sábado, 23 de março de 2013

Circuito das Frutas – 09 de março de 2013


Possibilidades de ação se esgotam? E quanto aos caminhos a se seguir? Muitos diriam que ao nosso redor os cenários são sempre os mesmos, assim como as pessoas e seus assaz previsíveis “modus operandi”. Há, logicamente, aqueles que intentam enxergar a sociedade de formas alternativas, mas estes amiúde se embasam na própria depressão, na rebeldia, no corporativismo e em visões deturpadas pelo uso de substâncias entorpecentes, rascunhando em suas mentes uma realidade que não é verdadeira, e sim uma ilusão que não pode ser materializada e desfrutada em sã consciência. Portanto, não pode ser vivida, e sim imaginada, uma quimera. Passada a euforia, os muros parecem fechar-se novamente, numa claustrofobia que seres humanos frágeis não conseguem contornar. Quando não se vê as saídas, como nesse caso, é porque, para começo de conversa, os conceitos que temos de mundo são equivocados. Sociedade não é mundo; sociedade é sociedade, é um naco do produto total, e julgá-la com o peso de um planeta inteiro me parece um pensamento errôneo. Uma sociedade tem seus defeitos, seja ela liberalista, socialista ou anarquista, e o único poder que detém é o de possibilitar o caos na mente de seus integrantes. Sabendo que enfrentaremos problemas dessa ordem em noventa por cento do lugares em que porventura estejamos, basta habituar-se com os contratempos e mergulhar mais profundamente nos espaços aos quais a sociedade parece não conseguir estender efetivamente seus tentáculos, abstendo-nos de seus antagonismos de tempos em tempos. Apartar-se da “guerra psicológica urbana” não é fugir. É questão de manter a sanidade. É questão de realmente querer intimizar-se com o mundo em sua mais crua e legítima essência, sem a demasiada interferência de grandes e corporativistas conglomerados de pessoas. A companhia de um ser humano não é tão necessário ou onipresente como se pensa. É, geralmente, superestimada.
Qual é a chave para a vida?
Lembro-me, certa vez, de uma atendente de um consultório odontológico que, ao pedir alguns dados a um novo paciente para o preenchimento de uma ficha, indagou: “o que você é”? “Sou um ser humano”, obtemperou o cidadão. Eu, normalmente indiferente a diálogos alheios e muito interessado em um livro de Julio Verne que folheava no momento, atentei meus ouvidos à querela. A moça, consternada, tirou os olhos do papel e reformulou a pergunta, fitando desafiadoramente os olhos do incauto: “o que você faz”? Sabendo ser uma falta de tato absurda, o infeliz respondeu com uma outra pergunta: “Quantas linhas você tem aí”? Visivelmente irritada, a mulher inspirou demoradamente, mas compreendeu o ponto de vista do ser que carregava, a tiracolo, um livro que posteriormente mudaria minha forma de enxergar a existência humana. “Moço, qual é a sua profissão”? Respondeu o satisfeito e didático jovem: “Sou professor, moça, apenas mais um professor”. Essa poderia ser somente mais uma estória das muitas que já testemunhei entre gente que fala a mesma língua e não se entende, mas hoje a utilizo como exemplo para ilustrar como nos reduzimos como seres dito pensantes. Podemos ser o que quisermos, mas nos atemos ao papel que a sociedade espera que desempenhemos: sermos unicamente mão-de-obra. O sujeito quis demonstrar que a profissão, sozinha, não o completa, não o explica pois, antes de ser professor, ele atua em outras áreas, que não necessariamente são seu ganha-pão. Pode ser um leitor, no cair da noite; um fotógrafo, quando decide ir ao campo; um ornitólogo, quando observa as aves; um pai, quando está com um filho; e um filho, quando está com a mãe. Enfim, podemos ser o que nossas aspirações nos suplicam e livrar-nos do estigma e do rótulo de engenheiro, professor, coletor, servente, etc. Acabei-me de recordar que, sempre que posso, sou um motociclista apaixonado pelo Brasil e desbravador principalmente de suas áreas verdes. Lembrei-me também que tenho uma viagem a relatar. Atenhamo-nos a ela, portanto.
A propósito, o homem carregava consigo os Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx.
Companheiros de aventura
Admito que já fui um grande admirador de bicicletas. Um dia, porém, roubaram uma de mim. Era vermelha e branca, com rodas de náilon de um vermelho no mesmo tom que o do quadro, embora mais esbranquiçado devido ao tempo, que tudo desbota. Tive outras depois, mas nenhuma foi capaz de reavivar aquela jovial e simples alegria de ir, pedalando, à padaria Bom-Gosto ou ao mercadinho Pavan, nos quais comprava pães para a minha mãe e o extinto chocolate Surpresa para mim, quando tinhas meus 10 anos e ainda morava em Santa Bárbara d'Oeste. Malgrado esse trauma, acompanho muito proximamente o aumento do número de ciclistas em minha região, um fenômeno que, inclusive, atingiu pessoas muito próximas a mim, como meu pai, ex-motociclista e atual ciclista. Devido a isso, sempre procuro me inteirar sobre as trilhas de mountain-bike na região de Americana, visto que essas comumente levam a lugares ainda desconhecidos, de difícil acesso e, portanto, apartados dos conglomerados urbanos citados no prólogo dessa postagem. Nem sempre consigo, de moto, trilhar os mesmos caminhos, mas na grande maioria da vezes acabo voltando para casa com imagens de locais que nem sonhava que existiam. Foi em uma dessas pesquisas de trilhas de bicicleta que coloquei meus olhos no site Aventura a Dois, obra dos aventureiros Renato e Marianna, que sobre duas rodas e sem a ajuda de qualquer motor trilharam a zona rural do chamado Circuito das Frutas, que compreende, dentre outros municípios, Valinhos, Jundiaí, Itupeva e Itatiba. O que me deixou um pouco receoso quanto a essa aventura foi a parte inicial do relato do casal, quando o mesmo prerrogou ser este um caminho praticável apenas a pé ou de bicicleta. Luana Romero, Luiz Paulo Bombarda Blanes e eu arrostaríamos, portanto, o incerto, pois nem sempre uma motocicleta é capaz de passar por trilhas ciclísticas, como já foi dito.

