Quem nos dera gozássemos de mais tempo para desfrutar da vida! No nosso atual sistema, que preza pelo desenvolvimento econômico, a balança, que na verdade nunca chegou a estar em equilíbrio, sempre pende para o lado do trabalho, não permitindo que possamos usufruir das maravilhas que só o ócio prolongado oportuniza. Quando vemos no mapa os contornos do Espírito Santo, por exemplo, a priori nos parece um Estado ínfimo, como se fôssemos capazes de conhecê-lo em apenas alguns dias, como num feriado prolongado. Contudo, uma viagem não se principia no destino, e sim no ponto de partida. Destarte, deslocar-se pelas rodovias brasileiras, sempre problemáticas, não é das tarefas mais rápidas, o que acaba também atrasando planos e muitas vezes frustrando-os. Por fim, o tempo é escasso e o conhecimento é parcial. O grande dom do motociclista brasileiro proletário é priorizar o que quer ver quando não há a oportunidade de desfruir de uma visão mais abrangente de seus lugares pretendidos.
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Leopoldina, Minas Gerais |
O meu fascínio por grandes cachoeiras e paisagens naturais, que quase sempre trazem a tiracolo paisagens rurais, foram os grandes motivadores para que eu me dirigisse a Alegre, no Espírito Santo, juntamente com Luana Romero e Rodrigo Gil, ambos companheiros de aventura de outras datas. Lá esperávamos encontrar simplesmente a maior queda d’água do Estado. Desde minha última incursão solitária pelo rio Itabapoana (link) e pelo Parque Estadual da Pedra Azul (link) eu ensaiava um retorno a esse pedaço de Brasil relativamente pouco divulgado. Enfim, com tudo pronto e infelizmente com pouco tempo disponível, partimos no dia combinado visando chegar rapidamente ao destino, primeiramente pelas rodovias Anhanguera e Dom Pedro II, e ulteriormente pelas Carvalho Pinto e Dutra, essa última via de entrada no Estado do Rio de Janeiro. Os contratempos se principiaram aí: congestionamentos, acidentes e obras. São ingredientes que somente grandes e problemáticas rodovias adicionam a uma viagem. Enfim, com muito custo subimos, a partir de Piraí, sentido nordeste, acompanhando o curso do rio Paraíba do Sul até Além Paraíba onde, sob forte chuva, acessamos a BR-116 e o Estado de Minas Gerais. O sol se pusera há muito e decidimos, por bem, pernoitar em Leopoldina, município com cerca de 50 mil habitantes e de graça real (Leopoldina foi filha do imperador Dom Pedro II).
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Natividade, RJ |
No dia 2, logo pela manhã, e com o tempo mais estável, subimos pela Rio-Bahia (nome da 116 por essas bandas) até Muriaé. Pendemos para o leste e cruzamos a “fronteira” entre Minas Gerais e Rio de Janeiro novamente. Nossa viagem começou a partir desse momento, já que deixamos de rodar por rodovias federais, cheias de caminhões, e passamos a desfrutar da vista magnífica das estaduais que cortam, tortuosas, as serras do Brigadeiro e da Sapucaia. Para encerrar nossa passagem pelo Estado fluminense, cruzamos a carnavalesca Natividade (não confundir com a homônima tocantinense, com fotos nesse link) e pela histórica Varre-Sai, onde escravos eram acolhidos em uma propriedade quando em fuga da Insurreição (ou Levante) do Queimado, em Serra, para o Quilombo dos Palmares, isso nos idos de 1849. Quando nos demos por conta atravessávamos o rio Itabapoana e adentrávamos o Estado do Espírito Santo, chegando a Guaçuí e acessando a ES-482, que nos levou diretamente a Alegre, trespassando antes um de seus distritos, Celina, e descendo a Serra da Abundância. Nessa cidade de 30 mil habitantes arrumamos um canto para dormir, desatrelamos o excesso de bagagem e, sem perder sequer mais um minuto, saímos à caça da maior cachoeira do Estado, a da Fumaça, ainda um pouco distante dali, nos limites do território do município, na divisa com Ibitirama.
