In memoriam: Marx (2008-2013)
Dialogava eu com um senhor e, quando ambos decidimos tomar nossos rumos para lados opostos, consultei meu relógio de vidro de lente desgastada pelos esbarrões esporádicos em muradas ásperas e paredes coloniais do meu Brasil. Passaram-se duas horas desde que ele, numa tentativa de iniciar um debate produtivo, confidenciara-me algumas informações que até o presente momento ainda não fui capaz de digerir. Mal sabia o experiente homem que eu não lhe dava a atenção que minha expressão transparecia. Meu pensamento voejava para o continente, para o alto da serra, onde eu deveria estar naquele momento, em vias de concretizar meu plano original. Repentinamente o vetusto aponta para o mar, fazendo-me desviar a atenção e acompanhar a linha imaginária que se estendia a partir do seu dedo indicador esquerdo. “É ali que flutuo, com a ajuda do meu barco, e a partir de onde admiro toda essa confusão de ilhas, serras e águas, que não se sabe doces, salgadas ou salobras”. Foi nesse momento que eu percebi que não estava ali simplesmente porque meus planos foram enfraquecidos pelos empecilhos e engodos do caminho e das intempéries. Estava ali porque algo precisava ser visto. Eu só carecia de mudar meu foco de observação para enxergá-lo e, ulteriormente, registrá-lo com convicção.
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A solitária partida |
Minha ideia inicial era explorar todos os caminhos que bordejam o rio Ribeira de Iguape, desde sua foz, em Iguape, no litoral sul de São Paulo, até o alto da Serra de Paranapiacaba, em Cerro Azul, Paraná, onde é concebido na confluência dos rios Ribeirinha e Açungui. Tempos atrás tive uma experiência semelhante, com o rio Itabapoana, entre os Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo (link), mas a tarefa, na região chamada de Vale do Ribeira, seria mais complexa, visto ser o rio Ribeira aproximadamente quatro vezes mais extenso, muito embora seja um curso d'água doce com pouco mais de 400km, não tão elongado quando comparado a outros rios importantes, como o Paranapanema e o Tietê, ambos beirando os 1000km. O que me encanta nele, contudo, não é a sua caudalosidade ou abrangência, e sim duas outras características que, na atual fase de minha vida, tem um peso profícuo na confecção das rotas: a situação dos seres vivos em sua bacia (incluindo humanos) e a total ausência de barragens de hidrelétricas ao longo de sua existência. É um rio que ainda flui livremente, mesmo sendo diretamente afetado pelo desmatamento de suas matas ciliares, pela poluição e por projetos que, uma hora ou outra, o desvirginarão, extraindo do turbilhão de suas águas a energia elétrica que, por ironia, dificilmente abastecerá o próprio Vale do Ribeira, considerada a região economicamente mais pobre do Estado de São Paulo. Sua força suprirá a demanda de algumas indústrias ou, num cenário mais animador, algumas cidades maiores da região, negligenciando outras.
Mas por que estou mencionando o rio Ribeira de Iguape? Simplesmente não fui capaz de levar cabo nada do que planejara. Sigo, então, relatando o plano B, exortado pela chuva incessante do Vale do Ribeira.
