Os caminhos que trilho há muito foram trilhados pelos pés de outrem. Não sou nativo de todas as terras, mas o solo diversificado do meu país me aceita de prontidão ao meu iminente contato, seja onde for. Esse sentimento de receptividade, para quem se priva do benéfico hábito de viajar, amiúde não é perceptível, eu sei. Muitas vezes a progressão é retardada pelas pedras graníticas do caminho, pela força da ação contrária do vento ou pelas lesões musculares causadas pelas incongruências do terreno. Para quem explora com o intuito de usufruir mais substancialmente do mundo que palmilhamos, contudo, os percalços acabam se tornando objetos de boquiaberta apreciação ao invés de apenas desaceleradores ou destruidores do processo de conhecimento. Sentir-se humano é mais do galgar a perfeição profissional, a plenitude sentimental ou obter a aprovação máxima de outros seres humanos no campo ideológico. Ser humano é, primordialmente, reduzir-se à essência de nossos antepassados da cadeia evolutiva. É (re) interagir com um mundo que, em tempos remotos, nos tinha apenas como mais um elemento constituinte da cadeia alimentar, em pé de igualdade com outros seres vivos que, por questões darwinistas, não chegaram a alcançar o mesmo desenvolvimento cerebral que o nosso. É reaver nossa intimidade com algo que acreditamos ser inferior, mas que na verdade deveria ser simbiótico com o nosso modo de vida.
Companheiros de estrada
Minas Gerais suplicava pela nossa visita. O Estado mais próximo de onde resido, e muito aclamado pelo relevo predominantemente acidentado, carecia de uma curta incursão levada a cabo pelo séquito de motociclistas cujo único paradigma é deixar a zona de conforto, explorar e conhecer, mesmo num domingo. Rodrigo Costa Gil e eu, pesquisando atrativos mineiros que somassem pouco gasto de capital a doses cavalares de aventura e belezas cênicas, concluímos que o Pico da Forquilha, desconhecida paragem da zona rural de nossa bem conhecida Jacutinga, seria o ermo que atenderia a ambos os prerrequisitos. Luana Romero, que sempre me vê partir solitário para longas viagens, poderia também me acompanhar nesta empreitada. Tudo estava, então, devidamente esquematizado. Nenhuma bagagem, dinheiro escasso e o ensejo perfeito para desambientar um dia de seu senso comum, daquele pseudo lazer letárgico, que desumaniza o indivíduo, relegando-o a um sofá defronte a uma televisão que não vomita nada além de aldrabices inutilizáveis para a vida. Logicamente não há problema algum em ver o tempo passar sem exercer ação. Muitos anseiam apenas por isso, como se fosse uma recompensa pelo árduo trabalho do decorrer da semana. Para mim, entretanto, soa como um desperdício de um tempo de vida que nem é assim tão longo. Simplesmente não sou capaz de me curvar às modernas drogas eletroeletrônicas que intentam nos enclausurar em nossos próprios domicílios. Prefiro abrir a porta, estudar caminhos e dar uma sentido mais natural e menos artificial à tão angustiante existência capitalista a que estamos fadados.
A lua do amanhecer de 05 de agosto de 2012
Gralha-cancan
Dez doze avos de uma resplandecente lua permeavam o céu das 5 da manhã de um congelante 05 de agosto. Momento de registrar a primeira foto do dia e encher os garrafões de água. Afinal, planejávamos não somente pilotar nossas motos, mas também caminhar pela crista da Serra da Forquilha. Minha sonolência digladiava com a promessa de um dia repleto de visões estonteantes. No dualismo dessa briga interna deixei minha residência, acessando a Anhanguera em direção ao Bairro Praia Azul, em Americana. Nele Luana Romero, também sonolenta e camuflada sob camadas e mais camadas de roupa, devido ao frio, me aguardava. Unidos, volvemos a Anhanguera e apeamos no controverso portal de entrada de Americana, onde por dez minutos aguardamos a chegada de Rodrigo, que vinha de Campinas. Neste ínterim observamos o constante duelo entre gralhas cancans e bem-te-vis, as primeiras saqueando os ninhos das segundas à procura de alimento. Com a trupe formada, continuamos pela Anhanguera, sobrepassando o Rio Piracicaba e nos enviesando pela rodovia que nos direcionaria a Cosmópolis. Os canaviais eram uma ingrata companhia, principalmente para um senhor socialmente vestido que ligava nervosamente para alguém nas proximidade de seu carro vermelho, que jazia capotado entre os pés de cana-de-açúcar. Em pouco tempo, mesmo com o atraso proporcionado pelos treminhões, alcançamos o trevo de acesso a SP332, e entramos em direção a Paulínia. Com a pequena Represa de Pirapitingui ao nosso lado direito, aceleramos pelo asfalto até nos depararmos com uma entrada para uma estrada de terra paralela ao Rio Jaguari.
