sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Cunha e Paraty – de 12 a 14 de outubro de 2012


Mais eficaz do que qualquer outra forma de expansão da mente é ele, o ato de viajar. Há quem prefira drogas, a literatura ou a televisão, apenas para citar alguns, mas todos estes falham no quesito abrangência de sentidos. Tóxicos alienam a mente. A literatura, apesar de muito importante para a aquisição de criatividade e conhecimento, peca por muitas vezes não situar o leitor em uma realidade que deveria ser vivida e desmistificada por ele, sendo, portanto, mais lúdica do que propriamente construtiva e emancipatória. A televisão e outros veículos de mídia, por sua vez, são vieses pelos quais um mundo fantasioso, idealizado por uma minoria, é inoculado nas classes inferiores, travestindo um papel prepóstero ao que realmente deveria servir, que é a informação, e não a sacramentação das diferenças entre seres que gozam de estruturas físicas e psicológicas semelhantes e que, por esses motivos, deveriam ser pesados na mesma balança pelas superestruturas de uma sociedade. O viajar consciente, contrário a todos os supracitados, eleva a visão, a audição, o olfato, o paladar e, caso o viajante não seja um completo misantropo, também a interação entre culturas diferentes, esta última imprescindível à socialização. O melhor de tudo é que gera uma rotina de mapeamento de diferentes realidades, derrubando por terra aquela noção “paulista” de que o mundo é apenas “São Paulo”, como se todos os outros Estados e municípios fossem parecidos ou inferiores ao magnânimo centro econômico-cerebral do Brasil.  
Companheiras de viagem
Queria eu voltar a Serra do Mar. É nela que se encontram os dez por cento restantes de toda a mata atlântica brasileira. É nela que os parques estaduais e nacionais, e algumas reservas particulares, ainda empunham a bandeira da preservação, num último grito desesperado pela manutenção de nossa riqueza natural tão explorada desde o advento dos portugueses a Terra de Vera Cruz. Por falar em nossos “colonizadores”, suscita-se em meu imo o devaneio de reaver parte da nossa nefasta História, que teve como palco, em sua fase aurífera no começo do século XVIII, o território dos municípios que visitaríamos: Cunha, em São Paulo, guarnecida pelas Serras do Quebra Cangalha, da Bocaina e do Mar; e Paraty, na planície litorânea do Rio de Janeiro. Ambos foram povoados originados a partir de andanças pelo Caminho Velho do Ouro, antiga trilha que os índios guaianases palmilhavam para vencer as imponentes serras da região. Os gajos oportunistas e sua sede pelo ouro recém-descoberto nas minas de Ouro Preto e redondezas escoavam o luzente metal por esta mesma trilha até o Porto de Paraty, onde ulteriormente era transportado de nau para São Sebastião do Rio de Janeiro, hoje apenas Rio de Janeiro, capital fluminense. O caminho inverso supria a necessidade por escravos, alimento e animais para tração. Faríamos a primeira – ou última – parte da rota, hoje conhecida como Estrada Real (Caminho Velho), de Taubaté a Paraty, vencendo a Serra do Mar. Comigo iria Luana e suas joviais coragem e resistência.
Represa de Atibainha
Partimos de Americana, do bairro Praia Azul, às oito e meia de uma manhã sisuda de outubro. O tímido azul entre nuvens contrariava as sempre fidedignas previsões do CPTEC, que no dia anterior indicava chuvas incessantes para todo o fim de semana. A verdade é que chovera a noite inteira, mas o astro-rei parecia não querer entregar-se sem luta, reivindicando seu posto matutino. Esperançosos com esse espírito, Luana, eu e minha moto adentramos a Rodovia Anhanguera em um de seus trechos mais perigosos, entre Americana e o acesso a Dom Pedro. Nesta última fomos avançando vagarosamente, assolados pelas terríveis rajadas de vento lateral comuns no território de Campinas. Atravessamos, infelizmente a um custo elevado, dois postos de pedágio e apeamos pela primeira vez após uma ponte sobre a Represa de Atibainha, último local em que ainda era possível notar o azul celeste. Daí pra frente um gotejar fino e intermitente foi nossa insistente companhia enquanto cruzávamos pontes e mais pontes sobre represas do rio Atibaia, a Pedra Grande (palco de saudosas aventuras com meus companheiros Luiz Paulo Blanes e Levi Vieira) e o derradeiro pedágio em Bom Jesus dos Perdões. Naturalmente optamos, para rumar ao norte, pela Carvalho Pinto, notadamente mais expressa e menos sujeita a engarrafamentos que a Dutra. Mais um par de pedágios e encontramos quem 55km antes evitáramos: a mesma Dutra. Nela permanecemos até o município de Guaratinguetá, imediatamente após Aparecida do Norte, à qual um grande número de romeiros caminhava em direção pelos perigosos acostamentos da 116, mesmo sob a garoa gelada.