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Pedro Barros, em Miracatu |
Parti de Sumaré às 10:30h de uma quinta-feira essencialmente nublada, mas que demorou a derrubar sobre mim suas águas geladas de fim de outono. Ganhei a rodovia Anhanguera, sentido capital, e nela permaneci por fastidiosos quilômetros, tendo a monotonia quebrada apenas pela sempre imponente presença da Serra do Japi, em Jundiaí. Acessei o Rodoanel, passando pelos perímetros de Osasco e Carapicuíba, e enviesei-me pela BR-116, nesse trecho chamada de Régis Bittencourt. Tudo transcorria dentro dos conformes, mas a minha relutância, na véspera, em consultar o sempre auxiliador INPE começava a me preocupar. A atmosfera se adensava, o tom cinza predominava e o trânsito sempre lento na Serra do Cafezal mordiam nacos e mais nacos do meu tempo. Com muito atraso cheguei ao pequeno bairro de Pedro Barros, pertencente ao município de Miracatu, onde apeei pela primeira vez, descansando à sombra de uma pequena capela pintada em verde-claro, de torre única e envolta por uma mureta baixa e desnivelada. O ar daquela tarde era tão sombrio que ninguém circulava pelos becos. Eu ouvia apenas o chacoalhar das folhas ao vento, o canto mavioso dos pássaros e o som distante de alguns aparelhos televisivos. Pouco antes de adentrar novamente a BR-116 para prosseguir, recebi um aceno de um senhor conduzindo uma carriola com bananas, o fruto mais produzido no Vale do Ribeira. A chuva principiara, torrencial, e nem pude parar para fotografar o simpático homem de meia-idade. Pouco tempo depois eu largava a conturbada rodovia e caía para o leste, pela SP-222, para vencer os 55km que ainda me separavam do meu primeiro destino e onde se encontra a foz do rio Ribeira: Iguape.
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Iguape |
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Casario colonial |
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Mar Pequeno |
Cheguei à pequena Iguape, na planície litorânea, sob forte tempestade. Pela segunda vez em minha vida eu beiradeava o Valo Grande, mas pela primeira vez eu realmente notava as construções antigas enquanto me aproximava do centro histórico. O Valo Grande, talvez o erro de cálculo mais crasso de todos os tempos da engenharia brasileira, é um canal artificial aberto por escravos, a mando da coroa portuguesa, em meados do século XIX, para encurtar o caminho do rio Ribeira ao Mar Pequeno, um braço de água salobra entre Iguape e a Ilha Comprida, onde antigamente funcionava o porto que escoava o arroz produzido na zona rural, o melhor do Brasil, quiçá do mundo. Havia arroz e havia arroz de Iguape, dada a qualidade da produção no terreno irrigado pelo rio Ribeira. Sem esse canal, o arroz da zona rural, que vinha pelo rio até um porto fluvial, descia, no lombo de muares e carroças, por cerca de 2km até o porto marítimo, ou Porto Grande, no Mar Pequeno. Toda essa dinâmica de transporte terrestre demandava muito tempo e dinheiro. Com a abertura do Valo Grande, o tempo e o capital empregados seriam diminuídos consideravelmente, visto que tudo seria feito via barco. No projeto original, o canal teria apenas 4 metros de largura, o suficiente para o trânsito de pequenas embarcações. Acontece que o rio Ribeira e sua força, em conjunto com a arenosidade do solo, foram, com o tempo, alargando essa distância entre as margens, dividindo cada vez mais a cidade em duas e comprometendo todo um processo natural de marés que influenciavam o rio. No fim das contas, as terras adjacentes já não eram mais propícias ao plantio do arroz, o rio Ribeira ganhava mais uma foz, o Mar Pequeno se assoreava, não suportando embarcações de grande porte, e a cidade de Iguape, famosa e rica, era jogada às traças da miséria. Hoje o Valo Grande, mesmo com muitas obras de contenção, possui aproximadamente 100 metros de largura. Se o rio ainda se safa de barragens, por outro lado paga por um erro de cálculo que o desfigurou irreversivelmente em seu trecho final.