Cristo da Fazenda Quilombo, em Cosmópolis
Fazenda Quilombo
Estrada do Cristo: este é o nome pelo qual essa estrada é popularmente conhecida. Numa toada agora mais vagarosa, já que o solo arenoso dos canaviais de cosmopolense não nos permite grandes ganhos de velocidade, fomos avançando pelas poucas residências locais, sempre sentido norte, com os carrapateiros e os girassóis despontando timidamente aqui e acolá. O excesso de pedras nas proximidades da Fazenda Quilombo insistia em querer nos levar ao chão, mas superamos este engodo e chegamos ao pé do Morro do Cristo, estátua religiosa construída pelos próprios donos da fazenda em que foi erguido. Em muitas ocasiões passei por esse ermo e sempre encontrei os portões que permitem o acesso ao monumento fechados. Desta feita, contudo, tivemos sorte, pois os mesmos, abertos, nos aguardavam. Ascendemos por um carcomido asfalto até as escadarias do Javé petrificado. Com cinco ou seis metros de altura, não chega a ser imponente como o de Poços de Caldas ou o do Corcovado, mas acredito que não era a intenção dos fazendeiros bater algum recorde mundial em altura de Cristo. É um simbólico agradecimento ao ente que, assim creem, lhe oportunizou a dádiva da terra. A fazenda, vista do morro, é realmente linda. Um homem pescava no lago, que por sua vez refletia os altos coqueiros da estrada de entrada dos barracões, onde certamente um grande maquinário é guardado; gansos grasnavam nos paralelamente a um filete de água canalizada de um riacho próximo; o gado branco pastava calmamente, confundindo-se às vezes com a cerca igualmente branca que rodeia todo o perímetro da sede. As carijós corujas-buraqueiras sobre os mourões espreitavam com seus arregalados olhos amarelos. Estávamos próximos demais de seus buracos. Era hora de zarpar dali.
Coruja-buraqueira
Praça dos Pioneiros, em Holambra
Deixando as cercanias da Fazenda Quilombo, território de Cosmópolis, acessamos o primeiro pedaço de asfalto que vimos: a Estrada do Fundão. Recebe esse nome por terminar realmente nos fundos da cidade de Holambra. Há estufas durante toda sua extensão, onde são cultivadas as plantas e flores tão cultuadas pelos turistas que visitam essa cidade de tradições holandesas. Por um breve momento também nos encantamos com sua beleza produzida a partir das joias da flora, mas com um empurrão da força criativa da mão humana. Rodrigo precisou ajeitar algumas coisas em sua motocicleta e, enquanto eu Luana esperávamos, passeamos pela Praça do Pioneiros, onde uma carroça e outras peças esculpidas em madeira rústica enfeitavam os canteiros bem aparados desse município de apenas 3000 habitantes que, por ter incontáveis áreas verdes, deve ser um ótimo local para que jardineiros sejam incitados a externar todas as suas habilidades. Além disso, a praça nos ofereceu um mapa detalhado de outros atrativos próximos, e julgamos que o mais interessante dentre todos eles seria um moinho de vento construído recentemente, no ano de 2008. Algumas quadra depois a enorme sombra provocada pelos seus 38 metros de altura nos abrigava. Tem a mesma estatura do Cristo Redentor carioca, no Corcovado. É, portanto, onipresente no cenário. É uma cópia, tanto estética quanto funcional, idêntica aos moinhos holandeses, com pás que, movidas pelo vento, mói grãos. Uma escultura colorida de um holandês entalhando o próprio calçado, de mais de 3 metros de altura, completa o cenário alusivo aos Países Baixos. Enquanto nos distanciávamos dali, contornando um grande lago e trespassando o enorme portal da cidade, imaginava se moradores, a maioria descendentes dos primeiros holandeses que “colonizaram” Holambra, realmente tinham esse pedaço de Brasil como extensão de sua terra natal.
