada
Inegavelmente conhecemos boa parte de Paranapiacaba. Sem mais o que desbravar, optamos por retornar às estradas. Por mera curiosidade, meu último desejo, e também o de meu intrépido camarada, era acessar a vila por uma estrada de terra que culminaria diretamente na Parte Baixa. Voltamos cerca de 5km em direção a Rio Grande da Serra e localizamos a dita estrada, que se iniciava após o cruzamento de diversas linhas de trem, como não poderia deixar de ser. Estáticos por muitos minutos, enquanto aguardávamos a passagem de um quilométrico trem, aproveitamos para fotografar uma estação de passageiros abandonada. Entretanto, um guarda da ferrovia incontinenti nos repreendeu com um silvo de seu apito. Assentimos. O trem, enquanto isso, desobstruira o caminho. Seguimos.
Aguardando a passagem do trem
Acesso por terra
A estrada de terra, esburacada mas transitável, e com algumas pontes de madeira que me recordaram a Transpantaneira, nos levou sem perigo algum pelo meio da mata atlântica até a Parte Baixa de Paranapiacaba. Fomos novamente repreendidos por um outro guarda quando atravessávamos os portões semiabertos da empresa que controla o tráfego na ferrovia. Deixamos a localidade e discernimos um pouco à frente, abandonada às margens da mesma estrada, uma locomotiva semelhante a que transporta turistas próxima à passarela. Suas condições, não obstante, são lastimáveis. Esta foi a última imagem da vila. Partimos.
Lagoa de Taquarussu
Poderíamos ter regressado pelo mesmo caminho. A chuva não cessara e a exaustão incomodava. Porém, a estrada de terra não findava em Paranapiacaba. Prolongava-se Serra do Mar adentro. Prosseguimos por ela. De todos os caminhos que os pneus de minha motocicleta estiveram em contato, este sem dúvidas foi o mais estreito de todos. Pedras, barro, declives e aclives íngremes quase nos obrigaram a abandoná-lo, mas teimosamente continuamos. O que nos acalentou foram as coordenadas dadas por um sonolento vigia, deitado em um casebre às margens da estrada. Supostamente ele deveria abrir e fechar a cancela controlando o movimento nesta área, que é protegida por ser integrante do Parque Natural Nascentes de Paranapiacaba. A cancela, contudo, jazia partida em duas. Aproveitamos as dicas do velho homem e mantivemo-nos na estrada, chegando pouco tempo depois a Taquarussu.
Resquícios da ligação de Taquarussu com Paranapiacaba
Taquarussu
Uma lagoa esverdeada, uma igreja, um coreto e seis casas: descrição mais fiel da Vila de Taquarussu é impossível. Hoje pertence a Mogi das Cruzes, mais precisamente ao distrito de Quatinga. Durante a Segunda Guerra Mundial funcionava neste local, cercado por brumosas montanhas e mata atlântica, uma mineradora de origem italiana que provia carvão à Estação de Paranapiacaba, uma vez que a Inglaterra estava diretamente envolvida no confronto, ficando impossibilitada de suprir a demanda. Conhecemos uma família local. Com um sotaque italiano, confidenciaram se tratar de uma vila zelada carinhosamente por todas as seis famílias que ainda subsistem neste recôndito. “Aqui sempre está assim. Sempre pintadinha. Sempre charmosa”. Além disso, deram-nos coordenadas para o restante da estrada de terra.
Última imagem de PNB
Optando pelo viés esquerdo em cada bifurcação, e sem perder de vista um aglomerado de torres de energia no horizonte, encontramos asfalto. Saímos na Subestação de Tijuco Preto, em Mogi das Cruzes, que transmite para a região a energia proveniente da Hidrelétrica de Itaipu. Cruzamos toda a cidade de Mogi e Suzano, onde acessamos a Rodovia Ayrton Senna. Minutos depois estávamos na Marginal Tietê, em São Paulo, buscando a Rodovia dos Bandeirantes. Daí pra frente, o mesmo: Anhanguera, Americana, casa. Quando a viagem se encerra, que as lembranças fervilhem e nutram o ensejo de uma próxima.
PARA algo? DE algo? Como bom iconoclasta, em certos momentos prefiro contrariar ambos e responder que viajo POR algo. Esse bucolismo, essa inquietude, essa centelha que me propulsiona... Viajo POR tudo isso. Não me reconheceria se agisse de outra maneira ou se me prostrasse indiferente a esse sentimento. A todos aqueles que preferem o sedentarismo (no sentido de se fixar num mesmo local) ao nomadismo, minhas sinceras saudações. Todavia, e não me tenham por esnobe quando brado tal sentença, escolho ser assim: antagônico a vossas mercês.