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Antigo engenho de arroz |
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Garças no Valo Grande |
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Interior da Basílica de Iguape |
Não consegui fotografar o Valo Grande logo na chegada. A chuva me extraía essa possibilidade. Devido a isso, encontrei guarida às margens do Mar Pequeno, dei um merecido descanso à moto e saí, a pé, pelo centro histórico de Iguape, cidade com 29 mil habitantes, tentando tirar uma foto ou outra do casario colonial circundante ao Largo da Basílica. Era tarefa impossível, infelizmente, e para não desperdiçar o resto do dia fotografei a Basílica do Bom Jesus de Iguape, obra feita em pedra, argamassa e óleo de baleia por escravos a partir da segunda metade do século XVIII. Somente sua parte interna, devo dizer. Toda barroca, de teto em cores vivas, detalhes do altar em dourado e azulejos trabalhados em um efeito parecido com sépia, foi uma das gratas surpresas da viagem. Como sempre, mostrei-me um ateu surpreso pela criatividade inspirada pela fé catolicista. Lembra, e muito, as adornadíssimas igrejas do Circuito do Ouro Mineiro, as quais pude, juntamente com outros convivas, visitar em 2012 (link). Vale dizer que Iguape foi fundada oficialmente em 1538, muito antes do sertão mineiro ter todas as suas reservas de ouro exploradas, a partir do fim da centúria XVIII. De fato, daqui também se extraiu algum ouro, o de aluvião, mas quando as reservas se esgotaram foi a vez do arroz encontrar seu apogeu. Nessa época, foi tão rica que dispunha de vários jornais e teatros, e esses últimos exibiam atrações nacionais e internacionais, rivalizando com grandes cidades como a capital Rio de Janeiro, à época. O Valo Grande, como supracitado, suprimiu esse quinhão, fadando o município a atualmente amargar os menores índices de desenvolvimento humano do Estado de São Paulo. Para os mais interessados na história desse desastre, aconselho a leitura do Rioblog, de Eduardo Rey (link).
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Detalhe do altar |
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Basílica do Bom Jesus de Iguape |
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Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos |
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Passarela do Rocio |
No dia 21, logo cedo, tive que tomar uma decisão. Uma breve olhada para o alto deixou claro que o tempo não estava em comum acordo. Considerando que uma boa parte do meu trajeto margeando o rio acima seria por estradas de terra, que em tempos favoráveis já não são simples de derrocar, optei por abandonar o plano original. Não seria interessante estar lado a lado com o Ribeira, observando-o, sem poder registrá-lo. No dia anterior eu tivera um breve contato visual com a Estrada da Peropava. Estava parcialmente alagada. Chovera a madrugada inteira e sua situação deveria estar ainda mais calamitosa. Entre 9h e 10h da manhã a chuva deu uma breve trégua, e pude fotografar o Largo da Basílica e os prédios históricos, bem como a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, também do século XVIII e que era frequentada pelos escravos. Andar pelas ruas de Iguape é como voltar no tempo, uma sensação sobrepujada apenas pela decepção de ter que abortar uma missão que há muito tempo programara. Não conseguiria, sob o jugo das intempéries, nem mesmo alcançar a foz do rio. Foi aí que optei por continuar no litoral do Vale do Ribeira, mas não necessariamente nas proximidades do curso d'água. Minha intuição me mandou ir ao sul, para a Ilha de Cananéia, onde se situa a cidade de Cananéia, considerada a mais antiga do Estado de São Paulo. Foi aí que me reuni a minha moto, decidido a partir sem mais tardar dali. Ainda me demorei nas imediações da Passarela do Rocio, que liga uma parte da cidade à outra, separadas, como supracitado, pelo Valo Grande. É às sombras desse grande arco sobre as águas, atravessável a pé e de bicicleta, que pescadores partem todos os dias em direção ao mar pequeno ou ao alto mar, para garantir o sustento de suas famílias, voltando no fim do dia para atracar seus pequenos barcos, que parados servem de pouso às garças. Lá de cima se vê também as ruínas de um antigo engenho de arroz. Infelizmente, quem passa por Iguape não se atenta ao fato de que é uma cidade histórica, tão atrativa quanto a turística Ilha Comprida, imediatamente disposta a sua frente, local muito visitado por suas praias extensas. É uma pena que muitos vejam Iguape como um amontoado de casarões antigos pela qual se passa apenas para acessar a ponte pedagiada, sobre o Mar Pequeno, com destino a sua vizinha praiana.