Zona rural de Valinhos

Figueiras
Partimos de Americana às 7:30h de um sábado sufocante desde os primeiros raios do sol nascente. No planejamento decidimos começar pela zona rural de Valinhos, visto ser essa a cidade mais próxima da Praia Azul, bairro do qual saímos diretamente para a Via Anhanguera, sentido Campinas. Nela permanecemos por cerca de 40km, deixando Campinas para trás e ulteriormente enviesando-nos pelo último retorno antes do pedágio de Valinhos. Passamos por algumas pequenas fábricas e, sentido sul, pilotamos mais alguns quilômetros, ainda por asfalto, até o início da área rural da cidade mencionada. Estávamos, agora oficialmente, nos domínios do Circuito das Frutas, e a dominância, aqui, é toda do figo. As figueiras, de caule curto, calibroso e retorcido, lado a lado, ocupam praticamente todos os pequenos montes que ladeiam a estrada, a essa altura já totalmente despavimentada. As mais novas, com o fruto ainda verde, apresentavam uma folhagem também esverdeada, enquanto as mais velhas, distantes, no alto dos morros, mostravam-se mais acinzentadas, principalmente em suas copas. Alguns casebres, moradias dos produtores, saltavam timidamente aos nossos olhos. Nada com muita pompa. Até mesmo a igrejinha local, imediatamente após uma singela ponte de madeira sobre um ribeirão de águas de potabilidade duvidosa, denotava ser esse um ermo simples, com os trejeitos que a vida no sítio exige. Logicamente essas terras devem pertencer a grandes fazendas. Muitas são arrendadas e comumente o retorno financeiro de todos os produtores e trabalhadores rurais não é condizente com o esforço que empregam na lavoura, mas mesmo assim perpetuam, há décadas, a tradição frutífera da região, contribuindo, em consequência, para o abastecimento em nível nacional (quiçá mundial) desse gênero alimentício tão importante para a manutenção da saúde humana.

Figos

Capela dos produtores rurais no sul de Valinhos

"É um ermo simples, com os trejeitos que a vida no sítio exige"