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Serra da Sapucaia |
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Alegre |
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Cachoeira da Fumaça |
Há uma estrada de paralelepípedos, muito bem calçada, que se ramifica a partir da ES-387, rodovia estadual que liga Celina a Ibitirama e Divino de São Lourenço. Volvemos então ao distrito alegrense, rumamos para o norte e 28km depois adentrávamos a chamada estrada Caminhos do Campo. Aí foram apenas mais 2km de calçamento até a entrada do Parque Municipal da Cachoeira da Fumaça. Apeamos das motos e seguimos a pé, por uma curta trilha em meio à mata atlântica em recuperação, e topamos com os dois tentáculos principais da queda d'água de 140 metros, como já dito só a maior do Estado do Espírito Santo. É uma obra natural do rio do Braço Norte Direito, que nasce na Serra do Caparaó, a segunda maior em média de altitude do Brasil. Seu curso é certamente glorioso, visto ser um dos formadores do rio Itapemirim, que desagua no Oceano Atlântico, em Marataízes. Contribui significativamente, portanto, para a agricultura e a economia de vários municípios, que em contrapartida destroem sua mata ciliar e o expõem ao assoreamento. Críticas à parte, observávamos uma parte rochosa de seu leito, percorrido por águas turbulentas formadoras de algumas pequenas praias de branca areia. Por ser um local protegido por lei, mas de livre e gratuito acesso, é frequentado por inúmeros moradores da região e também por visitantes de fora. Por esse motivo não foi possível observar a fauna circundante, especialmente pássaros, que tanto buscamos. Apesar de todos esses embrólios, é certamente meritória de uma visita, chamando a atenção principalmente pela forma de sua queda mais do que pela névoa (ou “fumaça”) que se forma com a força de suas águas.
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Maior cachoeira do Espírito Santo |
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Serra capixaba |
Poderíamos apenasmente ter voltado a Alegre por igual caminho, mas segundo nossos mapas algumas estradas de terra nos levariam ao mesmo destino, atiçando nossa curiosidade. O calçamento da estrada Caminhos do Campo desaparece a partir do Parque Municipal da Cachoeira da Fumaça, e estreitos vieses de chão seguem, por alguns momentos, o curso do rio do Braço Norte Direito, revelando outras quedas menores, mas também portentosas. As serras capixabas, de traços suaves e píncaros arredondados, formam vales ora profundos ora rasos, guarnecendo propriedades rurais e simples casebres de pau a pique. No meio do nada, separada por muitos quilômetros de estradas precárias, encontramos o pequeno povoado de Sobreira, de gente simples, que se locomove sobre suas montarias, amarrando-as a tocos à porta dos estabelecimentos comerciais quando necessitam comprar algo. Trinta quilômetros depois sobrepassávamos a última ponte de madeira e derrocávamos o último trecho de terra e pedras e reencontrávamos o asfalto da ES-482, já bem próxima de Alegre. Por ironia, o tempo, que até então se mantivera estável, desabou em chuva, não freando as festividades de um carnaval de marchinhas que se iniciava, com o cair da noite, na praça central da cidade.
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Cachoeira do rio do Braço Norte Direito |
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Casas no campo |
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Capela no Povoado de Sobreira |
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Zona rural sul de Alegre |
No dia 3, pela manhã, deixamos o centro urbano de Alegre para localizarmos, em sua zona rural sudoeste, uma outra cachoeira, essa bem menos conhecida que a da Fumaça. Saímos pelo sul e trilhamos o campo capixaba por 10km, derrocando áreas empoçadas pela chuva do dia anterior. Uma porteira fechada, que protegia um sítio e seu cafezal, nos impedia a passagem, mas a proprietária, uma mulher simples do campo, nos permitiu a entrada, dando inclusive mais coordenadas para se chegar à queda d'água. Uma íngreme subida, pedregosa, de 300m de comprimento, foi nosso último obstáculo. Já avistávamos a Cachoeira do Roncador da beira dessa estrada de chão rudimentar, com os verdes pés de café em primeiro plano, mas isso não bastava. Ensejamos uma aproximação, a pé, atravessando um estreito riacho e uma charco. Dessa maneira nos emparelhamos ao imenso maciço rochoso, talvez granítico, de 45º de inclinação pelo qual escorrem 87 metros das águas do córrego Roncador. Devido às suas características não é uma cachoeira no sentido comum da palavra, mais se assemelhando a um tobogã de largas dimensões. Forma um pequeno poço, alcançável ao transpormos uma área de mata com alguns vegetais cortantes, repletos de espinhos e acúleos. Em síntese, eu diria que sua beleza cênica foi mais digna quando vislumbrada da estrada. De perto a visão é meramente parcial; de longe, total.