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Pescadores iguapenses, no Valo Grande |
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Adeus, Iguape |
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Cananéia |
De volta a SP-222, com o talante de partir de Iguape, atravessei a ponte rodoviária sobre o Valo Grande, cruzei a parte oeste da cidade e, ainda assolado pela forte chuva, fui vencendo os quilômetros até o perímetro de Pariquera-Açu, onde pendi para o sul numa reta escorregadia e sem fim até o trevo de acesso a Cananéia. Aqui existem duas opções: a balsa e a rodovia municipal com ponte. Cananéia é uma ilha, como a de São Vicente, onde está Santos. Preferi seguir pelo asfalto e cruzar a ponte sobre o Mar de Cubatão, que infelizmente não pude fotografar devido ao mau tempo. Tirar a câmera da bolsa seria sacrificar uma grande companheira de viagem, e quando se está sozinho na estrada qualquer companhia, mesmo que inanimada, auxilia na manutenção da calma e da sanidade. Noventa quilômetros depois eu chegava a que, dizem, mesmo controversamente, ser a primeira cidade do Estado de São Paulo e primeira do Brasil, dividindo o título com São Vicente, também em São Paulo. Ambas datam de 1532. Como era de se esperar, o município com 12 mil habitantes guardava belezas arquitetônicas coloniais muito bem preservadas, e que pude fotografar após o meio-dia, quando a chuva deu uma trégua. Caminhar pela avenida Beira-Mar, com o casario antigo de um lado e o Mar de Cananéia (ou Mar de Fora) do outro, é uma espécie de volta no tempo, como em Iguape, principalmente quando se passa o local de embarque da balsa que parte para a Ilha Comprida, cuja parte sul está disposta a poucos metros dali, e se defronta com a Igreja de São João Batista, uma das mais antigas do país, erigida no século XVI. Não é tão opulenta quanto as do século XVIII, que tinham a seu favor todo o luxo que o ouro podia comprar, mas a sua contribuição para a história do Brasil é inestimável. Só se descobre estar no século XXI quando se ouve o barulho dos potentes motores dos barcos pesqueiros e das embarcações que levam turistas para a Ilha do Cardoso. De fato, conversei com o pessoal da base do Parque Estadual da Ilha do Cardoso e me disseram que, no outro dia, eu poderia alugar um barco e ir para lá, isso se o tempo melhorasse. Restou-me, lado a lado com martins-pescadores e pescadores noturnos, esperar o anoitecer e repousar, na esperança de amanhecer com o sol aparente.
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Igreja de São João Batista, do século XVI |
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Avenida Beira-Mar, à noite |
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Pescadores noturnos |
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Amanhece sobre o braço de mar |
O dia 22 amanheceu aberto, e pela primeira vez na viagem eu olhava embevecidamente o azul celeste. Os problemas, contudo, continuavam. Por ser um fim de semana comum, sem feriados, não conseguia turistas interessados em dividirem comigo as despesas de um barco para a Ilha do Cardoso. Poderia ir sozinho, desde que arcasse com a taxa equivalente a de quatro pessoas. Os barqueiros me instaram a dar uma volta pela cidade e voltar mais tarde, e foi o que fiz. Palmilhei o cais e o mercado municipal, fotografando barcos de pesca de camarão e savacus, e contornei o Morro de São João (a única grande elevação de Cananéia), por estrada de terra, admirando os desenhos irregulares dos píncaros da Serra do Itapitangui, que mesmo parecendo próxima está situada no continente, fora da ilha. Uma hora depois eu retornava à avenida Beira-Mar. Como ninguém aparecera, decidi aproveitar o dia e perder mais um pouco do meu já escasso dinheiro pagando os R$100,00 do barco. Enquanto aguardava o barqueiro ajeitar seus equipamentos para zarparmos, eis que surge um outro motociclista, de Itapetininga, e felizmente pudemos dividir o valor e seguir para a Ilha do Cardoso, à bordo do Ana VII, conduzido pelo experiente Brito. Prometeu que veríamos golfinhos ou teríamos nosso dinheiro de volta. De fato, ao fazermos duas longas paradas, a primeira em um cais abandonado e a segunda nas proximidades de um banco de areia, formado pela ação das marés que transportam sedimentos da praia e os empilham em um ponto da Baía dos Golfinhos, visualizamos vários deles, os botos-cinzas, que emergiam sós, em pares e em trios, buscando o ar para satisfazer seus pulmões. Vale ressaltar que são mamíferos, embora muitos achem que sejam peixes. Há, inclusive, um grupo de biólogos na cidade que estuda e protege o boto-cinza. Fazem parte do projeto Projeto Boto-Cinza.
