segunda-feira, 15 de abril de 2013

Arenito de Vila Velha e Cânion Guartelá – de 29 a 31 de março de 2013


“Nascido e criado sou nestas terras e nunca tive vontade de estar nos locais para os quais estão indo ou de onde estão vindo, piá”. Com essa frase, notadamente uma aceitação da própria passividade de um frentista de Castro, no Paraná, abro essa postagem que, na verdade, é mais uma tentativa falha e enfadonha de dar algum sentido a todas as minhas perambulações motociclísticas e pedestrianistas pelo Brasil. Escrevo poucas linhas por dia, e estas são eivadas de curtas e difusas sentenças, devido a uma pusilanimidade imposta não por minha periclitante e irrequieta personalidade, mas pela ausência daqueles momentos de ócio tão necessários à sobriedade e ao encontro das palavras ideais. Enfim, numa lufada de atrevimento ouso me comparar ao homem citado que, por livre escolha, escolheu a estática, o hirto modo de testemunhar a vida passar sem que um de seus músculos se contraia para modificar a realidade. Eu, por minha vez, busco o movimento, a inquietude que inflama minhas bases e não permitem que meus pés permaneçam na mesma posição por muito tempo. Malgrado todas essas dessemelhanças, penso, somos iguais, sujeitos que lutam pela própria singularidade contra um par de mandrágoras, pequenos demônios que rastejam na penumbra sob as camas do ideário popular: a paz e a guerra. Ele, na guerra pela subsistência, almeja a paz que teoricamente trará o alívio que o trabalho estafante o nega; e eu, na pseudo paz e segurança do meu trabalho rotineiro como funcionário público, aspiro a “guerra” que, dentre outras coisas, possibilita o movimento, o sentir-se vivo ao confrontar-me com o incomum.
Companheiros de aventura
A ideia de conhecer o conjunto arenítico de Vila Velha, em Ponta Grossa, no meu Estado materno do Paraná, é tão antiga quanto a minha vontade de virar às costas à minha cidade natal, Americana, para desbravar esse Brasil socialmente mal distribuído e, ambientalmente falando, magistralmente composto, onde a beleza cênica natural contrasta com a miséria, a desigualdade e notadamente a desonestidade. Contudo, a postergação de tal empreitada foi, repetidas vezes, necessária, uma vez que feriados mais longos pediam viagens mais longas. Cheguei inclusive a passar por Ponta Grossa no fim do ano de 2012, mas a premência de alcançar o Rio Grande do Sul impediu-me de por lá atracar, mesmo que para uma concisa visita. Desta feita, porém, dispunha de três dias, tempo escasso para uma incursão longa e elongado em demasia para uma pequena aventura. Foi aí que voltei meus olhos para o sul, investigando fontes e mais fontes de informações sobre o Parque Estadual de Vila Velha, criado pelo governo do Paraná com o intuito de resguardar o que as intempéries vem desbastando desde a época em que tudo era gelo sobre o mega continente gondwana, isso há 300 milhões de anos. Não seria, a princípio, uma aventura propriamente dita, pois o caminho até o parque não é, nem de longe, dificultoso, haja vista toda a estrutura turística que o cinde. Não obstante, a existência de outros atrativos de difícil acesso – e por esse motivo menos visitados – na Serra de Itaiacoca, que se eleva nos entornos do perímetro de Vila Velha, garantiria o laivo de perigo sempre tão aspirado por pessoas como Thiago Lucas e Luana Romero, companheiros de viagem, e logicamente por mim. Como bônus, se arestas de minutos nos restassem, conheceríamos, no retorno, um naco dos 32km de extensão do cânion do rio Iapó, o Guartelá, entre Tibagi e Castro, também no Estado do Paraná.
A testemunha da partida
A partida de Americana, mais precisamente do bairro Praia Azul, se deu às 6 da manhã de uma sexta-feira que, pensávamos, seria toda dispendida na estrada. Afinal, os 550km que separam nossa cidade e a de Ponta Grossa, no planalto paranaense, são todos praticamente compostos por rodovias de mão dupla, o que somado ao feriado poderia significar lentidão extrema. Não foi o caso, felizmente, e rapidamente vencemos a SP-304, um trecho da Rodovia do Açúcar, a Estrada do CEASA, em Piracicaba, e a SP-127, na qual permanecemos, sempre com a companhia dos canaviais, até Itapetininga. Acessamos a Raposo Tavares, sentido Capão Bonito, e pouco antes desse município pendemos para o oeste pela rodovia Francisco Alves Negrão, na qual as grandes araucárias e o cerrado começam a tomar conta dos acostamentos. Deixamos Itapeva para trás e acompanhamos o traçado do rio Verde, apeando posteriormente em Itararé para um breve descanso e reabastecimento de nossas motos. Nos últimos quilômetros dentro do Estado de São Paulo, descemos o vale do rio Itararé, apeamos novamente sobre sua ponte e descemos, a pé, o íngreme flanco sul do mesmo para registrar uma pequena, mas garbosa cachoeira do córrego da Prata, que em seus últimos metros, com uma ajuda da gravidade, encontrava com o Itararé, potencializando-o. Deixada ficou em meu imo uma triste impressão olfativa. O odor não era nada agradável, e tanto o Itararé, importante afluente do aclamado rio mais limpo do Estado de São Paulo, o Paranapanema, quanto o córrego da Prata exalavam o malcheiroso descaso com o nosso corpo hídrico.