Cunha
   
SP171
A tônica, deixada a Dutra, passou a ser os desenhos sinuosos necessários ao avanço por entre os montes e vales albergantes de rios, córregos e ribeirões que compõem a bacia do Rio Paraíba do Sul. Estávamos, agora, na SP-117, da qual mais de 70% de seu comprimento total são derivados do Antigo Caminho do Ouro, hoje conhecido como Estrada Real. Ele se interligava ao Caminho Geral do Sertão, proveniente do Planalto de Piratininga, hoje cidade de São Paulo, e partia para o sertão de Minas Gerais, de onde o ouro era extraído. Em pouco mais de meia hora vencemos os 60km que separam Guaratinguetá do portal de Cunha, saindo, ademais, de uma altitude de 500m para uma de 1100m. A chuva apertou e, escorregando no calçamento de paralelepípedos, apeamos de minha moto à caça de guarida para a noite. Com a jactância daquele clima nada poderíamos fazer na zona rural da cidade, onde estão os atrativos que nos propuséramos a conhecer. Restava-nos explorar, a pé, a zona urbana de pouco mais de 12 mil habitantes – outros 12 mil se encontram espalhados pelas fazendas adjacentes – e sua arquitetura colonial derivada dos tempos em que este era um ponto de parada de quem provinha do Porto de Paraty e se embrenhava pelas truculentas matas da Serra do Mar, numa época passada trilhadas apenas pelos nativos guaianases.

Igreja do Rosário, construída em 1793 para os escravos
   
Alusão ao Caminho do Ouro
O primeiro local que cativou nossa vista no pequeno centro histórico de Cunha, calçado por paralelepípedos como a grande maioria deles, foi um templo católico que, apesar de suas dimensões reduzidas, prendeu nossa atenção pelo fato de estar aparentemente descuidado quanto a sua pintura, mas transpirando passadismo ao evocar lembranças de figuras de carcomidos livros de História que eu costumava manusear em meus anos juvenis. A Igreja do Rosário, alva, com portas e janelas de madeira pintadas de um azul encorpado e beirais contornados de um amarelo quase bege demonstravam uma simplicidade que não era muito comum em 1793, época em que foi construída. Há uma explicação para isso: foi edificada exclusivamente para os escravos que trabalhavam nas fazendas locais. O café, após a diminuição considerável das reservas de ouro em Minas Gerais, passou a ser o produto brasileiro mais valioso, isso no fim do século XVIII e durante todo o século XIX. Por Cunha passavam as tropas que transportavam os louros da cafeicultura. Foi a época em que a cidade mais se desenvolveu, pois muitos por ali paravam para usufruir do clima ameno e do solo fértil de seus 1100m de altitude. Foi a época, doravante, que mais careceu de escravos, o que “explicava” a necessidade de uma igreja exclusiva aos mesmos, isso na “cabeça” dos colonos.  

Marco da Estrada Real a 1320m de altitude, na Serra do Mar, com a Cachoeira do Mato Limpo ao fundo

Cachoeira do Mato Limpo
Nada mais poderíamos fazer em uma sexta-feira chuvosa que já se despedia. Logicamente as partes históricas de Cunha apeteciam a Luana, mas não completamente a mim. Estava mais disposto a conhecer cachoeiras, vales e picos. Com esse intuito, no sábado, logo pela sereníssima e “serenosa” manhã, subimos a Serra do Mar pela continuação da SP171. A divisa com o Estado do Rio de Janeiro não estava longe, e dançando com a moto por entre as traiçoeiras curvas chegamos a ela. O altímetro marcava, nos píncaros da serra, 1523m de altitude. Devido ao tempo nublado a vista estava prejudicada, mas a sensação de cegueira somada à vertigem foi única. Estar no alto, olhar para baixo e não ver absolutamente nada tem um efeito semelhante ao da vaidade na personalidade de muitos seres humanos. Devaneios à parte, imediatamente após a placa demarcatória da divisa de Estados o asfalto se encerra, visto que se principia a descida em direção a Paraty por dentro dos domínios do Parque Nacional da Serra da Bocaina. Desceríamos para Paraty, mas não hoje. Voltamos sentido Cunha e apeamos em uma queda d'água por nome de Cachoeira do Mato Limpo, parelha à estrada. Com 15 metros em sua parte mais visível, é rota de vazão das águas que brotam no interior da Fazenda Mato Limpo e conta com um marco da Estrada Real, indicando que os que passavam pelo Caminho Velho também eram agraciados com a sua beleza. O manso ribeirão atravessa a rodovia por debaixo de uma singela ponte e continua vale abaixo, formando novas quedas, seguindo seu caminho até desembocar em definitivo no Rio do Taboão.