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Cachoeira do Roncador |
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Patrimônio da Penha |
Há outras pequenas cachoeiras em Alegre, mas os próprios moradores nos dissuadiram de visitá-las. Exortaram-nos, como alternativa, a nos dirigirmos ao Patrimônio da Penha, um distrito do município de Divino de São Lourenço nos pés da Serra do Caparaó, não muito distante dali. Dessa forma, regressamos a Celina, subimos novamente sentido Cachoeira da Fumaça e chegamos à pacata Divino de São Lourenço, via asfalto. A partir dela foram mais 10km de estradas de chão e 3km de asfalto. A vilinha, simples e com um ar místico (para aqueles que acreditam nisso, o que não é o meu caso), tem moldes singelos semelhantes aos de Trindade, no Rio de Janeiro, estruturada basicamente em uma única rua principal da qual outras, menores e mais estreitas, se ramificam. Uma dessas sobe a serra, pedregosa e agudamente íngreme, o que nos fez hesitar, por um breve momento, em subi-la sobre as motocicletas. Um lampejo de galhardia chamuscou, talvez inspirado pela guerrilha que aqui ocorreu entre 1966 e 1967 contra o regime militar, e aceleramos Caparaó acima. Apeamos na entrada da trilha para a Cachoeira do Arco-Íris, uma das diversas que se formam serra abaixo no curso do Córrego Forquilha. Curta, a picada entre a mata fechada nos levou primeiramente a duas pequenas quedas, e metros abaixo a uma maior, com talvez 15 metros de queda, de água límpida e gélida. Apesar do nome, arco-íris nenhum se formava ali. Contudo, é de admirável garbo, pois escorre caprichosamente pelo flanco direito de um largo paredão, como que se quisesse se ocultar da vista de quem a observa de um ângulo desfavorável.
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Cachoeira do Arco-íris |
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Poço em Pedra Roxa |
De fato subimos e descemos a serra visitando outras quedas e poços, mas nenhum realmente nos prendeu a atenção. É difícil maravilhar-se com pequenas cachoeiras após conhecer a maior do Estado. Não que não sejam interessantes. São, sim, mas também bastante movimentadas, pois estão no caminho para a comunidade alternativa Portal do Céu, no alto da serra, chamativa de muitos turistas que buscam esse tipo de local. Não fomos até lá e, portanto, não posso dar informações mais concretas a seu respeito, mas sabe-se que é uma vila com poucas pessoas que vivem aparentemente de uma maneira não-ortodoxa. Lá encontra-se inclusive praticantes da Doutrina do Santo Daime, cuja bebida litúrgica, a ayahuasca (ou chá de Santo Daime) é motivo de debate entre médicos e religiosos, visto ser alucinógena. O que testemunhamos e podemos afirmar é que muitos turistas desciam de lá com pinturas faciais coloridas e com roupas de inspiração hippie. De qualquer forma foi algo que não nos apeteceu, tanto que logo partimos dali em busca de uma outra cachoeira, a da Pedra Roxa, no distrito homônimo de Ibitirama. Foram 24km de asfalto e mais aguns de terra pelos contrafortes da Serra do Caparaó até a dita cachoeira, que na verdade não passava de um poço cristalino do rio do Braço Direito Norte, o mesmo que forma a Cachoeira da Fumaça. O ponto alto dessa esticada extra foi o registro do maracanã-verdadeiro, uma espécie de arara ainda relativamente pouco estudada.
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Maracanã-verdadeira |
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Adeus, serras capixabas |
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Cachoeira do rio Furnas |
Era chegada a hora de regressar. Para que a volta não fosse muito estafante, aproveitamos as últimas horas de sol para diminuir a distância entre os Estados do Espírito Santo e São Paulo. Conseguimos chegar a Muriaé, Minas Gerais, para pernoitar, e no dia 4, bem cedo, partimos rumo a Juiz de Fora, a partir da qual, pela BR-267, alcançamos Caxambu, passando, inclusive, por uma pequena cachoeira do rio Furnas, à beira da estrada mesmo, um pouco adiante do trevo de Aiuruoca. Algum tempo depois descíamos ao sul pela Fernão Dias. Adentrando a cidade de Pouso Alegre, entrecortamos todo o Circuito das Malhas do sul mineiro, passando por Borda da Mata, Ouro Fino e Jacutinga. Atravessando a ponte sobre o rio Eleutério voltamos a São Paulo. Logo estávamos em Campinas, grande centro urbano do Brasil, e em meio ao tráfego da Dom Pedro II nos despedíamos de Rodrigo, que mora nos arredores. Luana e eu ainda seguimos pela rodovia Anhanguera até nossos lares, em Americana. Foram, no total, 1800km rodados em quatro dias nos quais conhecemos, superficialmente é bem verdade, um pouco mais desse pequeno, negligenciado e lindo Estado do Espírito Santo. Que tenhamos mais oportunidades de a ele voltarmos nossos olhos.
Se algo nos é estranho, tratamos logo de conhecê-lo. Logicamente há os que se furtam a novos achados, fechando-se no casulo de suas ditas consciências já “formadas”. Isso é pura e simplesmente uma mutilação prosseguida da cauterização de uma habilidade inerente ao homem: a descoberta.