Moinho holandês
PCH Mogi Guaçu
De Holambra partimos para Mogi Mirim pela SP340, a via mais rápida possível para esse destino. Nada de interessante até atravessarmos a ponte sobre o Rio Mogi Guaçu e adentrarmos a cidade de Mogi Guaçu, homônima ao rio, que naturalmente faz a divisão de território entre as duas cidades. Apesar de em alguns pontos não podermos ver as barrentas águas do judiado rio, fomos na maior parte do caminho margeando-o, até que em um determinado momento o asfalto nos apartou de vez de seu leito. Isso geralmente acontece quando se atinge as proximidades de uma usina hidrelétrica, que por ter uma área represada de rio acaba afastando as vias marginais. Não desistimos, e acessamos uma estradinha municipal que passa por um horrendo cenário: o aterro municipal. À frente, a mata ciliar, com árvores de sete metros de altura, nos acompanhou até os portões de entrada da PCH Mogi Guaçu. Em suma, nossas previsões estavam certas. Logicamente não pudemos obter uma vista significativa da pequena barragem ou de seu reservatório, mas por ser uma PCH (Pequena Central Hidrelétrica) supõe-se que não tenha uma represa superior a 3km² de área. Por uma leve trilha descemos até a margem direita, após a barragem e portanto não modificado pela necessidade humana por energia elétrica. Vimos algumas biguatingas nadando ao redor das grandes pedras arredondas encravadas no curso do malcheiroso rio, que desemboca no Rio Pardo após percorrer 470km desde Bom Repouso, na Serra da Mantiqueira de Minas Gerais, até Morro Agudo, em São Paulo. Subindo sobre um cano de metal, que possivelmente serve como escoadouro da PCH, vislumbramos um canal de pedras que teoricamente faz a vez de vertedouro, quando a represa se enche em demasia. A grande surpresa da área, porém, foram os saguis-de-tufos-pretos, ou micos-estrela, que pulavam de fios elétricos para galhos, e vice-versa, na mesma mata ciliar citada anteriormente. Eram do tamanho de gatos domésticos, com caudas assaz longas. Luana viu apenas um e pediu para que eu parasse a moto para fotografá-lo. Para a nossa surpresa, vários encarapitaram em meio a vegetação, e mesmo assustados nos permitiram observá-los por longos minutos.
Rio Mogi Guaçu
Sagui-de-tufos-pretos, ou mico-estrela
Divisa SP/MG (asfalto/terra)
Da PCH Mogi Guaçu retomamos o caminho rumo ao Pico da Forquilha. Por um momento pensamos em subir o curso do rio por estradas de terra, mas essa abordagem atrasaria – e muito – o desfecho de nossa aventura. Agindo racionalmente, por assim dizer, seguimos pela Adhemar de Barros até o município de Espírito Santo do Pinhal. Localizamos, dentro dele, uma estrada asfaltada que supostamente nos acompanharia até Jacutinga. Por ela progredimos, num sobe e desce de morros que variavam de 700 a 900 metros de altitude. Ao nos aproximarmos da divisa de Estados, as várzeas do Rio Mogi Guaçu, reencontrado, me lembraram as áreas alagadas do Rio Ivinhema, no Mato Grosso do Sul: uma vegetação verde-limão salpicada por arredondadas poças d'água. A vida levada à maneira rural começava a espocar. Propriedades se mostravam bem mais distanciadas umas das outras. As capelas à beira da estrada, que alguns chamam de grutas, com certa frequência eram notadas. Na divisa de São Paulo com Minas Gerais, o fato mais curioso: uma placa enferrujada pelo tempo e pelo descaso nos exemplificou o que realmente é a política estatal. Da placa para leste, no Estado de Minas Gerais, a estrada continuava, mas agora não mais pavimentada por asfalto. A terra seria nosso chão pelo Estado dos antigos nababos, para o meu deleite, ao qual os pneus de nossas motos se atritaram até os paralelepípedos de Jacutinga, passando pelas belas cercas vivas nas margens do Mogi Guaçu e pelo distrito São Luiz.