À direita, uma queda menor
   
Cachoeira do Paraibuna
Voltando para Cunha, sempre pela espinha dorsal SP171, passamos nossos olhos por um monumento, à beira da estrada, a Paulo Virgínio, agricultor cunhense que se negou a delatar a posição das tropas paulistas às tropas de Getúlio Vargas durante a Revolta Constitucionalista de 1932. Logicamente foi torturado, obrigado a cavar a própria cova e assassinado para preenchê-la. A essa altura eram tantas informações históricas relativas a Cunha que eu praticamente desistira de conhecer seus aspectos naturais. Quando já me dava por vencido, eis que visualizo uma placa com indicações para o Parque Estadual da Serra do Mar, Núcleo Cunha-Indaiá. Aquela coragem muitas vezes maléfica me incitou a adentrar a Estrada do Paraibuna, totalmente de terra, para tentar a sorte nos domínios de uma área protegida de mata atlântica. Seriam 20km de terreno judiado pela chuva, no qual lamaçais, especialmente nos últimos 5km anteriores à portaria do parque, acautelavam a progressão que, por sinal, já era bem lenta. A tensão foi quebrada apenas quando apeamos em mais uma queda d'água parelha à cerca de uma propriedade privada, mas totalmente acessível. Tratava-se da Cachoeira do Paraibuna, do próprio Rio Paraibuna, que com o Paraitinga dão origem a um dos mais importantes e extensos rios do Brasil: o Paraíba do Sul. Com pouco volume, 12 metros e um poço de águas amarronzadas, não é imponente, mas impressiona por sua largura, escorrendo suas águas, com a ajuda oportuna da gravidade, em forma de leque de ponta-cabeça. Aranhas multicoloridas tecem suas teias no gramado derredor ao poço. Por mais que eu tenha enviado mensagens eletrônicas para o pessoal do Butantã, ainda não me responderam qual é a espécie do aracnídeo.


Cachoeira do Paraibuna: mais imagens

Núcleo Cunha-Indaiá
 Sem atolar, por incrível que pareça, alcançamos a portaria do Núcleo Cunha-Indaiá do Parque Estadual da Serra do Mar. O sereno e o chuvisco deixaram de ser complacentes e o aguaceiro apertou. Conversamos com membros da equipe de manutenção do parque, visualizamos algumas fotos no Centro de Visitantes e partimos, a pé, pela única trilha disponível devido ao tempo: a Trilha do Rio Paraibuna. Esta margeia o mesmo rio na qual observáramos a cachoeira supracitada. A chance de vermos bichos era ínfima, devido ao clima tempestuoso, mas nem por isso deixamos de palmilhar seus 1700m de extensão. São vistas sucessivas quedas ao longo do rio, não maiores do que cinco metros cada, com destaque para a Cachoeira do Barracão, uma espécie de corredeira entre pedras arredondadas amontoadas. Bromélias, araucárias e palmiteiros-jussara se destacam em meio à densa mata ciliar. Pequenos anuros cruzavam a trilha visando alcançar o úmido interior da mata, e algum cuidado era necessário para não pisarmos neles. Girinos às centenas se espremiam em pequenas poças d'água formada sobre os sulcos das enormes rochas presentes no leito do rio. Enfim, um cenário típico da mata atlântica, que já chegou a ocupar 80% de todo o território paulista e hoje subsiste com meros 6%. Todo o esforço dispendido para sua preservação é, a meu ver, meritório de exortativos encômios.