Vale do rio Itararé

Cachoeira do córrego da Prata

Pinus em solo paranaense
Em frente, agora em solo paranaense e sulista, atravessamos vários rios de cerrado, rasos e com o leito cimentado por rochas acinzentadas, inteiriças e planas, de nomes estranhos, como o Invernadinha e o das Mortes. Entrecortamos Sengés e, na cidade sequente, Jaguariaíva, paramos para registrar uma cachoeira facilmente acessível, vista da própria PR-151, rodovia na qual pilotávamos desde a divisa de Estados. Tratava-se do Cachoeirão do rio Capivari, uma larga queda de talvez cinco metros ladeada por um pequeno cânion. De um mirante, uma espécie de deck de madeira montado pela prefeitura, obtém-se um belo visual, mas descendo-se a trilha, a pé, em direção à base da cachoeira, nota-se o descaso dos frequentadores locais. Lixo, dejetos humanos e restos de uma recente farra dedicada a Baco. Sempre gostei de lugares poucos acessíveis por esse motivo, pois raramente se encontram tão depredados, visto ser o trânsito de pessoas consideravelmente menor. É a segunda vez que passo por essas paragens e pela segunda vez ela me causa uma má impressão. Nas fotos, que representam parte de uma realidade e não sua completude, logicamente parece ser uma paragem aprazível, mas a não agradabilidade nos fez continuar o nosso caminho na PR-151, passando por Castro, onde avistamos as placas que apontam estradas para o Cânion Guartelá, o qual, por ora, negligenciaríamos. Exatamente às 13:30h, envoltos por um frio suportável, atracávamos em Ponta Grossa, uma cidade de 320 mil habitantes que, por ser turística, nos fez penar em encontrar algum lugar barato para pernoitar.

 
Cachoeirão do rio Capivari, em Jaguariaíva

Ponta Grossa

Capão da Onça
Livres do excesso de peso e com ainda boa parte do dia 29 para aproveitar, optamos por não ir diretamente ao Parque Estadual de Vila Velha, nosso escopo, e rumar para a Rodovia do Talco. Esta, asfaltada via que liga o centro à porção leste da zona rural, é a espinha dorsal de onde se ramificam as estradas de chão que levam a praticamente todos os atrativos naturais dos campos gerais de Ponta Grossa. Enveredamo-nos logo por uma das primeiras, ao norte, e em meio a amarelecidas plantações de soja calhamos em um local conhecido como Capão da Onça, dentro de uma propriedade particular. Foi-nos cobrada uma taxa de R$5,00 e, a pé, trilhamos as margens do rio da Onça, que em seu curso de águas serenas oferece sequências de pequenas cachoeiras e poços para banho, sempre com uma água que, de tão translúcida, reflete as nuvens do céu feito o mais cristalino espelho. A vegetação é predominantemente rasteira, com um pinheiro aqui ou acolá. Há resquícios de uma barragem logo no começo da trilha, mas notadamente dali não se obtinha energia elétrica. Funcionava, talvez, como um reservatório de água para o sítio que tem a propriedade sobre esse pedaço do rio. Encantei-me com o conjunto do cenário em si, com o rio escorregando, caudaloso, pelos tobogãs petrificados de seu leito, formando escadarias extensas de pequenos degraus até, finalmente, ser despejado, com a ajuda sempre oportuna da gravidade, em uma queda maior, formando um poço ladeado por grutas e rochedos de talvez sete ou oito metros de altura. Enfim, como uma abre-alas para a região dos campos gerais, usando-me de uma expressão tupiniquim, veio bem a calhar. Partiríamos, agora, para o segundo atrativo, mesmo tendo informações fidedignas de que não o encontraríamos aberto à visitação.