A vida moderna clama por atalhos. O desenvolvimento – leia-se consumismo – depende da presteza logística, viabilizada pela construção de novas rodovias e pela modernização das já existentes. Uma centena de quilômetros, hoje, é facilmente transponível, diferentemente de pouco mais de meio século atrás, tempos em que os meios de locomoção eram tão escassos quanto a quantidade e a qualidade das estradas brasileiras. Porém, toda a comodidade trazida pela sempre crescente malha asfáltica, fruto das políticas desenvolvimentistas desde JK, pode incitar nos mais nostálgicos o anseio de reaver aquele sentimento tão comum aos homens que extraíam da terra e da água estratagemas para garantir a sobrevivência. Em síntese, existem aqueles que almejam sentir esporadicamente a faceta selvagem que o encurtamento de distâncias derrocou.
A beleza das estradas secundárias
Eu, Luiz Paulo e Levi Vieira levaríamos aproximadamente sessenta minutos para chegar ao topo de um dos locais mais visitados do estado de São Paulo: a Pedra Grande, em Atibaia. Entretanto, as bem conhecidas e fastidiosas rodovias que nos direcionariam a ela suscitaram em nossos cernes o desejo de dificultar o trajeto, o que obviamente contraria o senso comum. Agindo desta forma conheceríamos novas estradas, paisagens e distritos isolados do frenesi das vias rápidas e dos centros urbanos adjacentes a elas. Filosoficamente falando, palmilharíamos caminhos desconhecidos ou ignorados pela grande maioria dos que se dizem bípedes conscientes. Estaríamos inseridos deliberadamente em ambientes pouco explorados, e não apenas naqueles em que a linearidade dos projetos das estradas do progresso nos permite estar.
Estrada Velha Valinhos-Itatiba
Partimos de Americana às nove e meia da manhã. Decididos a não gastar o nosso irrisório capital com os onerosos pedágios da rodovia Dom Pedro, embrenhamo-nos por Campinas e Valinhos. Por um instante acreditei estar perdido na segunda maior selva de concreto do estado, mas coletamos informações nas ruas o suficiente para que localizássemos a Velha Estrada Valinhos-Itatiba. O clima nostálgico supracitado foi a tônica deste ponto em diante. Poucas construções, cercas rústicas, aromas provenientes da bem preservada vegetação, rochas, pássaros. Em uma das diversas curvas paramos pela primeira vez para algumas fotos. O silêncio, estarrecedor para alguns e pacificador para outros, foi desafiado apenas por um breve ruído das turbinas de um avião que sobrevoava a área. Passado o artefato alado, imperou soberano novamente.
Itatiba-Jarinú
Em Itatiba pelejamos. Não há placas ou qualquer outro indicativo para estradas secundárias. Temos que nos basear e confiar cegamente nas coordenadas de transeuntes. Eu sabia, mediante pesquisa prévia, que uma estrada municipal, de chão, ligava a cidade a Jarinú. Um proprietário de um estabelecimento comercial nos indicou um possível caminho. Contudo, já nele, uma bifurcação suscitou a dúvida: para que lado seguir? Optamos pela via esquerda e, para a perpetuação da Lei de Murphy, demos de cara com a Rodovia Dom Pedro, a mesma que tentávamos a todo custo evitar. Retornamos alguns quilômetros e adentramos a via direita, supostamente a correta.
Morro Azul
Algumas cercas fechadas, boiadas e areais colocaram em cheque o já duvidoso trajeto. A essa altura não tínhamos certeza alguma de onde chegaríamos. Subitamente, um bairro, conhecido como Morro Azul, ainda no município de Itatiba. Após um breve descanso, fotos e mais coleta de informações, seguimos pela continuação da estrada, alcançando, para a nossa satisfação, a cidade de Jarinú. Nela um outro comerciante, vendedor de morangos, pseudofruto típico da região, nos indicou uma estrada municipal, também de terra, que passaria pela Represa da Usina e culminaria no centro de Atibaia, de onde poderíamos rumar à Pedra Grande. Por que não conhecer, então, mais esse atrativo?
Represa da Usina
A Usina Hidrelétrica Bragantina e a Represa de Atibaia, mais conhecida como Represa da Usina, foram gratas surpresas. Cento e cinquenta quilômetros quadrados de águas represadas no curso do Rio Atibaia não passariam despercebidas por três motociclistas fadigados pelos solavancos das irregulares estradas que haviam enfrentado até então. Às sombras das margens, sentados sobre os barcos ociosos, descansamos e discutimos sobre a sequência da aventura. Foi racionalizando que tivemos a ideia de invadir a usina e fotografar sua aparelhagem e estrutura. A barragem, invisível de onde estávamos, somente poderia ser vista do outro lado da usina, o que “justificou” a invasão.
