Naqueles velhos caminhos há muito olvidados me encontrei, me reconheci humano. As incongruências de nossa nefasta História se apresentaram aos meus olhos feito o pescoço do sentenciado à lâmina do machado algoz e, numa mostra de gigantesco contrassenso, não evitei o contato mortal. Cedi, como a alta vegetação cede ao sabor do zéfiro. Carecia de explicações, de aprendizagem, de provas materiais que corroborassem ou não o que me mostravam nos livros fantasiosos e reducionistas de meus juvenis anos escolares. A realidade se mostrou mais cruel do que eu outrora imaginava, bem sei, mas, evocando a frieza calculista que sempre me caracterizou, aspirei profundamente o que podia para, num momento ulterior, poder expor aos leitores e conhecidos um pouco das informações angariadas no decorrer de uma viagem exaustiva por grande parte das cidades pertencentes ao Circuito do Ouro Mineiro. Se a História é feita por pessoas como você e eu, que não acreditem piamente no que aqui será minuciado, pois tudo o que é de origem humana é suscetível à falácia e ao tendenciosismo. História só se faz História se existirem ações, observadores, relatadores, perpetuadores e, primordialmente, céticos. Após a leitura, engendre uma viagem de comprovação para o que ora escrevo. Talvez tenhamos duas versões para uma mesma fase de nosso país.
Companheiros de viagem
Precocemente nos programamos para uma viagem por algumas cidades que nasceram da exploração aurífera centromineira no século XVIII e, como tudo que é precoce e programado, praticamente nada foi concretizado da forma como havíamos concebido. No debuxo original constava Ari Fernando Borsetti Jr, Fernando Santarrossa, Rosemeire Carmo Santarrossa, Luana Romero e eu, mas imprevisibilidades reduziram a trupe a um trio composto pelo primeiro e pelos dois últimos. Planejávamos visitar apenas São João Del Rey e Ouro Preto, mas no fim acabamos conhecendo também Tiradentes, Congonhas, Ouro Branco, Itatiaia, Lavras Novas, Mariana e Itabirito. Ruim por um lado, proveitoso por outro. A grande sacada das mudanças de estratagemas é que, após a ruína de tudo o que foi traçado, tudo se torna mais imprevisível e descompromissado, o que resulta, no fim das contas, em uma progressão natural e, consequentemente, mais investigativa e minuciosa. Foram tantos os dados coletados que pela primeira vez desde minha viagem ao Pantanal, em julho desse ano, sinto-me convicto a postar nesse espaço que, por ora, me é gratuito. Certamente esquecerei algo muito importante e, quando dele recordar, talvez me aborreça em demasia e acabe excluindo todo o conteúdo original, reescrevendo-o posteriormente com o dito cujo incluso.
Três aventureiros em busca de parte da História brasileira
Igreja S. F. de Assis, em Sumaré
Luana e eu deixamos a Praia Azul, em Americana, exatamente às 7:30h de uma quinta-feira em que se celebrava a Proclamação da República. Marcamos um encontro com Ari no bairro Nova Veneza, em Sumaré, defronte a uma igreja católica singela, a de São Francisco de Assis, nas imediações da Rodovia Anhanguera. O ponto, por ser comum a todos, uma vez que Ari provinha do centro de Sumaré, nos rendeu a primeira fotografia da viagem e, além disso, o registro visual de uma construção moderna, do século XX, que ulteriormente compararíamos às capelas do século XVIII que fotografaríamos no decorrer da incursão. Após um breve estudo da rota que percorreríamos rumo ao centro de Minas Gerais, aceleramos para longe do caos de Sumaré e Campinas, passando por Itapira e Jacutinga, essa última já no Estado mineiro. Ouro Fino e seu enorme menino da porteira vieram na sequência. O metal valioso, presente no nome e nos ribeirões do município e extraído de seus domínios em meados do século XVIII, reforçou o motivo de estarmos ali, naquele caminho, em busca do antigo eldorado hoje reduzido a velhas construções e muita História. Rapidamente, então, avançamos por Borda da Mata e Pouso Alegre, deixando o sul de Minas pela espinha dorsal de todo o Estado: a Rodovia Fernão Dias. Sem grandes emoções, a não ser pela chuva que ameaçava desabar desde que abandonáramos Sumaré, passamos pelos perímetros urbanos de Três Corações, cidade natal do Rei Pelé, e Lavras, nessa adentrando uma rodovia que, com certa demora, nos infiltrou no centro de São João Del Rey, nosso primeiro destino. Foi bom ter revisto o Rio Grande no caminho, cruzando caudaloso por baixo de uma ponte pouco depois de ser retardado pela barragem da Represa de Camargos.