Vestígios de uma barragem

Ao fundo, uma plantação de soja

Última queda

Buraco do Padre
Retornando à Rodovia do Talco, avançamos a leste até avistarmos as setas indicativas para o Buraco do Padre, nosso próximo objetivo. Adentramos uma estrada de chão mista de areia, pedregulho e terra, o que por si só já garantiu boas doses de emoção. Após 11km encontramos uma placa que, em claro português, explicitava estar o local fechado à visitação pública para adequação turística, ou algo parecido. Já pensávamos em retornar, cabisbaixos, quando avistamos um carro, com um senhor ao volante, vindo de uma estrada aberta poucos metros após o aviso. Interpelado, o senhor confirmou a existência de uma trilha, uma picada que facilmente poderíamos vencer, chegando ao começo da trilha a pé para o tal Buraco do Padre. Assim o fizemos, mas o que, nas palavras do homem, seria facilmente vencido, se transformou numa enxaqueca aguda. Num declive totalmente irregular, já nos metros finais, nossas motos chegaram a saltar. Para piorar a situação, logo ao Luana apear para que eu estacionasse a moto em um lugar adequado, ao lado da de Thiago, meu pé esquerdo tateou o chão, falseou por duas vezes e minha moto encontrou-se com o solo fofo e gramado do local. É ruim ver quem você ama jogado ao chão. Com a ajuda de Thiago e de mais dois sujeitos que circulavam pelo local, também de moto e tão inconsequentes quanto nós, a colocamos de pé e partimos pela trilha a pé, beiradeando o rio Quebra Perna em sentido contrário ao seu curso. Menos de trezentos metros depois nos abrigávamos em uma gruta, de onde provinha o rio, e afundando-nos pela baixa luz avistamos uma claraboia e uma cachoeira de cerca de 10 metros. Esse é o Buraco do Padre, uma caverna de rochas engruvinhadas, úmido por ser entrecortado pelo respeitável rio Quebra Perna e cindido por uma bela queda. É um lugar único. Já vi cachoeiras dentro de grutas no PETAR, mas com uma escotilha com acesso direto ao firmamento, logo acima, foi a primeira vez. Em suma, uma queda compensou a outra. Dizem que, aqui, jesuítas rezavam e pediam inspiração aos céus. Não é de se duvidar, visto ser essa uma terra onde os índios nativos, os Umbu, eram submetidos à catequização.

Vista frontal

Detalhe das paredes da gruta

Passo do Pupo
Onze quilômetros pela mesma estrada de chão calamitosa e de volta estávamos à rodovia asfaltada do Talco. Já eram passadas 17h, e mesmo com o astro rei ameaçando debandar para o oriente decidimos segui para o leste, em busca, agora, das chamadas Furnas Gêmeas. Chegamos ao povoado de Passo do Pupo, pertencente ainda a Ponta Grossa, um conglomerado daquelas casinhas paranaenses típicas do sítio e de algumas cidades menores, de fundações e paredes unicamente de madeira. As mais antigas apresentam portas e janelas também de rústicas tábuas, enquanto as mais novas utilizam madeira com quadradinhos de vidro. Estão geralmente impecáveis, pintadas com zelo e rodeadas por um jardim nem sempre tão zelado assim. De Passo do Pupo se ramifica, ao sul, uma outra estrada de chão, e nela pilotamos por cerca de 2km até, com a falta de luz, optarmos por regressar ao centro de Ponta Grossa, postergando a exploração da área para o outro dia, caso a estadia no Parque Estadual de Vila Velha não se prolongasse por toda a tarde. Na Rodovia do Talco, acelerando de volta para as amplas avenidas ponta-grossenses, testemunhamos a passagem de um veado-campeiro (devido à falta de luz a foto ficou sofrível, mas vale pelo registro) e o resgate de um motociclista que, por algum infortúnio ou descuido, em uma curva, deslizou pelo mato ralo que bordeja a estrada. Lembrei-me que, momentos antes, vociferara impropérios à queda boba no Buraco do Padre, no qual nem eu e nem minha moto sofremos avarias. O pobre homem e sua moto não tiveram a mesma sorte. Aquele jargão “tem sempre alguém pior do que a gente” me veio à memória e me acompanhou pelos sequenciais, enfadonhos e demorados semáforos que nos separavam do nosso local de pernoite.