Cachoeira do Barracão

Rio Paraibuna
   
Igreja de Nossa Senhora da Conceição
Duas horas no interior do Parque Estadual da Serra do Mar foram suficientes para que meu medo de enfrentar a Estrada do Paraibuna, no caminho de volta para Cunha, adquirisse proporções abissais. Quando viéramos, o barro se mostrou um impetuoso empecilho. Agora, caíra ainda mais água e o potencial “escorregativo” de seu solo certamente se maximizara. Contrariando as expectativas, tudo transcorreu da maneira mais suave possível. Atravessamos a Vila de Paraibuna, com sua capela singela e um campo de futebol de pequenas dimensões, e calhamos novamente na SP171. Descemos para Cunha, observando-a enquanto perdíamos altitude nas serpenteantes curvas da serra. Na zona urbana não mais chovia, e desta feita pudemos fotografar a Igreja Matriz, inegavelmente maior do que a do Rosário. Leva o nome de Nossa Senhora da Conceição e foi construída em 1731. Por ser de cunho barroco não é tão deslumbrante quanto as suntuosas igrejas de São João del Rei, mas mesmo assim nos remete ao passado, numa época em que tudo era mais difícil mas que, nem por isso, deixava de ser idealizado e concretizado. O interior da edificação, praticamente todo talhado em madeira e pintado a cores vivas, é um bom exemplo do esforço que era empregado na construção de templos religiosos no século XVIII. De tão carismática, a igreja e a Praça Cônego Siqueira, que a circunda, são os pontos de maior trânsito de pessoas de Cunha. Como era de se esperar, o Caminho do Ouro passava por aqui. Há até uma alusão a ele no calçamento moderno de uma das vielas comerciais que se ligam à praça.  
Interior da Igreja Matriz

Zona rural de Cunha
Sob chuva dormimos, e abrigados por um céu azul despertamos. Era o dia D, um domingo em que o clima parecia querer ceder aos nossos objetivos. Incontinenti nos despedimos da zona urbana de Cunha e acessamos a zona rural por um trecho bem preservado da Estrada Real, chamado localmente de Estrada do Monjolo. Os marcos em marrom, que se estendem na vertical a pouco mais de um metro, facilitam bastante a progressão pela estrada de terra. Por entre vales, pontes de madeira e fazendas vencemos cerca de 9km até a porteira semiaberta do sítio em cujo território se encontra a Cachoeira do Desterro. Caminhamos até ela por uma trilha que, numa primeira parte, atravessava um pasto. À direita, o Rio Jacuí, segundo a carta topográfica do IBGE, formava uma ilhota ao bifurcar-se à procura de um caminho por entre o vale. Metros abaixo, a cabeceira da cachoeira, de sólidas pedras acinzentadas, delineavam o formato das duas quedas d'água de Desterro. Prosseguindo pela trilha, agora através de uma mata mais densa, obtivemos uma vista frontal de ambas as quedas, com 15 metros, sendo a da esquerda mais poderosa e a da direita mais parcimoniosa. As róseas caliandras, aos montes, enfeitavam ainda mais o cenário, que me lembrou as quedas do Córrego do Rebojo, em Tambaú. No mapa, ainda havia mais uma alguns quilômetros à frente. Aproveitarmo-nos íamos do promissor tempo.  
Cachoeira do Desterro
Caliandras

Cachoeira do Pimenta
Meu mapa estava certo. Detrás do arame farpado e dos mourões da cerca, 4km adiante da Cachoeira do Desterro, visualizamos as várias quedas que formam a Cachoeira do Pimenta, também no curso do Rio Jacuí. São mais de 70 metros de desnível, desde a primeira queda, no topo, até o poço que se forma após a última. Por não ser em queda livre, como a do Desterro, não é tão exuberante, mas carrega um peso histórico considerável por alimentar uma antiga usina hidrelétrica que supria a demanda de energia da cidade de Cunha. Poderíamos caminhar pela trilha lateral às quedas, fotografando-as uma por uma, inclusive um museu que há por lá, mas em cachoeiras como essa, que caem diagonalmente e não em 90º, a beleza se distingue no conjunto cênico, e não em cada pedaço registrado separadamente. Preferimos, portanto, prosseguir, e toda esse azáfama era fruto de uma ideia um tanto quanto inconsequente que nos assolara no sábado: descer pelo trecho calamitoso e famigerado da Estrada Real, inserido no Parque Nacional da Serra da Bocaina, para Paraty. Terminamos o trajeto, portanto, pela Estrada do Monjolo mesmo, e nossa coragem em realizar tal empreitada começou a ser testada. A chuva, sem sobreaviso, reaparecera, fina e constante. Com o barro dificultando calhamos na SP171, a 1300m de altitude. No asfalto, passamos pela estrada de acesso a Pedra da Macela, mas não a adentramos pois, subir a 1800m de altitude com os céus fechados, não nos oportunizaria ver a Baía de Paraty em toda seu esplendor. Um dia voltaremos para visitá-la, certamente.