Pico da Forquilha visto da zona rural de Jacutinga
Cafezal no primeiro plano
Jacutinga, o município que abriga o Pico da Forquilha, nada podia nos oferecer em sua zona urbanizada. Com 60000 habitantes, a aclamada – mais uma – capital nacional da malha encontrava-se em um domingo pouco movimentado. Para nós esse foi um ponto positivo, pois sem delongas atravessamos toda sua extensão, de oeste a leste, e nos embrenhamos pela zona rural, sentido Monte Sião, outra vez via estradas de terra. Meu mapa apontava 7km até a base do pico. Por incrível que pareça, seu cume em formato de forquilha, ou Y, já era facilmente avistável das ladeiras íngremes e pedregosas que nossas motos urraram para derrotar. Diga-se de passagem, mesmo do centro da cidade, a partir da supracitada estrada de paralelepípedos, vislumbramos seus píncaros, dada a imponência de sua altitude e área total. As antigas fazendas e sítios locais completavam um cenário voltado inteiramente para a cafeicultura. Casarões antigos e terreiros, onde os grãos de café são postos para secar, chamavam a atenção de Luana que, por ter vivido e permanecido praticamente toda a sua vida no Estado de São Paulo, não estava habituada à típica dinâmica agrícola mineira. O que me trouxe alegria aos olhos foi a vista, de pouco mais de 900m de altitude, do Pico da Forquilha à direita, com um cafezal, cipós-são-joão e mourões em primeiro plano, e um vale imenso à esquerda, onde os extensos vãos entre os montes deste pedaço da Serra da Mantiqueira mostravam seu garbo. Há quem chame este ermo de Serra da Forquilha, dando uma espécie de subclassificação à Mantiqueira, que abrange, além do Estado mineiro, São Paulo e Rio de Janeiro, e é tida, por alguns, como generalista demais. Que os geólogos batam cabeça. Entre nós, o que se aflorava era o desejo de uma visão ainda mais “de cima para baixo”. Queríamos o topo.
Vista das proximidades da base do Pico da Forquilha
Princípio da trilha a pé
Ao fim da estrada pela qual perambulávamos, deparamo-nos com uma porteira fechada. Luana apeou da garupa da moto, abrindo-a em seguida. Eu e Rodrigo apeamos poucos metros depois, onde a estrada aparentemente deixava de existir. Dali para frente seguiríamos a pé. O altímetro marcava aproximadamente 1000 metros. Ao lado de um cercado para o gado aparentemente abandonado, uma trilha parecia encaminhar-nos para o pico. Por um momento pensei ser uma trilha de bois, mas mesmo na incerteza fomos ascendendo em direção ao nosso objetivo. O pasto, seco e ralo, com uma cerca à direita e além do qual um cafezal se estendia, foi nosso solo por 200 metros, momento em que nos esgueiramos por um “entorta-burro”. Dele em diante, a mata se fechou, o caminho vertiginosamente se verticalizou e o sofrimento se principiou. Não chegava a ser um esforço sobrenatural vencer os degraus de terra cujos únicos corrimões eram as raízes da vegetação. Paradas esporádicas, tanto para a observação de bicos-de-pimenta quanto para descanso, foram necessárias. Na primeira clareira que se abriu, a 1150 metros de altitude, o cerrado se apresentou, possibilitando-nos uma vista da cidade de Monte Sião, das propriedades rurais pelas quais passáramos há pouco e do emaranhado de estradas de terra que cortam os cafezais da zona rural de Jacutinga. Urubus-de-cabeça-vermelha, tão raros nos centros urbanos, sobrevoavam majestosamente a uma altitude ainda maior, aproveitando as correntes de ar que os fazem bater poucas vezes suas enormes asas em forma de bumerangue. Sempre me questionam: por que vês graça em urubus? Pelo voo, pela capacidade de sobreviver alimentando-se do que já não tem mais vida e, principalmente, por não produzirem som algum. É uma ave que aceita, calada, seu papel na natureza, ao contrário daquele grande mamífero que se diz superior.