Veado-campeiro

A noite de Ponta Grossa

Campos Gerais
No dia 30, logo pela manhã, levamos a cabo o que propuséramos desde o início: conhecer o Parque Estadual de Vila Velha. Para lá nos dirigimos, via BR-376, e dezesseis quilômetros depois, já circundados pelos campos gerais, abriam-se as cancelas do parque e apeávamos em seu estacionamento. Do próprio estacionamento, e indo em direção ao Centro de Visitantes, avista-se por todos os lados a vegetação rasteira e aberta que constitui os campos gerais, cuja hegemonia é ora ou outra quebrada por capões de mata densa e fechada, notadamente nos vales por onde correm os rios límpidos nascidos na Serra de Itaiacoca. Fomos recepcionados pelo pessoal do IAP (Instituto Ambiental do Paraná) que, num sucinto elóquio, apresentou-nos os atrativos que poderiam ser visitados mediante um pagamento de R$18,00 por cabeça, incluso o ônibus que nos levaria ao início de cada trilha e os guias que explanariam a formação das furnas e dos conjuntos areníticos. Sem demoras, então, embarcamos no primeiro ônibus, juntamente com outros turistas, e em cinco minutos, por vias asfaltadas dentro do parque, desembarcamos no princípio da trilha dos arenitos, que calçada por pedras de quatzito nos deu passagem em meio ao magnífico Arenito de Vila Velha. São rochas areníticas enormes, algumas com 40 metros de altura, de aspecto ferruginoso, avermelhado, segundo o guia devido ao óxido de ferro que reveste o arenito. Ainda segundo ele, essas rochas foram formadas na gondwana, continente único e recoberto por gelo que existiu há 340 milhões de anos. Com o deslocamento das placas tectônicas os continentes foram se separando, surgiu o Oceano Atlântico, entre a América e a África, e o degelo revelou o que jazia perene sob sua superfície. O Arenito de Vila Velha é uma dessas revelações. Tudo ao seu redor sofreu alterações devido às intempéries, e ele permaneceu ali, forte, também afetado pela água da chuva, que o esculpe paulatinamente, mas mais resistente do que o resto devido ao óxido de ferro e outros metais que o compõe.



Arenito de Vila Velha

Comparação de altura
Não quero tecer aqui meus comentários acerca do formato das rochas que formam o Arenito Vila Velha. Algumas pessoas são facilmente sugestionáveis e podem concordar que isso parece tal coisa e aquilo parece outra. O certo é que existem formas bem peculiares, como uma bota, um castelo, um camelo e uma taça, mas estas, quando relevado um olhar mais analítico, certamente lembrariam outros objetos ou animais. Em síntese, para mim, e somente para mim, não é a figura de uma ou outra rocha que encanta, mas sim a união de todas na formação de um cenário único, que talvez não possa ser visto em nenhuma outra parte do mundo. Por ser, como já frisado, suscetível à água da chuva, que se infiltra em seus poros e o desbasta, sabemos que, em um dia por vir, tudo se perderá. Vila Velha está em extinção, um processo irreversível que a extirpará em um futuro breve ou distante e que, como muitos outros processos, não podemos antever com exatidão. Enquanto isso, bromélias e outras plantas salpicam as “ruínas” do conjunto arenítico fadado a constantes e metamorfoseadores desabamentos, que a cada dia as dão novos delineios, mas sem abalar, por enquanto, suas características de vila abandonada, sua personalidade, sua aura medieval. A satisfação de terminar a trilha na taça, cartão postal do Parque Estadual de Vila Velha, e ver aquela figura que a maioria das pessoas apenas verá em imagens na internet, me trouxe uma satisfação tremenda, e ao cruzarmos um bosque no regresso ao ônibus, comentávamos entre nós que, apesar de o local ser turístico em demasia, ainda assim é um daqueles lugares comuns que se deve visitar antes de fenecer, a exemplo das Cataratas do Iguaçu, também no Estado do Paraná.