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Savacu jovem |
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Boto-cinza |
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Banco de areia, pouso para os biguás |
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Ilha do Cardoso |
O barco atracou na Ilha do Cardoso em sua parte norte, em uma praia conhecida pelo nome de Pereirinha. Era por volta de 11:30h e combinamos voltar às 13:30h. Eu dispunha, portanto, de duas horas para percorrer o máximo possível de trilhas dentro dessa ilha teoricamente protegida na forma de um Parque Estadual com mais de 13 mil hectares de área. Logo ao chegar, entretanto, fui dissuadido da ideia pelos fiscais. Segundo eles, todas as trilhas nessa parte da ilha devem contar com a presença de um guia, e estes só ficam disponíveis em feriados e fins de semana prolongados, o que não era o caso. Era um sábado comum, e exortaram-me a caminhar pela praia. Tudo ia muito mal nessa viagem, diga-se de passagem. Quando a chuva deu um alívio, simplesmente fiquei de mãos atadas perante a falta de um monitor que pudesse me apresentar aos encantos internos da ilha. Parti, então, para uma caminhada à beira mar, acompanhando o voo de talha-mares e quero-queros, bem como atarantados gaviões-carrapateiros em tentativas infrutíferas de se empoleirar nas galhadas secas da restinga. Olhando para o meio da ilha, onde a mata atlântica é mais densa, delineia-se a Serra do Cardoso, cujo ponto culminante é o triangular Pico do Cardoso. Sempre pela areia, fui deixando a Baía dos Golfinhos, formada pela água do mar que se infiltra entre a Ilha Comprida e a Ilha do Cardoso, e fui descendo ao sul pela Praia de Ipanema, já bordejando o Atlântico. Aqui as ondas são mais truculentas, o vento mais forte e a ausência de sombras transforma o sol em um martírio. Ao longe vê-se uma ilhota, a do Bom Abrigo, com seu farol branco destacando-se em meio ao verde. Pegadas de veados, felinos e canídeos despontam em carreiras extensas e somem em meio à vegetação baixa. A maré foi subindo e, quando encontrei o fim derradeiro da Praia de Ipanema, a faixa de areia não tinha mais do que dois metros de largura. Cioso de que não sou um exímio nadador, resolvi voltar para Pereirinha. Por sorte, na baía a maré ainda não tinha recoberto grande parte da areia. Nos minutos finais na ilha, antes de reembarcarmos, ainda registrei a pesca de alguns caiçaras que vivem defronte a baía, cuja única vista mais marcante do continente é a da jactante Serra do Mandira, um paredão imenso que já contornei em uma outra ocasião (link).
