sábado, 25 de fevereiro de 2012

Ariri, Ilha do Cardoso e Caminho do Itupava – de 18 a 21 de fevereiro de 2012


Seria a contumácia presságio para o sucesso? Talvez. Eu, sempre sob o jugo do meu pessimismo, acredito que a perseverança em determinadas ações pode ocasionar a ruína irremeável do que já demonstrava sinais de que cederia a qualquer sopro de vento. Vemo-nos ocasionalmente amparados. Somos exortados a prosseguir o tempo todo, é bem verdade, como se a desistência fosse uma desonra marcada a ferro em nossa personalidade. Cremos piamente que um ser humano ao nosso lado, incentivando e pelejando conosco, nos propulsiona e facilita o alcance de nossos abstratos objetivos. Entretanto, não é sempre que contamos com esse tipo de auxílio. Como todos somos guiados por impulsos egoístas, embora alguns ainda acreditem em altruísmo, em um determinado momento corremos o risco de nos quedarmos abandonados à própria sorte, sós em meio ao caos que foi gerado por aquela nossa teimosia em querer continuar aquilo que deveríamos ter abortado no primeiro sinal de dificuldade. Desistir é preciso quando ações, por mais enérgicas que sejam, se mostram infrutíferas. Às vezes é necessário voltar os olhos e a tez para a direção de casa, deixando de encarar o mundo, nem sempre tão belo e receptivo quanto auguramos.
No princípio eram três
Esta viagem, que considero a mais árdua de todos estes anos quixotescos, realmente tomou rumos inesperados enquanto se desenrolava. Luiz Paulo Blanes, Rodrigo Costa Gil e eu partimos, juntamente com nossas motocicletas, para uma aventura pelos picos do Marumbi, elevações montanhosas na serra do mar paranaense. Contudo, nunca chegamos a este destino. Muito menos terminamos a viagem lado a lado. Cada um acabou regressando só, por estradas que o tempo e as oportunidades não permitiram que se entrelaçassem. Os obstáculos, desta vez, nos debilitaram, ao invés de nos motivar a desafiá-los. Nossos meios de locomoção, vencidos pela impetuosidade de estradas que sequer aparecem nos mapas rodoviários comuns, pediram arrego, sufocados pela lama e pela impotência de seguir em frente sem que se tivesse que arcar ulteriormente com sérias consequências. Enfim, esta foi mais uma desventura do que uma aventura propriamente dita. Não obstante, simplesmente não me vejo reclamando por mais do que algumas poucas linhas. Os lugares que, sem querer, viemos a conhecer, muito acresceram ao meu espírito, revitalizando-o para futuras jornadas. Que meus amigos tenham internalizado o mesmo.
Vista de Tapiraí
Luiz Paulo e eu deixamos Americana, após nos encontrarmos na Praia Azul, às cinco e meia da manhã do dia 18, e rumamos até as imediações do Aeroporto de Viracopos, na rodovia Santos Dummont, em Campinas, pelas rodovias Anhanguera e Bandeirantes. Ali encontramos Rodrigo Costa Gil, e o trio, por ora, estava formado, coeso para o início da empreitada. Ainda na Santos Dummont, sorrateiramente seguimos o traçado retilíneo da rodovia, com o astro-rei ensaiando seus primeiros raios ao leste. Pouco tempo depois contornávamos Sorocaba por um anel viário que automaticamente nos desembocou na Raposo Tavares, na qual permanecemos até o viaduto de acesso a Piedade, imediatamente após Votorantim. De Piedade se principia uma das mais belas rodovias em que tive o prazer de pilotar: a SP079, que só recebe este encômio por atravessar a parte norte do Vale do Ribeira e sua exuberante e preservada cota de mata atlântica. Entre Piedade e Tapiraí, os lírios-brancos pareciam disputar a atenção de nossas vistas, sobressaindo-se em meio a pastagens e resquícios de mata. Foi nesta última cidadela que encontramos dois conhecidos nossos, que rumavam, também de moto, para Ilha Comprida, no litoral sul de São Paulo.

Ipês-roxos do norte do Vale do Ribeira

Rio Açungui
De Tapiraí a Juquiá, uma mescla da exuberância dos ipês amarelos, rosas e roxos com rios caudalosos, como o das Corujas e o Açungui. Este último desemboca no rio Juquiá, de águas marrons, já próximo à cidade homônima. Os pontos negativos ficaram por conta da venda de palmito em conserva às margens da rodovia, extraído ilegalmente do teoricamente protegido Vale do Ribeira, e dos extensos mares de banana em meio à mata nativa, inclusive nos arredores de importantes afluentes dos rios supracitados. Certamente o comércio destes dois itens representa talvez a única fonte de renda de muitas famílias locais. Como sempre pendo para o biocentrismo em detrimento do antropocentrismo, acredito que, de modo geral, a natureza local seja a grande desfavorecida pela falta de renda e estrutura a que estão fadados os moradores da região. Lamentando e ao mesmo tempo inebriando-nos com os encantos presentes na sinuosidade da estreita – e portanto perigosa – rodovia, alcançamos Juquiá, cidade que se atrita com a BR116, neste ponto do Brasil chamada de Régis Bittencourt.
Pariquera-Açu
Na 116, como era de se esperar, arcamos com um pedágio e acessamos a rodovia Tenente Celestino Américo, sentido Cananéia. Por ela, transpassamos uma cidade que se preparava para as festividades do Carnaval: Pariquera-Açu. Demoramo-nos nesta por alguns instantes, fotografando a praça central e seus jardins com vegetação religiosamente aparada. Descobrimos que a pronúncia correta é “Paricuera-Açu”, e não “Parikera-Açu”, como aventávamos. Corrigida a semântica, continuamos pela rodovia, já avistando ao fundo a imponente serra do mar do extremo sul paulista. Passamos pelo acesso a Cananéia e pelo Porto de Cubatão. Deste ponto em diante, uma estrada de terra se ramifica para Ariri, um bairro pertencente a Cananéia, mas bem afastado da mesma. Pretendíamos trilhar apenas 30km desta estrada e encontrar uma bifurcação que nos levaria à Guaraqueçaba, atravessando a divisa São Paulo/Paraná. Mal sabíamos que os infortúnios deste caminho mudariam o sentido de nossa peregrinação.