Barragem da Usina Bragantina
Sorrateiramente vencemos os arames farpados. Alguns passos depois já era possível visualizar o tom esverdeado envelhecido de alguns tornos mecânicos, esquecidos ao relento, contrastando com estruturas vermelhas que, acionadas por manivelas e engrenagens, abrem as duas comportas, permitindo a entrada da água da represa. Uma das comportas estava fechada. A vazão na outra era torrencial. Descemos uma escada e chegamos à barragem. Dela em diante a água não é mais represada. O Rio Atibaia, então, naturalmente segue seu curso por entre as pedras. Andando por uma trilha é possível ver o fundo da usina, local por onde é escoada a água que "alimenta" as turbinas para a produção de energia elétrica.
Parte posterior da usina
A usina, construída em 1928, está desativada desde 1970. Por isso utilizei as aspas em "alimentava" no parágrafo anterior. Felizmente seus arredores foram transformados em Área de Preservação Ambiental. A degradação das águas que a abasteceram e que geraram energia para Atibaia, Jarinú e Bragança Paulista, por outro lado, é evidente, principalmente na água estática sobre a comporta que se encontra fechada. Subprodutos da vida moderna em meio a vegetais em decomposição extraem todo o potencial estético do local. Lamentamos, meneamos horizontalmente os queixos e deixamos a usina.
Sorrindo, apesar do tombo
O centro de Atibaia, pouco após a represa, nos direcionou ao princípio da estrada de terra que culmina na Pedra Grande. Perdemo-nos, como de praxe, mas rapidamente nos colocamos no caminho correto. Ascendemos vagarosamente pela serra, fotografando a paisagem sobre uma animalesca pedra encostada a uma cerca. As placas indicativas foram suficientes para que chegássemos ao cume sem nenhum percalço, a não ser, logicamente, a condição precária da estrada no trecho próximo ao seu término. Foram nestes 50 traiçoeiros metros que, no regresso, Luiz Paulo e Levi tombaram suas motocicletas enquanto eu, atônito, tentava desatolar a minha da vegetação que se decompunha sob às altas árvores que emparedam o caminho. Afortunadamente ninguém se feriu. Nem mesmo nossas “poderosas” se avariaram.
Do alto da Pedra Grande
A recepção instrutiva na Pedra Grande foi, ao meu ver, o apogeu dessa pequena incursão de domingo. Duas mulheres aparentando pouca idade, provavelmente biólogas, nos indicaram os locais em que poderíamos estacionar as motocicletas sem causar dano às estruturas naturais da pedra; apontaram a necessidade de recolher o lixo que eventualmente produziríamos; e clamaram a necessidade de se preservar a vegetação esparsa que sobrevive na superfície rochosa. Com tais itens devidamente internalizados, preocupamo-nos, deste ponto em diante, somente em contemplar a vista.
Potencial esportivo
Apesar da coloração cinza emprestada aos céus pelas nuvens carregadas, discernimos no horizonte, de uma altitude de 1450m, as cidades de Atibaia e Jarinú. Augurávamos ver muito mais, mas a recompensa, sempre esperada pelos aventureiros, não se materializou completamente. Certamente a possibilidade de enxergar quilômetros à frente impressionou, mas devo admitir que o que me deixou boquiaberto, na verdade, foram as formações rochosas que parecem brigar por cada centímetro nos 200 mil m² de superfície da Pedra Grande. Essas rochas, formadas há 600 milhões de anos, são compostas principalmente por quartzo e microclínio. Muitos esportistas fazem delas rampas para voo livre e pontos de descida de rapel.
Recompensa
A chuva começava a cair. Cogitávamos viajar um pouco mais, até Joanópolis, mas a água advinda do firmamento, potencializada pelo vento lateral que golpeava ferozmente todas as estruturas presentes no topo da pedra, encharcou nossos intentos. Abatidos e cansados, principiamos o regresso. Agindo antagonicamente ao espírito em que se baseou esta jornada, acabamos retornando pela Rodovia Dom Pedro e arcando com abusivos pedágios. Enfim, foi como guerrear contra um inimigo mortal e, ao alcançar a vitória, pedir perdão em prostração. Os 270km rodados, ao meu ver, foram meritórios. Pelo menos boa parte deles.
Que a humanidade se multiplique e consuma! Que cresçamos 50 anos em 5! E que em cidadãos não tão comuns, como eu, o apego ao progresso aumente concomitantemente ao desejo de reaver o que é imprescindível, mas que um dia foi deixado para trás. Vivo no presente, beliscando nacos do passado e lamentando o que o futuro nos reserva. Panegíricos a nós, os saudosistas! Isso se não nos rotularem como loucos.