Vistas da primeira clareira
O cume
Da primeira clareira em diante, a trilha se suaviza. Isso porque nos aproximamos do topo esquerdo do “Y”, ou da forquilha, ou do estilingue. Como era esperado, após o primeiro topo, uma leve depressão e uma visível trilha pelo côncavo do pico. A passagem de tão estreita parecia nos convidar a uma rápida descida pelas encostas pedregosas, verdadeiros abismos cobertas de mata. A sensação de estar acima das nuvens, que a essa altura povoavam os céus, se maximizava à medida que transpassávamos a crista do desfiladeiro para ascender em direção ao cume mor, ao topo direito do “Y”, ou da forquilha, ou do estilingue. A nossa direita, a cidade de Jacutinga, como uma maquete, escondida no meio da serra. Corri para o ponto máximo, para a parte mais elevada de nossa aventura, seguido por Luana e Rodrigo. Estafado, ao lado de um mourão estrategicamente enterrado por alguma alma no centro do pico, aproveitei-me de uma vista de 360º da região: cafezais, outros montes da Serra da Mantiqueira, edificações em ruínas de sítios vizinhos, Jacutinga e uma parte do relevo de Itapira, no Estado de São Paulo. Consultei meu altímetro e o mesmo me relatou 1232m. Não é, nem de perto, uma altitude andina ou meritória de grandes encômios. Muitos outros picos da Mantiqueira ostentam números assaz mais temíveis. Porém, para quem subsiste em uma cidade edificada sobre a metade disso, é o zênite. E, na verdade, o que conta não é o quão alto em direção aos céus se pode chegar, mas o que se pode ver quando não há nada mais acima de nossas cabeças. Naquele momento, acima delas, apenas nuvens e raios solares difusos, que ofuscavam a observação do caramujeiro que rondava por ali. Abaixo, um vasto planalto para ser apreciado, sentados às pedras à beira do precipício. O vento morno soprando, o ruído de uma motosserra lá embaixo, distante, e o crepitar de nossas pisadas nos farelos de arenito solto pelas trilhas quando ensaiávamos mudar de lado para gozar da vista de um outro ângulo.
Vistas do alto dos 1232m de altitude do Pico da Forquilha
Águas de um riacho cristalino
A meia hora de apreciação terminara. As nuvens, que a alguns momentos atrás ainda dava brechas a focos de azul do céu, terminaram de tomá-lo por completo. Nosso bródio, mesmo que composto somente por água, supriu-nos com a energia necessária para descermos pela mesma trilha, de 1200 metros e com um desnível de 200, pela qual ascendêramos. Logicamente o perrengue foi minimizado pela ajuda sempre grata da gravidade. Em menos de 20 minutos nos reuníamos às nossas motos, abríamos a porteira e nos apartávamos das sombras do Pico da Forquilha. Pelo menos era o que pensávamos. Optamos por seguir pelo sentido leste, rumo a Monte Sião, e as estradas, de terra, que nos levaram a essa cidade, foram as mais desgastantes de todos os meus anos motociclísticos. As ladeiras pedregosas demandavam uma concentração toda especial. Meus braços, que acumulavam ácido lático por terem que suportar o meu peso e o de Luana, relaxavam apenas nos momentos em que o terreno se aplanava. Todo o esforço físico dispendido certamente foi compensado pela cenário sempre bucólico e belo das zonas rurais de Minas Gerais. O gado, inclusive alguns espécimes de Caracu, com seus enormes e pontiagudos chifres, pastava calmamente, procurando pelos brotos mais verdes de grama que, nesta época do ano, resistem à falta de chuva. Nos quilômetros finais adentramos um pedaço de mata fechada, atravessamos uma rústica ponte de madeira e paramos para observar a água que descia, transparente, do alto da serra, passando por ali em direção a algum vale ou planície. É possível que haja alguma cachoeira na sequência do riacho. Era audível. Infelizmente não encontramos trilha alguma em meio à mata para acessá-la.