Camelo

Bota

Taça

Furna
Reembarcados no ônibus, serpenteamos pelas estradas bem asfaltadas no interior do parque em direção a duas das sete furnas presentes em seu território. Para quem não está habituado com o termo, uma furna é uma cova de formato aproximadamente cilíndrico, com paredes verticais. É, em síntese, um abismo de pequenas proporções, resultado do desabamento de um teto de arenito. Em seu fundo pode haver água, resultado do lençol freático que infiltra pelas paredes porosas, ou simplesmente uma densa mata. Essas duas, separadas por apenas alguns metros, continham água, mas a primeira, devo dizer, não era possível fotografar. Faltava um mirante elevado, por assim dizer, para que o registro se tornasse interessante. A segunda, essa sim, escancarava-se. Há nela, inclusive, um elevador belga da década de 1930, hoje desativado, no qual se descia os mais de 50m até o fundo. Dizem que consumia muito óleo diesel e graxa e, portanto, foi inviabilizado por ser contrário às prerrogativas da sustentabilidade que permeiam a política de um Parque Estadual. Coroando a rápida visita desses dois exemplos de cavernas verticais, seguimos com o ônibus para mais uma, mas que devido à grande quantidade de água passou a ser chamada de lagoa. A Lagoa Dourada, de águas translúcidas, revelava peixes que serenamente nadavam em seus meros 5m de profundidade. Meus pífios conhecimentos de piscicultura me permitiram identificar apenas o curimba. Admito que, apesar da fama, não discerni tom algum de dourado em sua superfície cristalina. Dizem os guias que tal tom se evidencia no fim do dia, com o sol poente. Algumas pessoas garantiram enxergar a cor áurea. Contudo, lembremos que o brasileiro é, devido a nossa mania de obter informações previamente digeridas, facilmente sugestionável. Que cada um tire suas próprias conclusões mediante a visualização das fotografias. Ou que vá até lá em um momento oportuno.

Plataforma de chegada do antigo elevador belga

Lagoa Dourada

Curimba
  
Furnas Gêmeas
Eram ainda 12h quando deixamos o Parque Estadual de Vila Velha. Tomara menos tempo do que deliberáramos. Instaurou-se, então, o momento bônus da incursão. Com as coordenadas de mais duas furnas, fora da abrangência do parque, e de mais duas cachoeiras, voltamos pela BR-376, localizamos um atalho, pedregosa estrada de terra, e 10km depois encontrávamos a Rodovia do Talco, a mesma do dia anterior. Passamos novamente por Passo do Pupo e, ao invés de seguirmos pelo asfalto rumo a Biscaia, adentramos uma outra insidiosa estrada de chão, mista de pedregulho, terra batida e areia, sentido sudeste. Desviando de colheitadeiras de soja chegamos ao princípio da trilha a pé para as chamadas Furnas Gêmeas. Escanteamos nossas motos e palmilhamos a curta picada até as duas covas que, dessemelhantes às de Vila Velha, são recobertas por uma opulenta mata, e não inundadas por água. São dois panelões de aproximadamente 50 metros de diâmetro cada, dispostos um ao lado do outro e separados apenas por uma ponte de pedras. A rala vegetação dos campos gerais ocupam os entornos de suas bocas, sobrevivendo no terreno pedregoso que, de tão irregular, rendeu um bom tombo ao meu camarada Thiago Lucas. Por sorte não caiu dentro de uma delas. Olhando com certa atenção encontramos uma trilha, e por ela descemos a segunda furna. O declive é íngreme e o mato denso. Como esperado, no fundo não havia água empoçada. Apenas gotículas caíam do alto, talvez provenientes de um lençol freático paralelo que se infiltra pelos “poros” do arenito, material das “paredes”. Como praticamente tudo nessa região, a relação entre água e rocha arenítica determina a disposição dos elementos. A sensação de estar no fundo da furna, contudo, determina outra coisa: a solidão. Ausência total de sons naturais. Cada passo no barro ecoa demoradamente, amplificado por uma concha acústica montada pela própria natureza. São pelos menos 30 metros de altura – ou de profundidade – para cada uma dessas gêmeas univitelinas.