Cachoeira do Pimenta: primeiras quedas
   
Adeus, Cunha
Mil e quinhentos metros de altitude. Divisa São Paulo/Rio de Janeiro. Desse lado, a segurança do asfalto. Do outro, o barro e os buracos da Estrada Real. Estanquei a moto, hesitando por um minuto ou dois, e indaguei Luana sobre sua disposição em sofrer. Afinal, desceríamos 9km por uma estrada incerta, desconhecida, popularmente conhecida por destruir o assoalho de carros de passeio comuns. Com o aval dela, e munido daquele brio que infelizmente não me abandona, acelerei minha moto e principiamos cautelosamente a descida. Eram muitas pedras soltas, vincos, canaletas formadas pelo escoamento natural da água da chuva, crateras com mais de dois metros de diâmetro e, o que o mais temia, barro. Muito barro. Em alguns trechos achei por bem passar sozinho com a moto. Luana descia a pé os poucos metros em que o solo pegajoso pedia leveza para sua transposição. A estrada, uma cicatriz de quatro metros de largura aberta na imensidão da mata atlântica da Serra do Mar, mas por incrível que pareça neste ermo pertencente ao Parque Nacional da Serra da Bocaina, em conjunto com a chuva, tanto nos amedrontaram que fotografar foi impossível. A tensão e a concentração se voltaram ambas exclusivamente para a íngreme e sinuosa descida. Um fusca branco subiu, em sentido inverso ao nosso, sofregamente subia, bailando ao sabor dos buracos e da lama. No fim das contas, encontramos asfalto 9km depois. Foram necessários 90 minutos para derrocá-los.

Paraty

Centro Histórico
A continuação do caminho, a RJ165, também é parte integrante da Estrada Real, mas por ser asfaltado, e também por estarmos ensopados, não mereceu olhares pormenorizados. Passamos pela multidão que se aglomerava na entrada para a trilha da Cachoeira da Penha e atravessamos uma ponte sobre o Rio Perequê-Açú, cuja 165 segue paralela a partir de então. Em pouco tempo contornamos a rotatória da BR101 e apeamos nas proximidades do Centro Histórico de Paraty. Vestimos roupas secas e, a pé, palmilhamos boa parte das três dezenas de quarteirões que abrigam uma importante parte de nossa História. Nestas paragens doadas por Maria Jácome de Melo, em 1646, começou a ser edificada uma vila pela qual, no começo do século XVIII, mais precisamente a partir de 1703, o ouro era transportado de barco para São Sebastião do Rio de Janeiro, e de lá levado para Portugal. Foi, por este motivo, planejada para melhor se adequar a este propósito. Suas ruas de pé-de-moleque são banhadas pela maré alta que, na época em questão, levava para o mar todas as impurezas de suas vielas, basicamente de fezes de animais de tração, diminuindo o risco de transmissão de doenças. Sua arquitetura colonial muito bem preservada, onde casas geminadas coexistem com igrejas que muitos dizem inacabadas, contrasta com a modernidade dos aparelhos eletrônicos carregados por turistas estrangeiros e brasileiros. São sobrados e mais sobrados alinhados quase que perfeitamente, diferindo apenas no que se refere à altura, essa variando bastante de uma casebre para outro.

Calçamento pé-de-moleque
   
Igreja de Santa Rita
A Igreja da Santa Rita, defronte a Baía de Paraty, remonta ao ano de 1722, e em suas proximidades um sujeito caracterizado de escravo, de corrente nas mãos, eloquentemente brada palavras sobre a História da cidade. Não dá para dizer que tudo é verdade, mas o espetáculo é interessante. O engraçado é ele se queixando de que os turistas preferem fotografá-lo a guardar suas informações. Numa rápida inspeção localizamos alguns canhões de ferro, apontados para o mar, relembrando que Portugal acreditava na localização estratégica de Paraty na defesa das terras brasileiras. Não era raro o ataque de piratas aos barcos que transportavam o ouro daqui para o Rio. Foi isso que inviabilizou o Caminho Velho, obrigando um Caminho Novo, que partia direto do Rio de Janeiro para o sertão de Minas Gerais, a ser aberto pela coroa portuguesa, a partir de 1710, fadando Paraty ao declínio. Não obstante, sua aura jaz intacta, até hoje, e nos contornos do Atlântico chegamos ao extremo norte do Centro Histórico, mais precisamente à foz do Rio Perequê-Açú. Pelo caminho, as importante igrejas de Nossa Senhora das Dores, construída em 1800 com um galo férreo no topo de sua única torre, e a de Nossa Senhora dos Remédios, ou Matriz, de 1873. Barcos coloridos e de nomes cômicos, ancorados, pareciam nos encarar enquanto atravessávamos a ponte em direção ao Forte Defensor Perpétuo, afastando-nos do Centro Histórico.