Serra da Mandira

Ruínas
A estrada, em si, não é perigosa. Muitos riachos translúcidos entrecortam-na, sendo necessário, devido a isso, atravessar várias pontes rústicas de madeira. Todos esses pequenos braços d'água devem desembocar na Baía de Cananéia, já que segundo o mapa a mesma se encontrava a poucos metros à esquerda, paralela à estrada. À direita, a Serra da Mandira, altiva, demonstrava sua imponência, mas não a ponto de encobrir o sol, que nos castigava com sua típica luzência de verão. Ao encontrarmos as ruínas de uma antiga casa, fizemos uma breve pausa para descanso e hidratação. Desbravando o interior da carcomida edificação, além de infestarmos nossos andrajos com os carrapichos que se proliferaram neste recôndito de clima subtropical, tivemos que nos desviar de vespas que zombeteavam sobre nossas cabeças. Tratamos de deixar logo o local. Após as ruínas rodamos por mais 15km, deparando-nos com a bifurcação que supostamente nos levaria a Guaraqueçaba, no Estado do Paraná, da qual acessaríamos, também por estrada de terra, a cidade de Morretes, onde se encontra o Parque Estadual do Pico do Marumbi, nosso motivo de viagem.
Trilha do Telégrafo
Na bifurcação seguimos pela direita, cruzamos alguns sítios e casas rurais e demos de cara com a Escola Estadual Fazenda Santa Maria de Baixo. Dela em diante não há mais estradas, por assim dizer. Há apenas uma trilha de jipeiros e motociclistas da lama chamada Trilha do Telégrafo, por estar situada no curso de antigos postes deste arcaico meio de comunicação. Um jovem sobre uma moto, acompanhado de uma criança pequena, nos assegurou de que passaríamos facilmente pela trilha, já que há dias não chovia. Encorajados pelas palavras do rapaz, transpassamos uma pequena ponte de madeira, que demarca o início da trilha. Dela para frente, infelizmente, o panorama não foi nem um pouco acalentador. Muitos brejos, lama e madeiras roliças soltas fizeram com que atolássemos nossas motocicletas algumas vezes. Cheguei a tombar a minha por duas vezes, o mesmo acontecendo com Rodrigo e Luiz. Este último em um determinado momento atolou a sua tão profundamente que a paupérrima em pé permanecia, mesmo sem o descanso lateral encostado ao chão. Parecia petrificada, como uma estátua tentando emergir das entranhas do barro. Era uma situação calamitosa. Decidimos abandonar a trilha após três horas de intensos esforços para conduzir as motos. Tínhamos avançado apenas 800m. A trilha tinha 14km no total. Seria inútil prosseguir. Não alcançaríamos Guaraqueçaba e Morretes por esta via. Foi neste ponto que nossos planos mudaram. Sucumbimos.

Um dos vários atolamentos

Teiú na estrada para Ariri
De volta à escola, fomos obrigados a invadi-la. A sede nos assolava. Atravessamos a cerca de arames farpados e localizamos um tanque de lavar roupas nos fundos da singela construção. Felizmente havia água. Foi durante a reidratação que optamos por voltar à bifurcação que nos levara até ali, mas desta feita seguiríamos pelo viés esquerdo. Chegaríamos a Ariri, segundo o mapa, bairro este pertencente, mas bem afastado de Cananéia. Se voltássemos pela estrada, para Pariquera-Açu, BR116 e descêssemos sentido Paraná, chegaríamos a Morretes pela madrugada. Seria uma péssima opção. Ariri estava mais próximo, a apenas 30km dali. Poderíamos pernoitar por lá, recompormo-nos e, logo pela manhã, rumar ao Marumbi. Colocamo-nos no caminho, em meio a mata fechada, e vagarosamente trilhamos por mais este perrengue. O que amorfinizou um pouco a minha frustração evidente foi a visualização de diversos grandes lagartos teiús que se aqueciam no sol que incidia sobre a terra da estrada. Morfina fugaz. Rodrigo perdeu o controle de sua motocicleta em uma pequena vala e foi jogado ao chão, machucando joelho e cotovelo direitos. Tratamos de chegar logo a Ariri para remediarmos suas contusões.
Ariri
Por volta das dezessete horas estávamos no pacato vilarejo de Ariri. Incontinenti nos acomodamos em um dormitório singelo, às margens da baía de 100 metros de largura que separa o bairro da Ilha de Superagüi. Até ali a baía é um canal natural, mas um pouco mais à frente foi aberto, em 1953, o Canal de Varadouro, que transformou Superagüi em ilha e uniu a Baía de Cananéia à Baía de Paranaguá, no Paraná, facilitando o tráfego de barcos e consequentemente fomentando o comércio entre os Estados. Superagüi é, portanto, artificial, e de Ariri seu extenso manguezal é tudo o que se vê. Todos os detalhes, fora os que visualizamos caminhando pela orla pavimentada por corações, foram-nos relatados por Ingrid, uma professora de História que leciona na única escola local. Outro dado que nos chamou a atenção foi o número de habitantes de Ariri: trezentos e quarenta e cinco, segundo ela. Grande parte da população sobrevive com a pesca e com o transporte de turistas, via barco, para a Ilha do Cardoso, facilmente alcançada baía acima. Enquanto dialogávamos com a professora em um dos bares locais, foi-nos apresentada uma aguardente à base de cataia, uma planta comum da restinga da região. Foi bebericando essa típica bebida do Vale do Ribeira que nos tornamos íntimos deste magnifico vilarejo que, no princípio do dia, sequer aparecia em nossa rota.