Ouro Fino
Ponte da Cadeia, em São João Del Rei
Não era a minha primeira vez em São João Del Rei. Há dois anos estive no mesmo lugar, porém mais interessado em desbravar a Serra do Lenheiro do que propriamente o Centro Histórico, escopo da atual empreitada. Em suma, eu estava de volta a um dos palcos da Guerra dos Emboabas, um antigo arraial que evoluiu para uma cidade com mais de 70000 habitantes. Para o bem de nossa História, todas as suas edificações coloniais e capelas, hoje chamadas de igrejas, estão preservadas, talvez por força do tombamento, que nutre com muitas verbas as obras de recuperação e manutenção do patrimônio histórico. Nosso primeiro passo, sabendo disso, foi nos estabelecermos às margens do Córrego do Lenheiro, onde tudo se desenrolava no século XVIII e onde se encontra, portanto, o Centro Histórico. Canalizado, o fétido regato divide a cidade em duas. Sua “mata ciliar” são ralas gramíneas, de um verde vibrante devido à primavera e à abundância de chuvas. Livrando-nos do excesso de bagagem, aportamos nas proximidades do casarão que abriga o Museu Regional, entre as pontes de pedra do Rosário e da Cadeia, obras ao melhor estilo romano, formadas por três arcos dispostos um ao lado do outro com uma estreita passagem e uma cruz centralizada em uma das laterais. São estreitas para os padrões atuais, mas vale ressaltar que, na época, o único meio de transporte disponível eram as montarias e carros de tração animal.
Museu Regional e, ao fundo, a Igreja de Nossa Senhora do Pilar
Quadro do Museu Regional
O Museu Regional, albergado no interior de um solar – sobrado colonial – branco e de janelas em vinho, detém inúmeras obras de arte do início da exploração aurífera, bem como utensílios utilizados no dia a dia de famílias abastadas, carruagens, esquifes, mobília e oratórios. Dos três andares, interessei-me particularmente pelo térreo, que expõe alguns instrumentos musicais, como bandolins portugueses e trompetes, além de cadernos de composição e partituras musicais, todos amarelados pelo tempo, mas aparentemente intactos. No jardim interno, as esculturas de cinco mulheres, cada uma representando um continente, traduzem a visão de como o ser humano de cada canto do mundo era visto pelos olhos europeus de uma sociedade cuja vanglória se exacerbava pelo ouro. A representante da América, por exemplo, é mostrada com os pés envoltos por um lagarto e com um macaco encarapitando em um dos ombros. O continente era vasto e muito de seus ermos sequer haviam sido explorados até então, prevalecendo a visão de um povo americano essencialmente indígena, o que não era uma ideia inteiramente equivocada. Do lado de fora, já deixando o museu, uma última olhada para os andares superiores revelou, ao fundo, as torres da Igreja de Nossa Senhora do Pilar. Era um aperitivo para o que viria a seguir: igrejas e mais igrejas católicas, todas edificadas no século XVIII. Todas, portanto, seculares.