Baía de Paraty
Igreja de Nossa Senhora das Dores, construída em 1800
   
Forte Defensor Perpétuo
Alguns minutos de caminhada, uma leve subida pelo asfalto, ainda a pé, e adentramos uma trilha que culminou no forte. Não passa de um simples casarão, datado de 1703, rodeado por enormes canhões que garantiam a segurança de Paraty por estarem localizados em um ponto estratégico. A vista da Baía de Paraty é ampla, e mesmo o céu sisudo não foi capaz de esmaecer seu brilho. Luana soltou seu capacete após um escorregão nas pedras do costão rochoso que dá acesso às águas do mar e, por pouco, não o perdeu para o Atlântico. Agradecendo um tufo de gramíneas que o segurou, subimos de volta para o forte para fotografá-lo e, mais do que isso, aproveitar nossos últimos instantes na cidade histórica. Já eram passadas 15h de domingo e a chuva, nossa fiel companheira durante os três dias em que nos aventuramos por Cunha e Paraty, regava com vigor nossas cabeças. Satisfeito estive eu lá no alto da Serra, em Cunha, e na Estrada Real, na Bocaina, e pulsante estava agora Luana e seu particular interesse na História vista, contada e lida de nosso país. Aprendemos em demasia, baseados em provas visuais, quando viajamos com a mente aberta não somente para o atual, mas também para o antigo. Poderíamos ver Paraty como todo a veem: casas velhas com restaurantes requintados, comida cara e turistas estrangeiros. Optamos por uma abordagem discrepante do senso comum. Nas palavras de Luana Romero, “uma história, uma vida que, por mim, nunca foi vivida, mas que me contenta por preservar suas simples casas descascadas e janelas coloridas e me fazer imaginar”.

Adeus, Paraty

Seremos História?
Exatamente às 16h de domingo deixamos Paraty. Reavemos nossa motocicleta, aceleramos para longe do Centro Histórico e ganhamos a BR101, na qual permanecemos até o município de Ubatuba, tendo relances do mar azulado à esquerda quando a mata atlântica nos permitia vê-lo. Acessamos a Oswaldo Cruz, visando escapar do tráfego de Caraguatatuba e da Tamoios, mas infelizmente não demos sorte. Vagarosamente subimos a Serra do Mar pelas curvas “cotovelo” dessa perigosa rodovia. O céu estrelado após a São Luiz do Paraitinga me fez esboçar um sorriso irônico dentro do capacete. É bem verdade que ele tentou de todas as formas agourar essa viagem que, há tempos, eu tentava levar a cabo, mas em nenhum momento fui compelido a desistir por causa das intempéries. Taubaté sumia nos retrovisores, deslizávamos sobre a Dom Pedro e, após 910km rodados em asfalto, lama e pedras, apeávamos na Praia Azul, onde eu me despedia de uma de minhas companheiras de aventura. A outra, minha inseparável moto, comigo ainda enfrentaria os últimos quilômetros da Anhanguera, que leva o nome de um bandeirante, atiçando dessa feita uma gargalhada estridente. A História e meus caminhos estão interligados. Mesmo não querendo, um dia serei parte dela. 
Deixei-te porque, para controlar-te, necessário era que te abandonastes. Na hipocrisia de tudo, o nada me surgiu, tão translúcido quanto a certeza da morte. Ei-lo, meus mais torpes devaneios, escritos na sufocância da evidente depressão, pois fizeste-me tão perdido e só que desbravar o mundo tornou-se minha única passagem para fora de seu abraço. Escutar-te-ei não mais, infrutífera pusilanimidade. Aviltarei a letargia e, em meio ao negro de que meus olhos se inundam quando me privas da luz, evocarei mapas mentais tão minuciosos que te fariam pensar ser, na verdade, uma projeção de uma dimensão onde nada dominas. Onde não tens sentido algum. Onde viver seja a única possível verdade.


Mais fotos aqui.

E abaixo, um lamento bandoleiro para as cidades de Cunha e Paraty.