Manguezal da Ilha de Superagüi, no Paraná

Ararapira, a cidade fantasma
O dia 18 se esvanecia. O sol se pôs a oeste por detrás de um dos morros que circundam a vila, aquarelando os céus e as águas da baía com mesclas de azul e amarelo. Repousamos e, logo pela manhã do dia 19, caminhei novamente pela orla, visando fotografar o nascer do sol e também a avifauna da região. Andorinhas, aos bandos, nidificavam sobre altos pinheiros. O canário-da-terra observava a ainda letárgica movimentação de pessoas sobre o telhado de um dos comércios locais. Um chopim ciscava nas redondezas de nosso pouso. Foi nesse caminhar que encontrei um barqueiro e esquematizei uma visita a Ilha do Cardoso, distante cerca de 15 minutos, via água, dali. Nós três, então, partimos para a Ilha, protegida na forma de Parque Estadual. Durante o caminho passamos por Ararapira, uma cidade fantasma pertencente ao Estado do Paraná. Está deserta porque a maré, mais feroz após a abertura do Canal do Varadouro, está em constante duelo com a orla, desbarrancando-a pouco a pouco. Muitas casas já foram engolidas, o que é notado pelos escombros sendo umedecidos pelas águas escuras do braço de mar. Os habitantes debandaram e alguns deles se instalaram em Ariri. A Igreja de São José, construída no fim do século XIX, ainda está altiva, mas não se sabe por quanto tempo. Festas nela são celebradas uma vez por ano. Passada Ararapira, alcançamos a Ilha do Cardoso pela face oeste, virada para a baía. Desembarcamos e fomos guiados diretamente ao centro de visitantes do parque, na sede Marujá.
Cachoeira Grande
Da sede do parque, caminhamos duzentos metros através da restinga da Ilha do Cardoso e avistamos o alto mar. Estávamos na Praia de Marujá, absolutamente bela e desocupada. Sós, refrescamo-nos nas águas geladas do Atlântico, vislumbrando, ao fundo, o infinito, e às nossas costas os desenhos da serra do mar sobre a restinga. Eram ainda nove da manhã, e agendáramos um outro barco que sairia deste ponto da ilha para um outro, mais ao norte, onde palmilharíamos, juntamente com outras pessoas, uma trilha com sentido a Cachoeira Grande, uma queda d'água bastante conhecida desta ilha de 17 mil km². Logo ao desembarcarmos principiamos o caminhar, passando por uma antiga construção na qual operava uma madeireira, desativada quando a ilha foi declarada Parque Estadual em 1962. Por vinte minutos adentramos a mata fechada, chegando à cachoeira em forma de S. Um estupendo lugar, com certeza, mesmo a queda não tendo mais do que 15 metros. O caminho de volta foi, para mim, mais significativo, pois pude vislumbrar os desenhos da serra do mar e o voo das fragatas, bem como os mergulhos certeiros do corvo-marinho. Era chegada a hora de deixar a Ilha do Cardoso, que também não constava em nossa rota. Tínhamos que, definitivamente, colocarmo-nos no caminho correto.