Tamanho de uma das furnas em relação a um ser humano

Vegetação rala nos entornos

Interior de uma das furnas

Casa típica do sítio paranaense
Reavendo nossas motos e as recolocando na insidiosa – desculpas pela redundância – estrada de chão com curtos trechos de areia, a coqueluche dos motociclistas, descemos o vale do rio Quebra Perna (o mesmo do Buraco do Padre) por entre sítios e casebres de madeira que emanam um certo charme nostálgico, rememorando aqueles tempos em que eu visitava meus parentes maternos em outras bandas do Paraná. Dez quilômetros depois aportávamos no sítio que detém a cachoeira da Mariquinha em seus domínios. Mediante um pagamento de R$5,00 por cabeça fomos autorizados a palmilhar a trilha, em meio a uma mata densa que a luz solar não se atrevia a invadir. Por mais de 20 minutos caminhamos, e num estirão final fomos recebidos por um vistoso arco-íris, de pequena parábola, tendo uma base na água imediatamente após a cachoeira e a outra numa espécie de praia formada pela areia às margens do rio Quebra Perna. À esquerda, esplendorosa, escorria, de seus 30 metros, a cachoeira da Mariquinha, larga, portentosa. Borrachudos me atacavam vorazmente, visando principalmente minhas mãos, que a certa altura se entumesceram devido às constantes investidas. Demoraríamo-nos mais por ali se Thiago conseguisse efetivamente banhar-se nas águas da cachoeira, mas foi dissuadido logo ao primeiro contato com o congelante líquido proveniente do alto da Serra de Itaiacoca. Por mencionar tal serra, regressando ao sítio, pela outra margem, para reagruparmo-nos às nossas motos e voltar para o centro urbano de Ponta Grossa, registramos as imensas montanhas de pedra que a compõem, além logicamente do sempre presente gibão-de-couro, amante incondicional das rochas do cerrado e dos campos gerais.

Cachoeira da Mariquinha

Trilha de volta

Paisagem da Serra de Itaiacoca

Colheita da soja
De volta ao Passo do Pupo, gastamos a última hora de luz que nos restava para seguir ao leste rumo a Biscaia, povoado do qual não tínhamos informação alguma. O asfalto da Rodovia do Talco nos acompanhou até ele por um trecho sinuoso que, das raras clareiras e pontos altos, possibilitavam a vista, ao longe, da Serra de Paranapiacaba, onde se encontra a nascente do rio Ribeira de Iguape, inspiração para uma de minhas próximas aventuras pelo Vale do Ribeira. Em Biscaia, sempre mais do mesmo. Casebres de madeira rústica, um pequeno bar e muita simplicidade. Foi nele que mordiscamos algo após quase 10 horas sem comida. É engraçado como o corriqueiro ato de comer é negligenciado quando o afã de conhecer novas paisagens está em modo operante. Foi nele também que dois motociclistas, vindos de Ponta Grossa, se embasbacaram com o estado deplorável de nossas motos, a essa altura recobertas por terra e de faróis salpicados por insetos. Os lugares mais belos geralmente o são por usarem a inacessibilidade como método de defesa e evolução. Lembrei-me do clássico livro O Mundo Perdido, de Conan Doyle, que serviu inclusive de inspiração para um série televisiva de muito sucesso no fim dos anos 1990 e princípio dos 2000, no qual o escritor retrata a descoberta de uma chapada, que criam inalcançável, em pleno coração da floresta amazônica. Quando, com muita faina, o escalaram, no topo descobriram formas de vida distintas, endêmicas, e outras tantas que já haviam sido extintas em outras regiões. Guardadas as proporções, eu diria que nos campos gerais conhecemos locais acessíveis, sim, mas com certa dificuldade, e por isso ainda sustentam aquela beleza praticamente intocada pela mão humana. Foi esse pensamento que me acompanhou pela Rodovia do Talco de volta ao centro urbano de Ponta Grossa.