Aclive perigoso
Atravessamos, passados 500m da capela, um agrupamento de cinco moradias, um pequeno lamaçal e, para a nossa surpresa, fomos obrigados a estancar. Atônitos, testemunhávamos o desaparecimento da estrada de terra e o início de uma trilha íngreme, não mais espessa que alguns centímetros, uma cicatriz em meio à quiçaça que a natureza augurava reaver. Para piorar a situação, muitas pedras soltas, gigantescas, umas inteiriças e outras esfarelando-se, impossibilitavam uma subida rápida das motocicletas sem nos colocar em risco. Luiz e eu fizemos um breve reconhecimento, subindo um trecho de cem metros a pé para estudar o terreno e concluir se arriscaríamos uma ascensão ou se desistiríamos de vez da empreitada. É aí que a bicicleta tem suas vantagens. Certamente seria mais fácil empurrá-la morro acima. Não obstante, estávamos sobre motocicletas, e erguê-las sobre os ombros não era uma opção. Optamos por empurrá-las em dois, uma por vez, primeiro a minha depois a de Luiz. Todo o esforço empregado, somado ao forte calor, exauriu momentaneamente nossas energias, mas vencêramos o primeiro empecilho. Como se não bastasse a lassidão, no alto do morro o mato fechou-se quase que completamente numa braquiária difícil de derrocar até mesmo a pé. Com um pouco de paciência nossas motos foram abrindo caminho. Caso não estivéssemos trajados com mangas longas inevitavelmente escoriaríamos nossos braços e antebraços. Malgrado toda essa faina, ilesos encontramos uma outra estrada, de terra batida, e nela prosseguimos, sacolejando, sempre sentido sul.

No fim da subida, a trilha se fechou

Parte da estrada rural coberta pelo matagal

Abrindo caminho em meio à quiçaça

Goiabal
Topamos com uma vila, uma escola e um portão semiaberto. Consultamos os mapas e, aparentemente, teríamos que adentrar esse portão. Foi o que fizemos. Estávamos em propriedade particular, mas surpreendentemente ninguém nos repreendera. Encontramos o fim da estrada menos de 200 metros depois, quando nos vimos envolvidos por uma vasta plantação de goiabas. A segunda fruta do circuito mostrava suas caras. É, inquestionavelmente, a minha preferida, mas me abstive de furtá-las por tecnicamente já estarmos fazendo algo ilegal. Restou-nos regressar ao portão e localizar uma outra estrada, essa municipal, que continuou nos direcionando ao sul entre eucaliptos e represas de fazendas antigas cujas placas “Não Entre. Propriedade Particular” nos instavam a permanecer do lado de fora, na via pública. Na reta final, atravessando uma parcialmente erodida ponte sobre o judiado rio Capivari, avistamos a Rodovia dos Bandeirantes. É uma visão da principal via de ligação da Região Metropolitana de Campinas com a capital São Paulo com a qual não estamos habituados. Pra dizer a verdade, nem chegamos a ver seu asfalto dividido em três faixas, pois a cruzamos sob um pontilhão e acessamos uma outra estrada de terra, do outro lado, já em território de Itupeva. O supracitado rio Jundiaí divide naturalmente Valinhos e Itupeva, diga-se de passagem. Passado o primeiro quilômetro nessa nova via fomos surpreendidos pela figura de uma casarão colonial, à beira da estrada, muito bem preservado. Infelizmente ninguém passava por ali no momento e até hoje não sabemos qual fazenda o mantém, mas as fotos testemunham: está impecável. Muito bem cuidado, pintado em amarelo escuro e de rodapés e cercas próximas tomadas por trepadeiras de tons avermelhados. É como voltar centúrias no tempo.

Goiabas

Sob a Rodovia dos Bandeirantes, entre Itupeva e Valinhos

Casarão colonial na zona rural de Itupeva

Igreja na Fazenda Foga
Deixado o casarão colonial, tocamos em frente e apeamos na Fazenda Foga, um ícone da zona rural de Itupeva. Felizmente hoje ela é menos turística do que a alguns anos atrás, quando seu restaurante era ponto de encontro de famílias e trilheiros abastados nos fins de semana. Hoje o restaurante está inativo, mas o casarão que o abrigava, de mais de 270 anos, continua lá, mesmo que o inexorável tempo e a falta de zelo exponham o barro e suas fundações de madeira como grandes machucados em seu desenho original. A taipa de pilão requer um cuidado todo especial, e como o casarão não tem sido muito utilizado, acredito que o zelo necessário não vem sendo empregado. Malgrado esses problemas, é uma construção imponente, de porta e janelas de espessa madeira. Uma pesada e trabalhada chave de bronze cinde a entrada. Nos arredores há algumas casas do pessoal que mora e trabalha na fazenda, e infelizmente em muitas delas presenciamos algo terrível. Espécimes e mais espécimes de aves nativas engaioladas, confinadas apesar de todo o verde que as circundam. É como estar a dois dedos de distância da liberdade e, na iminência de alcançá-la, sentir-se repentinamente desmembrado e impossibilitado de dar o passo decisivo. Fora das gaiolas conseguimos fotografar apenas anus-brancos, presentes em praticamente todo o território brasileiro. Meu mal-estar foi tamanho que instei meus companheiros a debandar o mais rapidamente possível, registrando, a caminho da cerca de saída da Fazenda Foga, a igreja católica na qual seus moradores “exercem” sua fé.