Praia de Marujá, na Ilha do Cardoso

Rio Nhundiaquara
Despedimo-nos de Fábio, o barqueiro. Juntamos nossa bagagem, unimo-nos às nossas motocicletas e retornamos para Pariquera-Açu, vencendo mais uma vez a inexorável estrada de terra de 60km. O desânimo de Luiz Paulo com a alteração dos planos era evidente e, enquanto querelávamos sobre o caminho a seguir, anunciou que não prosseguiria conosco. Optou por ir para casa, alegando falta de capital. Rodrigo, com o joelho debilitado pelo acidente, mesmo depois dos primeiros socorros em Ariri, garantiu que iria até o fim. Então, eu e ele, com o moral abalado, mas ainda contumazes em nossos desafios, retornamos à BR116, sentido sul, vendo Luiz sumindo gradativamente, sentido norte, no canto direito de nossos olhos. No princípio eram três. Agora, apenas dois, que em duas horas cruzaram a divisa São Paulo/Paraná e desceram a exuberante Estrada da Graciosa, que serpenteia Serra da Graciosa abaixo. Pela segunda vez eu pilotava por seus paralelepípedos ladeados de hortênsias e mata fechada. Vencendo um congestionamento em Porto de Cima, bairro de Morretes, adentramos uma estrada de terra paralela ao rio Nhundiaquara. Foi às margens deste que, nesta noite, montamos acampamento. O próximo dia prometia ser, mais uma vez, doloroso.
Conjunto Marumbi
Às oito da manhã do dia 20 de fevereiro, levantamos acampamento e seguimos margeando o Nhundiaquara, à direita, e os picos do Conjunto Marumbi, à esquerda, alcançando em dez minutos um Centro de Visitantes do IAP (Instituto Ambiental do Paraná). Nele fomos informados de que para chegar ao Parque Estadual do Marumbi, razão principal de nossa viagem, precisaríamos subir a serra por uma precária estrada de 8km. Subimos, mas por apenas alguns metros, pois a motocicleta de Rodrigo frequentemente patinava, recusando-se a desafiar o íngreme caminho. A alternativa que encontramos foi deixar nossas companheiras em um estacionamento. Subiríamos a serra a pé, o que levaria muito tempo. Tal fato inviabilizou as trilhas aos cumes do Conjunto Marumbi, que tanto almejávamos palmilhar. Restou-nos, mais uma vez, deixar de lado os planos originais e levar a cabo uma aventura mais próxima do local onde estávamos. Como já ouvira algo a respeito do Caminho do Itupava, decidimos fazê-lo. Seriam 16km a pé, subindo a serra do mar parananense em direção ao planalto da cidade de Curitiba. O caminho, aberto e pavimentado por escravos no Brasil Colônia para facilitar o acesso ao mar, tornou-se nossa honrosa e inesperada derradeira missão. O tempo era curto, pois tínhamos que regressar ao alvorecer do próximo dia.

Caminho do Itupava

Pavimentação colonial preservada
A pé, com mantimentos e câmera fotográfica no coldre, nos colocamos no caminho. Seguindo a planilha, subimos ininterruptamente pela mesma estrada em que a motocicleta de Rodrigo preferiu evitar. Em meia hora passamos pela Usina Hidrelétrica Marumbi, fechada, e localizamos a escada de acesso para o Caminho do Itupava. Escorregadio devido a pavimentação de pedras arredondadas e à umidade da mata atlântica, logo nos primeiros momentos sentimos nosso equilíbrio nos abandonar. Sucessivas idas ao chão muito nos desanimaram, mas ao mesmo tempo nos alegrávamos em contemplar as bromélias, orquídeas, animais e rios do percurso. Não há como descrever a vertiginosidade das subidas. Assaz íngremes, foram nossas maiores inimigas. A maioria dos caminhantes do Itupava prefere começar o trajeto pelos arredores de Curitiba e terminá-lo por onde o começamos, enfrentando-o serra abaixo ao invés de serra acima. De qualquer forma, o resultado final é meritório.
Santuário do Cadeado
Subindo e ocasionalmente escorregando, atravessamos, sobre pontes de madeira, o rio Taquaral e o São João. Em todas as oportunidades que avistávamos água, abastecíamos nossos cantis, já que a umidade da mata e a ferocidade do terreno nos exauria. Em duas horas alcançamos o Santuário Nossa Senhora do Cadeado, de onde se tem uma vista do Conjunto Marumbi, picos que eram nosso escopo no começo da viagem e que agora eram vistos apenas de longe, e também os trilhos da ferrovia que desce de Curitiba a Morretes. É o primeiro bom lugar para se descansar e, com sorte, pode-se observar o trem passando. Cruzamos a ferrovia para seguir subindo pelo caminho, angariando informações com alguns jovens que desciam. Com base nelas, decidimos não fazer o trajeto todo, haja vista a falta de tempo. Chegaríamos apenas a uma cachoeira, distante duas horas dali, e retornaríamos. Não era o que ambos queríamos, mas as circunstâncias nos relegaram a tal. Apoiando-nos nos corrimões desta nova fase da subida, prosseguimos.