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Praia Pereirinha |
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Praia de Ipanema, com a Ilha do Bom Abrigo à esquerda |
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Pescadores e a Serra do Mandira |
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Manifestação em Cananéia |
O traslado de barco para a Ilha de Cananéia e para a cidade de Cananéia rendeu algumas boas surpresas, como uma revoada de talha-mares e biguás sobre o banco de areia (foto que abre a presente postagem). No entanto, em terra firme o que me surpreendeu não foi a natureza local, e sim a movimentação de manifestantes que, saindo da avenida Independência, marcharam em direção ao centro histórico, bradando sentenças como “Vem pra rua” e “Ei, você aí parado, também tá sendo explorado”. Uma viatura da Polícia Militar acompanhava de longe a ação pacífica, que em marcha lenta progrediu, impedindo o avanço de carros e até mesmo da balsa que faz o transporte de veículos e passageiros entre Cananéia e Ilha Comprida. Os cartazes iam sendo confeccionados à medida que a manifestação prosseguia, e os que mais me chamaram a atenção foram os relativos às balsas de Cananéia para o continente. Conversei com alguns manifestantes e os mesmos relataram que a empresa que administra a balsa cobra até mesmo dos munícipes, o que segundo eles é ultrajante. Reivindicam também transporte público, que ainda não existe por aqui; melhorias nas rodovias de acesso, principalmente com a implantação de ciclovias; melhores salários aos professores (de alguma forma compactuei com esse clamor); e mais respeito à cultura caiçara. O movimento se finalizou com uma grande roda de mãos dadas nos arredores da praça Martim Afonso de Souza e com a promessa de novos protestos. Eu, que saí de Americana no dia em que por lá ocorreria algo semelhante (e de fato ocorreu), infelizmente não pude auxiliar o povo de Cananéia, pois nem sequer estava consciente de suas reais necessidades. Mas, qualquer prefeitura que arrombe em 33 milhões dos cofres públicos de uma cidade com menos de 12 mil habitantes merece ser afrontada. “Nem o centro histórico reformaram direito”, dizia um senhor. “Olhe todos esses fios! Em 1500 não existiam fios”.
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Reivindicações |
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Adeus, Cananéia |
No dia 23, logo pela manhã, fui sentindo o frio da manhã de Cananéia enquanto me dirigia para o Mar de Cubatão, ou Mar de dentro. Despedia-me da cidade que em apenas dois dias aprendi a admirar, tanto seu povo quanto suas belezas naturais. E pensar que nem por aqui eu passaria, caso meus planejamentos fossem levados à risca. A chuva, que outrora me me parecera uma vilã, sobretudo agora se mostrava ainda como um ente que me afugenta, mas não necessariamente para lugares menos interessantes do que os visados. Parafraseando Konrad Lorenz, que dizia que “o contrário da mentira nem sempre é a verdade, mas uma mentira de sentido oposto à primeira”, acredito que “nem sempre ser escorraçado significa partir de uma situação favorável para uma pior, mas para outra, também boa, mas de uma maneira contrária à primeira”. Calhando no Mar de Cubatão, adentrei a balsa (a mesma contra a qual protestam), com minha moto, e fomos rapidamente desembarcados no continente, mediante o pagamento, logicamente, de uma taxa que beirava os R$5,00. Relembrando: esse é o acesso e saída principais de Cananéia. Existe outro, pelo qual cheguei, por ponte, mas é mais longo e demorado. Os dois caminhos compensam pela beleza. A balsa, contudo, tem toda uma mística, já que é possível descer da moto e observar o movimento das águas, as casinhas de Porto Cubatão, ao longe, e os desenhos da Serra de Itapitangui, já anteriormente citados. No continente, segui pela SP-226 até Pariquera-Açu, cidade de 19 mil habitantes e que tem, em seu território, um conhecido Parque Estadual, o Campina do Encantado, que logo tratei de procurar.