Casarão da Fazenda Foga

Anus-brancos

Quase três séculos de História

Biguatinga-macho
De volta à estrada, e sempre sentido sul, passamos mais uma vez pelo casarão colonial e bordejamos uma plantação de milho, subindo um leve morro e culminando numa área residencial fechada. Beiradeando seus muros altos e posteriormente eucaliptos, chegamos a um pequeno vale onde se encontra o lago da Fazenda Santa Gertrudes. É um local bucólico protegido por firmes mourões de pedra, como nunca havia visto antes. Aliás, pedras são abundantes na região, e seguindo as indicações deixamos momentaneamente o território rural de Itupeva e fomos pendendo para o oeste, sentido Indaiatuba. Avistávamos, a sudeste, a Serra do Japi, e a leste, os edifícios de Indaiatuba. Porém, apesar de estarmos em território indaiatubense, não acessamos sua parte urbana, permanecendo na zona rural e entrecortando fazendas salpicadas de rochas arredondadas e de gado e equídeos, estes suplementados por pasto e água abundantes. Seguimos pela Fazenda Capim Fino e seus casarões abandonados e, paralelos à rodovia Santos Dummont, rumamos sentido sul em direção ao rio Jundiaí, almejando seguir seu curso até o povoado do Quilombo, de volta a Itupeva. Foi o que aconteceu poucos quilômetros depois, ao cairmos para o leste passada uma ponte sobre o rio, onde biguatingas e garças-brancas resistem bravamente à poluição. A partir daí tivemos o esforço de acompanhar a ampla estrada, sempre com o rio a nossa esquerda, um caminho antigamente feito pelos trilhos ferroviários da linha Ituana, isso lá pelos arredores de 1900.

Fazenda Santa Gertrudes

O gado e os equídeos convivem com enormes rochas

Rio Jundiaí

Povoado do Quilombo
A estrada que beiradeia o rio Jundiaí nos guiou até o povoado do Quilombo, um local pouco movimentado, afastado porém equidistante dos centros urbanos de Indaiatuba e Itupeva, apesar de pertencer ao último. Há uma antiga estação, construída em 1873 e pertencente a linha supracitada, bem como um armazém do começo do século que atualmente alberga uma igreja evangélica. Mais um caso de desrespeito com a nossa história, e digo isso não por se tratar de uma igreja, em si. Se fosse uma mercearia ou um açougue eu argumentaria da mesma forma. Digo porque esses espaços históricos deveriam ser preservados e utilizados para a promoção da cultura e conscientização de um povo para com as suas próprias origens. Em Santa Rosa de Viterbo, por exemplo, restaurou-se a antiga estação para servir aos propósitos de uma escola musical municipal. Essa sim é uma atitude louvável do poder público. Saindo do Quilombo, ainda no rastro do Jundiaí, visualizamos uma barragem e as ruínas de uma antiga hidrelétrica. Nossos olhos, acostumados a procurar coisas diminutas no meio do matagal, mal puderam identificar o pequeno degrau por onde a água poluída do Jundiaí salta para continuar a sua sina rumo ao Tietê. Uma coluna de pedras e uma mureta no lado norte do leito completavam o panorama. Certamente é, ou foi, uma construção do começo do século XX, portanto uma das mais antigas do Brasil, provavelmente abastecedora de alguma fazenda das cercanias. Não temos informações concretas a seu respeito. Tudo são suposições e, melancolicamente, arcamos com o negligenciamento de nossa História.