Cobra-cipó-marrom

Cachoeira no Caminho do Itupava
Nesta segunda parte do caminho, sempre mais do mesmo. Mata cerrada, umidade e escorregões. A novidade ficou por conta de duas cobras: uma cipó-marrom de 90cm de comprimento e uma outra, acinzentada, que não fui hábil o bastante para fotografar. Belos espécimes, com certeza. Passamos praticamente sobre a cabeceira de uma cachoeira, mas não encontrei trilha alguma que nos levasse ao pé da mesma. Acelerando o passo, finalmente nos deparamos com um rio pedregoso, de onde era possível ouvir uma grande queda d'água. Vencendo as pedras rio acima, deparei-me com ela. Pouco volumosa, metade iluminada pelo sol e metade sombreada, ofereceu-me alento para o regresso pelo Caminho do Itupava. Poderíamos tê-lo completado no mesmo dia, mas a preocupação com a volta e nossas escassas energias não nos permitiriam. Mais uma vez lamentamos, mas sucumbimos. Regressamos ao ponto de partida, e agora o peregrinar era menos desgastante, já que descíamos. Tivemos, desta feita, o ensejo de ver o trem passando pelo Santuário Nossa Senhora do Cadeado.
Portal da Estrada da Graciosa
De volta às margens do Nhundiaquara, reavemos nossas motocicletas no estacionamento e, com o sol ainda caracterizando o dia, optamos por deixar a serra e subir para Curitiba, onde teoricamente encontraríamos um local tranquilo para passarmos a noite. Onde estávamos o movimento de turistas era intenso, e teorizamos que na capital estaria menos ululante. Subindo a Serra da Graciosa, apeamos no portal da Estrada da Graciosa para uma última foto do Estado do Paraná. O mesmo faríamos, em seguida, em um posto de combustível à beira da BR116, sentido Curitiba, visto que a moto de Rodrigo aspirava os últimos litros de gasolina. Contudo, uma chuva medonha nos assolou, e acabamos nos apartando quando ultrapassávamos alguns caminhões. Adentrei o posto e, para o meu azar, Rodrigo não. Acelerou para longe, sumindo em meio a forte chuva entre os caminhões. Na esperança de contatá-lo, liguei diversas vezes, mas não houve resposta. No posto em que me encontrava havia alguns quartos para pouso, e tratei de me acomodar por ali. Apesar de meus esforços em encontrá-lo, via telefone, não obtive sucesso durante toda a noite. Às vinte e três e quinze, quando me preparava para dormir, recebi uma mensagem. Rodrigo, quando se viu só, decidira regressar naquela mesma noite. Eu estava, agora, só. No princípio eram três, se bem me recordo.

O regresso, solitário como o trem que desce a serra

Vale do Ribeira na BR476
Na terça-feira, dia 21, às oito da manhã, eu e minha parceira, essa inseparável, enfrentamos o caminho de volta para casa. Para manter o meu paradigma de que o caminho que te leva não deve ser o mesmo que te devolve, abandonei a BR116 e adentrei a BR476, em Curitiba, mais conhecida como O Rastro da Serpente. Já postei uma viagem por esta rodovia em uma outra oportunidade, neste mesmo blog. É a segunda rodovia mais complexa do mundo quando o assunto são curvas, perdendo apenas para a The Tail of the Dragon (a cauda do dragão), nos Estados Unidos. Não ligo para esses dados. A minha intenção, voltando por ela, na verdade era contemplar o extremo sul do Vale do Ribeira, completando, então, minha saga por ele. Do alto das grandes montanhas pelas quais a estrada serpenteia, o desenho sempre inspirador da serra, encimado por nuvens nos pontos culminantes, me inspirava a parar, a contemplar boquiaberto o cenário imponente ao lado dos capins-dos-pampas que, aos montes, adornavam os acostamentos. No fim, ao chegar em casa na iminência de um temporal, seis horas depois de ter deixado o Paraná, não lamentei o fato de ter perdido meus companheiros no decorrer da viagem. Atravessei o Vale do Ribeira, um dos lugares mais lindos do Brasil, quiçá do mundo, e conheci locais e pessoas inesperados, mas valorosos. Que meus próximos planos sejam realizados, ou não. De qualquer forma, e em qualquer lugar, e acompanhando ou não, estarei em plenitude de espírito.
Por mar, por ar e por terra a vida se perpetua. Não a nossa vida, finita e errante, mas a do mundo, infinita e carregada de sentidos. Trilhando novos caminhos auguramos nos assemelhar a este mundo, tornando-nos tão históricos quanto o planeta que habitamos. Mera utopia, mas ainda um viés digno a se seguir. Quem não faz história, refém se faz das circunstâncias, e no limiar da vida acaba se culpando por não ter pelo menos tentando entender os rumos tomados por este nosso imenso globo que, um dia, nos aceitou como inquilinos, mesmo tendo plena consciência de todos os nossos problemas em viver em paz.


Mais fotos aqui.

E abaixo, um blues composto para todo Vale do Ribeira, mas especialmente para Ariri.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Zona Rural de Limeira – 05 de fevereiro de 2012