Gado Caracu
Vista do Morro dos Macacos
Deixando o riacho, cometi a burrice de consultar o meu mapa. Nele sempre há algo mais a ser visitado. Numa encruzilhado, já próxima a Monte Sião, pendemos para o norte, abrimos duas porteiras e subimos serpenteando um morro, nomeado no mapa como Morro dos Macacos. De tão íngreme e dificultosa, achei que a progressão nos levaria a um lugar mais alto do que o Pico da Forquilha. Chegando em seu topo, contudo, meu altímetro marcou meros 1100 metros de altitude. A vista da cidade de Monte Sião não deixava dúvidas de que estávamos em um local privilegiado. Deve ser o ponto culminante do município, uma vez que antenas de rádio e TV nele estão instaladas, sobre uma casa simples de alvenaria e com grades guarnecendo janelas e portas. Foi o último atrativo da região visitado por nosso intrépido espírito, nesse dia. Na descida para Monte Sião, cinquenta metros antes da segunda porteira, a nossa direita, envolvido por uma aura mistificada pela nebulosidade do tempo, o Pico da Forquilha nos presentou com uma derradeira pose, imponente como da primeira vez que o vimos, sobressaindo-se em meio a um paredão de montanhas. Com a noite caindo, fui ciceroneando meus companheiros pelos quilômetros de volta para casa com a imagem deste pedaço de Minas Gerais na cabeça.
Um último olhar a Serra da Forquilha
Serra Negra
Deixamos o Estado dos nababos por Monte Sião. De volta a São Paulo, passamos por Águas de Lindóia, Lindóia e Serra Negra, sempre sob os braços de Cristos Redentores edificados em todas elas. Um congestionamento medonho neste último município retardou nossa tentativa de rápido regresso. Não havia mais o que ver com a escuridão da noite já nos envolvendo. Por Amparo, Pedreira e Jaguariúna, nada que já não tenha sido explorado. Reencontramos a Adhemar de Barros e seguimos por ela até a Dom Pedro, em Campinas, onde Rodrigo se apartou de nós. Eu e Luana ainda enfrentaríamos um bom trecho da Dom Pedro e outro da caótica Anhanguera. Na Praia Azul, já em Americana, Luana apeou pela última vez. Eu ainda enfrentei mais 12km de asfalto, tarefa pouco dificultosa para quem pilotara 365km no total. Com a certeza de que não havia nada melhor a se fazer num domingo, dormi com a lembrança da vista do Pico da Forquilha, e acordei na manhã seguinte com a dor tardia provocada pela trepidação das estradas pedregosas entre Jacutinga e Monte Sião. É o preço que a estrada cobra quando colocamos nossa liberdade à prova sobre sua solidez. É o preço que eu procuro pagar, dia após dia.
Aquele ódio adolescente para com o mundo, que nos são uma característica marcante, mais cedo ou mais tarde – ou mais cedo e mais tarde – ficam no passado. Com as experiências aprendemos que, no fim de tudo, não abominamos o mundo em si, mas sim a humanidade. E, bem dizer, são duas coisas completamente distintas. Parafraseando paganisticamente uma máxima pseudocristã ortodoxa, o mundo sobreviverá sem o ser humano. E o ser humano sem o mundo? Acho que em uma outra ocasião fiz essa mesma pergunta. Acho que terei que viajar de novo para compor uma nova conclusão. Guainumbi, amanhã estarei aí.