Armazém da antiga estação do Quilombo

Ruínas de uma hidrelétrica no rio Jundiaí

Estação de Montserrat
Enfim, após vários quilômetros de incertas estradas rurais, reencontramos o asfalto e um grande conglomerado urbano: Itupeva. Antes, contudo, uma breve parada em uma outra antiga estação da mesma supracitada Ituana: Montserrat. Está relativamente bem preservada, apesar de desativada desde a década de 1970. Trilhos não existem mais. Maiores informações sobre ela apenas no bem-vindo e utilíssimo site Estações Ferroviárias, idealizado por e para amantes das ferrovias brasileiras. Pesquisando-o descobri, inclusive, menções a duas barragens no rio Jundiaí que alimentavam a Fazenda Ermida, a mesma que, para escoar a produção de café, requisitou a construção da estação e de um ramal férreo no fim do século XIX. Seria uma delas a que fotografáramos momentos antes? A certeza é quase absoluta. Especulando, partimos de Montserrat com um sol causticante sobre nossas cabeças. De tão luzente deve ter ofuscado nosso senso de direção. Estávamos, agora, perdidos em Itupeva entre 45000 pessoas. Foi necessária mais de meia hora para que nos colocássemos de volta no caminho correto, que consistia no acesso de uma estrada de chão que passava, dentre outros atrativos, pelo apiário Santa Emília, cruzando posteriormente a SP300 e margeando os contrafortes da Serra do Japi, já em Jundiaí, onde os pneus de nossas motos se atritaram novamente com o asfalto. Sendo um sábado esperávamos menos movimento no grande centro urbano, mas enquanto passávamos sob a Bandeirantes e a Anhanguera, ganhando a Avenida dos Ferroviários e subindo para o norte, uma agoniante claustrofobia nos assolou. Hora de voltar para a terra e exercer nossa misantropia.

Serra do Japi, em Jundiaí

Capela de Nossa Senhora da Aparecida, Pico Alto, Itatiba

Construção de 1899
Saindo de Jundiaí tivemos que tomar uma chateante decisão: eliminar Jarinu do planejamento original. O tempo já estava avançado, e como em nossa rota não surgia nada de realmente emocionante optamos por subir até Itatiba pela SP360. De Itatiba rumamos ao norte via SP063, sentido Bragança Paulista. Cruzamos a rodovia Dom Pedro, por baixo, e no chamado Bairro da Moenda encontramos a estrada de terra que nos levaria ao alto da Serra dos Carneiros. Vale dizer que, mesmo estando no Circuito das Frutas, já não as víamos há muito tempo. Fomos surpreendidos, logo no primeiro quilômetro nessa nova via rural, pelo surgimento de uma capela azulada num bairro denominado Pico Alto. Tratava-se da Capela de Nossa Senhora da Aparecida, que em um triângulo branco sobre seu frontispício exibia o ano de sua construção: 1899. É uma construção centenária e que logicamente deve ter sofrido muitas reformas e mutações ao longo das décadas. A partir dela se iniciou a subida da Serra dos Carneiros, que nos levou a uma altitude ligeiramente superior aos 1000 metros, o suficiente para vermos, no horizonte, a leste, a cidade de Bragança Paulista, a Represa de Bragança e as montanhas que constituem o final definitivo da Serra da Mantiqueira. Acredito que tenha sido o ponto mais elevado da viagem e, sem sombra de dúvidas, o que mais me apeteceu. Tenho a certeza de que meus companheiros sentiram o mesmo. Descemos, bestificados com a visão, para Morungaba, onde se principiaria a derradeira fração de nossa rota pelo Circuito das Frutas.

No alto da Serra dos Carneiros

Vista de Bragança Paulista e da Serra da Mantiqueira

Estrada para Girolândia
Até gostaríamos de explorar mais pormenorizadamente a zona rural de Morungaba, mas em um certo ponto do caminho, após subir e descer por pedregosas estradas, deparamo-nos com uma mata fechada que impediu o avanço de nossas motocicletas. De bicicleta não teríamos problemas. Demos meia volta e, com muito custo, localizamos a SP360 e a Estação de Tratamento de Água de Morungaba, de onde partia a estrada de terra para a Fazenda Girolândia. Foi, sem sombra de dúvidas, a estrada mais difícil dentre todas. Pilotar em meio aos eucaliptos requer um cirúrgico cuidado. Muito barro, áreas em processo erosivo, crateras com bordas tão lisas e atrativas – literalmente para a depressão – quanto um aforisma de Nietzsche. Adicione-se a esse ambiente a chuva que já caía ao sul e ameaçava maximizar seu raio de ação, desabando sobre nós que, a 10km/h, penávamos para vencer os poucos metros que nos restavam até o próximo escopo. Afortunadamente chegamos sãos e salvos – e secos – à sede da Fazenda Girolândia, repousando à beira de seu lago de grandes dimensões, deixando os frangos d'água e os gansos ressabiados com a nossa presença. O carrapateiro, um falconídeo comum nas zonas rurais de São Paulo e Minas Gerais, observava nosso descanso de longe, acocorado sobre os postes de madeira e cercas brancas que ladeiam a represa. É um local no qual nos demoramos muito, primeiro devido ao garbo, e segundo por propiciar uma paz imensurável. O zéfiro morno provocava pequenas ondas na água e chacoalhava a vegetação rasteira na margem em que estávamos, e os eucaliptos, na margem oposta, reverberando os sons que, na cidade, passam despercebidos em meio ao caos e à premência do cumprimento de nossas obrigações. E, incrivelmente, não víamos sequer uma pessoa há mais de uma hora.