Imagens de Biscaia

Cachoeira do rio São Jorge: parte alta
No dia 31, após um dia e meio de ligeira e proveitosa estadia em Ponta Grossa, começamos a regressar. Faltava-nos, ainda, conhecer a cachoeira do rio São Jorge, a nordeste do centro urbano. Bem cedo localizamos uma estrada de terra que partia do povoado de Rio Verde e, passando sob um túnel ferroviário, seguimos errando pelos pedregulhos até uma outra estrada de chão, que culminou exatamente no sítio no qual se encontra a dita cachoeira. Acreditávamos ser uma queda d'água de menor porte, mas logo ao apearmos por lá, onde também funciona um camping, vimos algumas fotos que derrubaram por terra nosso pré conceito. Agora mais curiosos, e mediante o pagamento de uma taxa de R$8,00, seguimos a pé pela trilha que beiradeia o rio São Jorge, visualizando a princípio pequenas quedas de não mais de 4 metros de altura. É a chamada parte alta da cachoeira, em que o rio vem errando por um leito pedregoso, acompanhado de perto pelos campos gerais e, um pouco mais acima, por plantações de soja e suas imensas colheitadeiras. Andamos um bom trecho e, da ponta de uma bloco maciço, a cachoeira maior se revelou, bem como o cânion que a empareda. Não obstante, augurávamos uma vista frontal, e por esse motivo descemos o vale pela lateral esquerda do cânion, onde contamos com a ajuda de escadas de ferro colocadas em locais estratégicos pelos proprietários do sítio. Todo o esforço foi recompensado. A vista da queda de 43 metros, à exemplo da de Mariquinha também cindida por um minúsculo arco-íris, coroou nobremente nossa passagem pelos campos gerais de Ponta Grossa. O rio São Jorge cavou seu leito e consolidou seu curso entre paredes gigantescas, imponentes, que escondem grutas e rochas serrilhadas e adornadas por líquens avermelhados. E aqui embaixo, ao contrário da parte alta, a floresta ressurge. Mais uma vez os campos gerais reforçam suas características. Vegetação rasteira no alto; mata fechada nos vales.

Parte alta

Parte baixa

Cachoeira do rio São Jorge: vista frontal
  
Ponte sobre a Represa dos Alagados
A visita à cachoeira do rio São Jorge subtraiu-nos mais tempo do que imaginávamos. Já eram quase 12h e a visita ao Cânion Guartelá corria o risco de ser postergada para uma outra oportunidade. Vagarosamente deixamos o sítio, regressamos à estrada de terra proveniente de Rio Verde e, ao invés de volvermos a Ponta Grossa, seguimos para o leste para a região da Represa dos Alagados, da década de 1940, uma das mais antigas do Estado, portanto. A estrada ruim dificultou nossa progressão, mas rapidamente passamos por duas pontes sobre os braços de água do reservatório, onde muitos pescadores se concentravam, e subindo para o norte calhamos em Catanduvas, pertencente ao município de Carambeí que, seguindo agora para o oeste, minutos depois alcançamos, via asfalto. Estávamos de volta a PR-151, subindo com todo o fôlego do mundo para Castro numa corrida frenética contra o relógio. A distancia era curta, cerca de 40km, mas já eram passadas 13h. Na histórica Castro, a terceira cidade mais antiga do Paraná, de 1778, uma parada compulsória para abastecimento. Enquanto Luana fotografava os prédios históricos, remanescentes do século XVIII, quando Castro era a parada de tropeiros que faziam o Caminho de Sorocaba, Thiago e eu coletávamos informações sobre os caminhos que nos levariam ao Cânion Guartelá, que nesse momento decidíramos conhecer a qualquer custo. Seguimos, após localizarmos o Parque Estadual do Guartelá no mapa, para a PR-040, que margeia a escarpa esquerda do rio Iapó. Exatamente às 14:30h apeávamos na sede. Seriam, agora, mais 6km, dentre ida e volta, a pé para desfrutarmos de alguns metros dos 32km totais do sexto maior cânion do mundo e maior do Brasil.