Do alvorecer deste meu desejo insano de mapear o Brasil para cá muita coisa mudou. Angariei novos companheiros de peleja e incubei amores neonatos, além logicamente de solidificar – e em alguns casos fragilizar – as relações com pessoas que já faziam parte de meu cotidiano. Não é fácil obter o respeito de quem não entende sua luta, e muitas vezes me passo por incompreendido. Questionam-me insistentemente, chegando a afirmar que minhas viagens são uma fuga de algo, como se algum ser dismórfico e desenfreado estivesse em meu encalço. Na verdade, tudo o que aprendi com a Filosofia não teria sentido se eu não testasse suas prerrogativas in loco, o que os marxistas mais ortodoxos rotulam como práxis, ou, utilizando o senso comum, um elo entre teoria e prática. Idealizar o ser humano sem conhecê-lo, sem compreender suas produções culturais, sem investigar o ambiente em que subsiste é mera especulação. Immanuel Kant nasceu, viveu e feneceu em uma mesma cidade, nunca deixando os domínios da mesma. Por mais que tenha deixado um legado meritório, acredito que suas teorias tenham pecado por não entender o ser humano globalmente. Ele o entendeu “königsbergamente”, ou regionalmente, se preferirem. Não intento incorrer no mesmo erro de Kant.
Moto & mato: diversão barata
Já há mais de um mês eu não viajava. Infelizmente nem sempre um professor tem recursos financeiros disponíveis para longas viagens. Em minha última grande empreitada, para Foz do Iguaçu, fiz a asfixiante descoberta de que viajar de moto, principalmente pelas rodovias de tráfego rápido, pode ser uma diversão onerosa, diferentemente de tempos mais remotos, quando pedágios eram gratuitos para duas rodas e a gasolina tinha um preço bem mais acessível, permitindo ao aventureiro chegar mais longe mesmo com baixo orçamento. Contudo, alternativas baratas são facilmente encontradas, bastando ao aventureiro apenas mudar o foco de suas andanças. Tenho uma teoria singela, mas eficaz: todas as cidades possuem uma zona rural, e essas zonas vão se tornando maiores à medida que vamos nos distanciando das grandes capitais. Eu poderia – reitero que o dinheiro é escasso – simplesmente me entregar à estática, ao ócio, mas optei mais uma vez pela ação: percorreria a terra vermelha da zona rural de Limeira, município vizinho de Americana. Mais precisamente, buscaria desbravar as cercanias do Bairro de Jaguari, onde uma importante malha aquífera entrecorta resquícios de mata e plantações de laranja e cana-de-açúcar.
Sol e terra vermelha
O domingo, e seus tórridos 32° Celsius, eram convidativos a um roteiro menos desgastante, mas o exagerado esplendor do astro-rei em nenhum momento me dissuadiu de meu intento. Após alguns contatos com antigos companheiros de aventuras e desventuras, vi-me só com minha motocicleta. Ninguém se arriscaria no campo, não com aquele sol causticante sobre os capacetes de resina, conhecidos como “fornos em potencial”. Luana Romero havia dito na noite anterior que me acompanharia, o que me deixou bastante surpreso. Desde que a conheci, viajava sem a sua companhia, por relutância própria e de seus pais. Agora seria diferente. Era o ensejo perfeito para que eu a mostrasse minha forma de ver o mundo. Logicamente eu incorreria no risco de assustá-la, mas ao mesmo tempo poderia incandescer em seu cerne o veio paterno de sua família, pescador e mateiro. Com todos esse pensamentos em meu encéfalo, partimos da Praia Azul, em Americana, visando acessar a Rodovia Anhanguera, sentido interior paulista. Dez quilômetros depois transpassávamos uma ponte sobre o Rio Piracicaba, concebido na confluência dos rios Jaguari e Atibaia a um quilômetro dali. Este grande monstro de água demarca naturalmente a divisa Americana/Limeira.

Luana, a moto e a zona rural de Limeira

O "castelo" de José Rico
Após a ponte, o perrengue se principia. Sem um séquito a acompanhar-nos, vagarosamente adentramos a Estrada da Ajinomoto, que nos direciona a uma empresa de condimentos alimentícios homônima incrustada, juntamente com outras empresas, na zona rural de Limeira. Logo nos primeiros metros desta estrada se nota uma grande edificação, parecida a um castelo, que só não demonstra maior imponência por estar inacabada. É, na verdade, a casa de José Rico, integrante da dupla Milionário & José Rico, sertanejos que fizeram muito sucesso nas décadas de 1980 e 1990. Eu poderia simplesmente ocultar este fato, mas é impossível não passar por este cenário e relembrar a famosa canção “Estrada da Vida”. “Vou correndo e não posso parar” ecoou tonitroantemente em minha cabeça deste ponto em diante, somando-se à companhia de minha motocicleta e de Luana. Passada a paisagem, entramos em uma estrada de terra à direita, abandonando momentaneamente a Estrada da Ajinomoto. Um quilômetro depois de cortar laranjais, chegamos a uma cerca branca e ao fim do percurso em terra. Dali não era possível continuar com a moto. Segundo minhas coordenadas, o Córrego da Cachoeira, importante afluente do Piracicaba, se encontrava ali. A pé, eu e Luana, seguindo por um alameda de eucaliptos e árvores frutíferas, o encontramos.
A ponte e o córrego
Uma ponte de concreto e tijolos à vista, que tardamos a discernir por conta dos galhos e folhagem sobre a mesma, se elevava sobre o córrego supracitado, dando passagem às suas águas carregadas de sedimentos, rasas e pouco velozes. Conheço bem os córregos que subsistem nos aglomerados urbanos. Sei o quanto sofrem com a poluição industrial. Para mim, ver este córrego, marrom mas incrivelmente translúcido e inodoro, apesar da proximidade com duas grandes cidades, passa uma falsa sensação de que há alguma esperança para as águas do Ribeirão Quilombo, por exemplo. Foi devaneando que escorreguei controladamente por uma pequena ravina, entre bambus e teias de aranha, visando acessar a margem esquerda do córrego. Com alguma dificuldade, e tendo as mãos e antebraços cortados em algumas ocasiões, cheguei à arenosa orla deste não muito portentoso afluente do poderoso Piracicaba. Escorregadio, o local me ofereceu bons ângulos para fotografar a ponte camuflada. Os cortes começavam a arder, mas a paz das águas juntamente com o canto dos pássaros, notadamente anus-pretos, agiram como amenizadores da dor. Com certeza este é um lugar digno de uma posterior visitação. Imaginei-me seguindo o curso do córrego, palmilhando seu fundo com água pelos joelhos, chegando posteriormente ao Piracicaba. No entanto, Luana me aguardava sobre a ponte. Retornei a ela e à motocicleta para prosseguirmos viagem.