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Balsa para o continente |
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Mar de Cubatão e Serra de Itapitangui |
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Pariquera-Açu |
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Bananal |
Não há qualquer placa no centro da cidade que indique os acessos para o parque. Um taxista me deu as coordenadas e fui deixando a zona urbana para trás, pilotando por uma estrada de terra que, devido às chuvas dos dias anteriores, apresentava alguns pontos lamacentos. O engraçado é que, quando se entra nessa estrada, as placas surgem a cada dois quilômetros. Menos mal. Rapidamente venci 15km e me vi emparedado por um imenso bananal. O Vale do Ribeira, em sua parte baixa, mais próxima ao litoral, tem boa parte de sua renda proveniente da pesca e da banana. Passado o Bananal surge o portal de acesso do Parque Estadual Campina do Encantado. Mais à frente há um centro de visitantes. Um monitor ambiental, Renato, me recepcionou e me guiou pela Trilha das Palmáceas, apresentando-me a frutos que eu ainda desconhecia, como o coco tucum. Enfatizou a importância do parque, que abriga sambaquis, profícuas áreas de mata primária e secundária e fauna diversificada, além de desempenhar um trabalho de educação ambiental com escolas da região. Há de se destacar o cultivo de mudas, em estufa, que partem dali para reflorestar áreas nos entornos do rio Ribeira de Iguape. Entusiasmei-me particularmente com a presença marcante do pequeno pássaro Tangará. Apesar de todos os meus esforços e vigília, consegui registrar apenas um indivíduo jovem, verde-oliváceo com a testa alaranjada. O adulto macho é azul e preto, com a mesma cor na testa. Não posso deixar de mencionar também a existência de uma tronco tombado com as marcas da garra de um grande felino. Ali ele afiou suas unhas, mas nunca o viram.
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Parque Estadual Campina do Encantado |
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Marcas das garras de um felino |
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Tangará macho jovem |
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O regresso |
Despedi-me do pessoal do Parque Estadual Campina do Encantado sem conhecer o famoso fogo da campina, uma labareda que brota do chão devido ao acúmulo, ao longo dos anos, do gás metano sob as folhas úmidas da mata atlântica. A trilha de 4km que me levaria a ele só poderia ser palmilhada com agendamento prévio. Esse é o problema quando se muda os destinos no decorrer de uma viagem: como não se sabe exatamente para onde ir, logo não há muito o que antever. De volta a Pariquera-Açu, sem saber o que fazer e ainda com um resto do dia para desfrutar, pilotei pelas curvas da vicinal que a liga a Jacupiranga, outro pequeno município do Vale do Ribeira. Nessa cidade de 17 mil habitantes eu dormiria, nas imediações da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, construída em 1888, para acordar no outro dia e sumir, acompanhado pela chuva. Estava eu de volta a BR-116, passando por Registro e visualizando pela última vez meu sonho postergado: o rio Ribeira. Ainda voltarei para acompanhá-lo em todo o seu curso e finalizar o que meu propus a fazer. Malgrado todos os engodos e decepções dessa viagem, não me arrependo de ter estado onde estive, e enquanto contornava o Rodoanel, em São Paulo, e enfrentava os últimos dos 850km, pela via Anhanguera, recordava-me de que tinha sentido tantas emoções contraditórias sem sequer sair do Estado. Golfinhos, que muitos vão para o exterior para ver, vi aqui, em nossas águas. Vi também o povo do Vale do Ribeira, que subsiste na região paulista economicamente mais pobre, mas que não deixa de lutar por melhores condições. Como o coro de Cananéia, de poucas e roucas mas eloquentes vozes, meu interior vai se inflando em um desejo cada vez mais inquietante de continuar nessa jornada de descoberta. Que me aguarde o Caraça.
Não estavas ali quando um de meus pés empurrou a porta de madeira maciça, revelando o interior da sala de estar onde sempre estiveste me esperando. Quando me inteiraram das notícias, julguei estares bem, mas não... Não estavas bem. Bem estava eu, com as ideias fervilhando, a chuva apaziguando e o mundo todo se exibindo aos meus olhos. Você estava às mínguas, sofrendo o corte impingido para curar-te e que nunca realmente chegará a cicatrizar, pois em seu sangue já não corre mais vida. Descanse em paz, meu amigo. Eras um companheiro que nunca mais terei igual.
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