Braço do reservatório da década de 1940

Castro
  
Trilha no PE do Guartelá
Por incrível que pareça, no Parque Estadual do Guartelá não é cobrada a entrada. A trilha para o cânion é toda em calçamento, até um sítio (nunca havia visto sítios dentro de parques), e no resto do caminho é amadeirada, suspensa, protegendo a vegetação rasteira adjacente. Devido a esses fatores imprimimos um bom ritmo de caminhada, e em pouco tempo encontrávamos um rio sem nome (ninguém soube nos dizer), que poderia ser apenas mais um afluente do rio Iapó, no fundo do vale, mas que por possuir crateras evidentes em suas águas cristalinas e ralas tornou-se um atrativo. São os chamados Panelões do Sumidouro, no qual uma pessoa mediana pode ocultar metade do corpo. Talvez tenham um metro e meio de diâmetro e noventa centímetros de profundidade. Seguindo na trilha encontramos um segundo atrativo, que o pessoal IAP deixou-nos observar apenas de longe, a cachoeira Ponte de Pedra, escorrendo chorosamente vale abaixo, vencendo o Guartelá com a ajuda da gravidade e alcançando o Iapó, o rio mor da região. A cachoeira de 200 metros foi assim denominada devido a uma passagem feita de um lado para o outro pelo incessante trabalho das águas do Lajeado do Pedregulho, que de tanto investir contra uma rocha a atravessou, formando uma ponte natural. O urubu-de-cabeça-vermelha, feito um guardião alado, sobrevoava sem produzir som algum (é mudo, afinal) o Guartelá, nesse momento já bem visível, numa parte em que se encontra com um morro de 1000m de altitude. De um mirante de madeira, na parte final da trilha, obtém-se uma vista ainda mais nítida, em que o cânion caprichosamente contorno o relevo, curvando-se em um meandro e sumindo no horizonte rumo ao Tibagi. O curto tempo de que dispúnhamos foi suficiente apenas para esse acepipe, mas eu diria que foi o desfecho perfeito para nossa estadia na região dos campos gerais do Paraná.

Panelões do Sumidouro

Cachoeira Ponte de Pedra

Cânion Guartelá ou Cânion do Rio Iapó

Até breve, meu Paraná
Reagrupados às nossas motos, e de volta, agora em sentido oposto, a PR-040, retornarmos a Castro e, como não poderia ser diferente devido ao escasso tempo, aceleramos pela PR-151 a caminho de casa. Sempre procuro fazer uma rota de regresso que destoe da rota de ida, mas já eram passadas 17h e estávamos todos assolados pela lassidão devido a longas caminhadas por vales e solavancos por estradas de chão irregulares. Cruzamos Jaguariaíva, Sengés e, passando o Vale do Itararé, encontramos o Estado de São Paulo após dois dias de separação. Fomos deixando para trás, lentamente em função do abraço da noite, os municípios de Itararé, Itapeva e Capão Bonito, apeando pela última vez na incursão em Itapetininga. Num último estirão entrecortamos Cerquilho, Tietê, Saltinho e Piracicaba, ganhando a SP-304 para percorrer os derradeiros 30km de uma viagem de três dias que uniu a contemplação do belo e o desgaste do físico. Na Praia Azul, em Americana, quando o odômetro parcial de minha moto sentenciava 1400km rodados, despedi-me de meus companheiros e, solitário, enfrentei mais alguns quilômetros da Anhanguera até, definitivamente, reencontrar o Vale do Sítio Anhanguera, defronte ao qual resido. No fim das contas, apesar da fatigante empreitada, senti-me bem em trazer memórias do Estado no qual meu avô materno escreveu parte de sua História e que, por causa dele, acabo também escrevendo a minha, embora a vida cosmopolita que levo me obrigue apenas a ingerir doses homeopáticas do Paraná, meu querido Paraná. 
“Você não tem ganas de conhecer o que está aqui, ao redor de sua cidade?”, perguntou o viajante já exaurido de forças, mas ainda ávido por desfrutar de mais um belo cenário antes de partir. “Talvez eu tivesse, meu caro paulista, se o mesmo local que guarda tamanhas belezas não fosse o mesmo em que sou explorado”. Quando se é castigado defronte o belo, a beleza se torna um martírio, um símbolo de sofreguidão, uma lembrança que talvez seja melhor olvidar.


Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.


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E abaixo, um blues inspirado pelas formações de Vila Velha e pelo desenho imponente do Cânion Guartelá.

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