Córrego da Cachoeira

O Rio Piracicaba
Subimos na moto e, voltando para a Estrada da Ajinomoto, passamos por um laranjal aberto e que aparentemente se estendia da estrada para bem próximo das margens do rio Piracicaba. Entrecortamos o laranjal até um ponto em que não era mais possível seguir sobre duas rodas. Deixei-as numa clareira, e em seguida nos embrenhamos em capim alto, chegando posteriormente a uma mata mais cerrada, a mata ciliar do rio. Por um canal de escoamento de água aparentemente desativado, desci uma outra ravina – novamente deixando Luana para trás – e, vencendo uma parte desbarrancada, alcancei a margem do Piracicaba. Muito volume d'água marrom e, ao contrário do córrego afluente, cheiro pouco agradável, mas não ao ponto de ser nauseante. Do lado em que eu estava, território limeirense. Do outro lado, território americanense e uma estrutura para captação da água do rio, que talvez esteja inutilizada. Infortunadamente me quedei ilhado, não podendo avançar rio acima ou rio abaixo. A mata fechada e a profundidade das águas me deixaram hirto. Tive que me contentar em fotografar de ângulos pouco apreciativos e em visualizar um bando de macacos que cruzou rapidamente pela copa das árvores próximas. Estes não fui capaz de registrar. Vencendo novamente o desbarrancado, subi em direção à clareira e a Luana. Incontinenti debandamos.
Usina Hidrelétrica de Tatu
A Estrada da Ajinomoto, “espinha dorsal asfaltada” da qual se ramificam as “costelas de terra”, foi novamente acessada para que nos aprofundássemos ainda mais no desbravamento desta parte da zona rural de Limeira. Passamos por um comércio local e nos informamos a respeito de uma usina hidrelétrica próxima ao Bairro de Jaguari. Com direção às empresas, mas sem alcançá-las, deixamos o asfalto e adentramos uma estrada de terra em meio a um canavial. Trespassamos uma torre de alta tensão, sob a qual o gado branco pastava – imagino a temperatura das gramíneas – heroicamente sob a intensa luz do sol. Cortamos as poucas casas e a capela do Bairro de Jaguari. O movimento de pessoas era intenso apenas nos arredores de um campo de futebol. Ligeiramente deixamos o vilarejo e pendemos à direita, seguindo as placas com indicações a uma comunidade cristã. Não tardamos a encontrá-la, deixando-a para trás e localizando a Usina Hidrelétrica de Tatu poucos metros ladeira abaixo. Os portões da usina, cerrados, não puderam ser transpostos. Não encontrei nenhum trabalhador ou zelador próximo aos portões, para talvez tentar uma visita interna. Tudo o que pudemos fazer foi fotografar, através da cerca, a casa de máquinas e uma cachoeira de pedras, com talvez 15 metros de queda, no curso do vertedouro da barragem.

Cachoeira da Usina de Tatu

Ribeirão do Pinhal
Não tenho informações pormenorizadas sobre a Hidrelétrica de Tatu. Tudo que sei é que seu reservatório, a Represa de Tatu, foi preenchido por águas canalizadas do Ribeirão do Pinhal, um importante afluente do Rio Jaguari. A balneabilidade da represa é boa, mas o acesso a mesma é complicado, o que a torna pouco conhecida dos moradores de Limeira, Americana e Cosmópolis, cidades que dividem praticamente a mesma zona rural. Atravessamos uma ponte rústica de madeira, ao melhor estilo Transpantaneira, para registrar a translúcida – apesar de marrom – água do Ribeirão Pinhal, comprovando a limpidez da água. Sobre a elevação visualizamos redemoinhos em alguns pontos, o que demonstra uma grande profundidade, inviabilizando aqui um banho para quem não domina bem a técnica da flutuação, o que é o meu caso. Entrar neste ponto do curso da água, portanto, pode ser perigoso. Decidido a não banhar-me, tive por objetivo apenas fotografar a minha paixão da era pós-Pantanal: as pontes de madeira. Luana se divertia ao me ver vencendo as pedras e barrancos para alcançar a base desta simples obra de engenharia de pouco mais de 20 metros de comprimento.
Estação Elevatória do Jaguari
Passada a ponte, seguimos pela estrada de terra e entramos à direita numa bifurcação, chegando à Estação Elevatória do Jaguari. Por ser de acesso restrito, não pudemos adentrar o local para entender o seu funcionamento. Demos meia volta, maldizendo as circunstâncias, e regressamos à bifurcação mencionada, seguindo agora pelo outro viés. Nele permanecemos por alguns metros, deparando-nos com uma maciça cerca branca que impedia nosso avanço. Deste ponto em diante, até Cosmópolis, tudo pertence a Usina Ester. Não somos autorizados a pilotar em suas estradas e canaviais. Encontrei uma trilha que atravessa a cerca. Poderia facilmente tê-la transposto, mas preferi não cometer tal delito. Elenquei como objetivo principal, depois de topar com essa barreira física, pelo menos molhar minhas mãos na Represa de Tatu. Já havia visto a usina. Agora carecia de ver seu reservatório. Para tal, regressamos à ponte e entramos à direita pouco antes de alcançá-la. Uma nova ponte de madeira surgia poucos metros depois. Sob ela, a água que escoa da barragem da usina. Alguns homens se banhavam. Com eles coletamos algumas informações para localizar a represa.

Abra as porteiras, Usina Ester!