Fazenda Girolândia

Vista total do lago

Carrapateiro

Rio Atibaia
Da Fazenda Girolândia em diante podemos classificar como “o regresso”. Cruzamos mais uma vez com a rodovia Dom Pedro, por baixo, e adentramos mais uma vez o território de Itatiba ao atravessarmos uma ponte sobre o rio Atibaia, de águas amarronzadas e caudalosas devido à forte chuva que caíra momentos antes. O asfalto nos acompanhou até o centro da cidade, obrigando-nos a vencer uma área de alagamento de cerca de 100 metros que fez o que a chuva até então não conseguira, atingir-nos e encharcar-nos. Fomos nos secando ao vento, naturalmente, enquanto acelerávamos pelas imediações da Fazenda Vista Linda e por imensas plantações de caqui. Enfim reencontrávamos uma fruta no dito Circuito das Frutas. Alcançamos a Estrada Velha Valinhos-Itatiba e, em seguida, localizamos a última estrada de terra da incursão, que por entre haras e plantações de uva nos despejou diretamente na SP063. Nela pilotamos sentido Louveira, a qual alcançamos 10km depois. Chegava ao fim, juntamente com nossas energias, uma cruzada por incontáveis cenários urbanos e rurais do interior paulista, pontilhados por frutas de todos os tipos e sabores, todas adocicadas pela cooperação de forças entre a terra, o sol, a água e o homem. No retorno em definitivo, partindo da Igreja de São Judas, em Louveira, até a Praia Azul, em Americana, amargamos, agora sem escapatória, uma chuva torrencial que, feito o caqui colhido no pé e provado inadvertidamente, despertou a priori um sentimento de repulsa, mas a posteriori a sensação de que, mesmo que façamos tudo o que bem entendemos, ainda estamos subordinados a poderes maiores que os nossos e independentes de nossas vontades, como as intempéries. Por fim, foram 316km de aventura por uma região que, apesar de deter uma aura turística, não é de fácil trânsito. Suas estradas não são, nem de perto, receptivas. Mas, como de todos os lugares em que estive, alguma lembrança boa levei, e desse não internalizei uma imagem ou um causo em si, mas a sensação de estar sozinho, isolado da sociedade, mesmo que por alguns instantes. Mesmo que muito perto de minha casa.

Caquis

Plantação de caqui em Itatiba

Igreja de São Judas, em Louveira

Enquanto uns tentam explicar a alma, o espírito, o paraíso, o inferno etc, outros ousam compreender aquela que deveria ser o escopo da metafísica: a vida. É dita consciente, mas a nossa plena incapacidade em dar-lhe um sentido nos devolvem ao estado inconsciente, no sentido de não sermos assim tão pensantes a ponto de explicar o porque perambulamos nesse globo gigantesco. Em suma, acredito que nossas vidas são finitas e que nunca houve um sentido, um porquê de estarmos aqui. Dividimos com outras espécies o mesmo planeta e todas elas compatilham o mesmo propósito: subsistir da forma que as convêm. Talvez, ao questionarmos “por que estamos aqui?” estejamos fazendo a pergunta errada. O mais correto seria “o que fazer para tornar o aqui menos agoniante?”. De qualquer forma, ambos são questionamentos que, de tão complexos, podem soar retóricos. Viver é uma arte para poucos, e geralmente para aqueles poucos que não têm a didática para disseminar seus métodos.


Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.
 
Reitero que boa parte de nossa rota foi extraída dos mapas de Renato e Marianna, idealizadores do site Aventura a Dois. Agradecemos enormemente ao casal aventureiro.

E abaixo, um blues com ares de roça composto especialmente para as zonas rurais de Valinhos, Itupeva, Jundiaí, Itatiba e Morungaba. Em singelos acordes Luiz Paulo Blanes e eu expressamos musicalmente nossa gratidão por estarmos envoltos por terras detentoras de inúmeras belezas e surpresas.