Represa de Tatu
Como bom iconoclasta, resolvi contrariar as coordenadas dos banhistas. Eu detinha uma planilha que me instava a chegar à margem da represa pelo flanco sul. Tentamos acessá-la por esta via, cortando canaviais e laranjais, mas uma cerca obstruiu-nos em uma bifurcação da estrada. Teríamos que invadir propriedades privadas. Aquela sensatez que me assola às vezes foi, desta feita, ponderada. Volvemos à ponte dos banhistas e subimos a serra rumo ao norte da represa. Quando a vegetação densa raleou e visualizamos a represa do lado esquerdo, do alto, entramos numa estrada em queda livre até praticamente a beira da água. Sem meios de prosseguirmos com a moto, terminamos o trajeto a pé, por uma picada em mata fechada. Desta vez tivemos sorte. Pudemos fotografar e molhar nossos rostos nas águas mansas da bela Represa de Tatu, e de quebra conhecer um casal de pescadores que, com vocabulário tão simples, não foram capazes de nos dar informações mais detalhadas sobre outros atrativos da região. Permanecemos por um tempo ali, já que Luana se apetece por locais tranquilos como este, talvez por “culpa” de um gene de seu pai pescador.
Americana
O subir e o apear constantes na motocicleta já se aproximavam de seu momento derradeiro. Atingido o escopo de conhecer a Represa de Tatu, principiamos o regresso para Americana. Subindo pela íngreme estrada de terra, que culminaria no ponto mais alto da pequena incursão, deparamo-nos com uma vista magnífica da cidade de Americana. Os grandes prédios do centro da cidade, as torres da antiga Usina São José, a Represa de Salto Grande: tudo era possível visualizar do ponto em que nos situávamos. Até mesmo um bom pedaço de Paulínia nos saltava aos olhos. Devo admitir que não sou um grande admirador de cidades e grandes edificações, mas um bom mirante em meio ao nada, o que é o caso de locais como este, dão-me uma dimensão diferente, instando-me a tentar enxergar o garbo que meu preconceito renega. Inebriados pela paisagem, descemos a pequena serra pela judiada estrada, daquelas que massageiam todos os órgãos internos do corpo humano, segundo Luana, e retornamos à Hidrelétrica de Tatu, de onde seguiríamos para casa. Para a nossa surpresa, ao chegar ao escoadouro da barragem, os poucos banhistas haviam debandado. Aproveitamos, então, para descer uma leve ravina ao lado da ponte de madeira com o intuito de tatear a cristalina e gélida água do manso regato, proveniente da barragem e da cachoeira citada anteriormente. É um ótimo local para um banho, mas há de se tomar cuidado com a areia barrenta de suas margens. Em alguns momentos afundei meus pés. Torcê-los é esperado. Um certo cuidado é uma douta abordagem.

A água cristalina do vertedouro da Usina de Tatu

Capela do Bairro de Jaguari
Subindo de volta à moto, discernimos, por entre galhos, a cachoeira e a barragem da usina. É realmente uma pena não podermos conhecê-las, fotografá-las. Maldizendo essa impossibilidade, regressamos ao Bairro de Jaguari para uma última parada antes da Estrada da Ajinomoto. Apeamos defronte a Capela de Nossa Senhora de Aparecida, que segundo consta foi fundada em 29 de abril de 1945. Deve atender os poucos moradores de suas cercanias, visto ser de modestas dimensões e pouco suntuosa. Enquanto fotografávamos o templo cristão, um sabiá-barranco saltitava pelos galhos de uma árvore à direita do portão de entrada. Foi a última imagem de um domingo sufocante pelo calor, mas confortante pelo esplendor. Em apenas 60km rodados, mais do que fotografias e belos visuais, fizemos um levantamento da malha aquífera deste esquecido recôndito de Limeira. Que os cidadãos americanenses e limeirenses tenham uma maior gana de conhecimento, buscando compreender o seu solo, seus córregos, represas e rios, tornando-se então realmente um ser que se possa dizer conhecedor de suas raízes. Foi o que internalizei, enquanto concluíamos o curto trajeto de volta para casa. A paz, que em meio ao mato e aos mansos regatos gozei, esvanecia-se à medida em que os pneus de minha moto se atritavam freneticamente com a Anhanguera. Lentamente volvíamos à realidade urbana que tanto combato. Sofregamente eu inspirava, mas os ares já eram outros. Eu voltava a me alienar.
Diga-me para onde vais, e direi quem tu és. Ficais parado, e definhes, pois a beleza da estática é efêmera. O movimento, incessante e desafiador, não. O sol nasce para todos, mas a maneira como incide em cada campo, cidade ou rio é peculiar. Oponho-me aos preguiçosos porque deles não se extrai experiência válida alguma. Apoio-me nos rebeldes, esses que modificam o curso da história porque agem no presente. Sou um rebelde a minha maneira, e peço desculpas se tento influenciar aqueles que convivem comigo. Não o faço por mal. Faço porque a vida é curta, e desistir da mesma por mesquinharias, como o álcool e a pusilanimidade, é uma falta de respeito à nossa própria anatomia, engendrada unicamente para o deslocamento. Perdoem-me os cautos, mas que componham panegíricos a nós, e somente a nós, os incautos.



Mais fotos aqui.

E abaixo um blues – como poderia ser diferente? – para a zona rural de Limeira, composto à sombra para um dia ao sol e à terra vermelha.