Cada escultura (mulher) representa um continente
Igreja de S. F. de Assis, de 1774
Sobrepassamos o Córrego do Lenheiro, a pé, por uma ponte férrea que dá acesso ao outro lado da cidade, defronte o Theatro Municipal, e subimos até a rua Balbino da Cunha, sempre com paralelepípedos sob nosso pés. Acredito que tenham substituído o calçamento original de pé-de-moleque, comum à época. A Igreja de São Francisco de Assis de longe nos saltou aos olhos, imponente como uma obra faraônica. Ao nos aproximarmos, constatamos que a mesma ostenta torres arredondadas, o que a diferencia de todas as outras de São João Del Rei, de formas retangulares ao melhor estilo barroco. Dois anjos, sentados sobre a porta, em conjunto com toda a arte em pedra-sabão, contribuem para um rebusque que somente o ouro podia comprar. Diz-se ser obra de Aleijadinho, mas há quem refute tal alusão. Foi construída em 1774, e depois restaurada de acordo com um projeto do centenário Burle Marx no princípio do presente século. Foi difícil conseguir uma foto sem a inconveniente presença de um transeunte ou turista. Altas palmeiras, plantadas no jardim imediatamente à frente dela, são locais de pouso dos sempre barulhentos bandos de maritacas. É um pássaro que consegue sobreviver e se multiplicar mesmo em ambientes urbanizados e abarrotados de pessoas. Somam-se ao cenário, do outro lado da rua, o casarão da Biblioteca Municipal e uma pequena capela dos Passos da Paixão de Cristo, ambos, logicamente, tão antigos quanto.
Igreja de São Francisco de Assis: detalhes das torres
Igreja do Rosário, de 1719
De volta às ruas marginais ao Córrego do Lenheiro, atravessamos a Ponte do Rosário e acessamos o Largo do Rosário, que mais parece um beco desordenado do que propriamente uma via. Logo nos primeiros passos demos de cara com os fundos da Igreja do Rosário, contornando-a para uma apresentação frontal. Um busto em bronze de um padre ou bispo, do qual não me recordo o nome, está disposto dez metros a frente da igreja de dimensões bem menos generosas quando comparadas as da de São Francisco de Assis. Um pálido azul e um adorno de porta simples garantem a singeleza de seus contornos, bem como as tímidas luminárias elétricas esverdeadas que se acendiam para destacá-la no período noturno. Antigamente era queimado o óleo de baleia para esse fim. Foi a primeira capela do antigo arraial, construída em 1719. Já se passavam das 18h, e não nos demoramos nela, visto que estava fechada. Menos de cem metros à frente, outra: a Igreja de Nossa Senhora do Pilar, construída em 1721. Robusta e promíscua, foi a única que nos recepcionou de portas escancaradas. Fiquei com dúvidas em relação às grades que a protegem. Seriam uma obra para evitar saques? Era fortificada à época de sua construção ou foi uma adaptação recente? Sem respostas, fotografamos seu interior, repleto de tons dourados, mesmo nos trabalhos feitos em madeira. Um enorme lustre, remetendo ao cristal, pendurava-se exatamente no centro do teto, que também contava com pinturas de passagens bíblicas em tons avermelhados.
Igreja de Nossa Senhora do Pilar, de 1721
Largo do Rosário
Ig. de N. Sra. das Mercês, de 1751
Seguindo pela Getúlio Vargas, sempre lado a lado com os sobrados coloniais conservados, comprovei a minha máxima de que “tropeçar em um paralelepípedo de São João Del Rei é cair na escadaria de algum templo católico”. A Igreja de Nossa Senhora do Carmo, apertada em meio a edificações comerciais, apresentava-se tão serena e bela quanto a de São Francisco de Assis, inclusive com muitas semelhanças em seu desenho, mas consideravelmente menos portentosa. É de 1734. Em seu lado esquerdo, atravessando a rua, foi idealizado, em 1836, um cemitério em que os caixões não são enterrados, mas sim dispostos em prateleiras verticais, feito gavetas. Obviamente os portões nos impediram de adentrá-lo. Partimos então por uma ladeira, e em um ponto mais alto encontramos a Igreja de Nossa Senhora das Mercês, que tem passado por muitas remodelações desde sua inauguração, em 1751. Singela, conta com apenas uma torre e é acessada por uma longa escadaria de estreitos degraus. Sua iluminação amarelada, sempre partindo de luminárias de negra armação, nos instava a abortar o reconhecimento do resto da cidade. Afinal, o sol, encoberto pelo céu nublado, já há muito dava indícios de querer abandonar a quinta-feira. Retomamos o caminho para o Córrego do Lenheiro e, ao tentarmos atravessá-lo para assistir a Orquestra Sinfônica do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, que apresentaria gratuitamente um concerto no Theatro Municipal (datado de 1893), fomos assolados por uma chuva torrencial, que nos ilhou por alguns minutos sob os toldos de um salão comercial. Mesmo molhados conseguimos prestigiar à virtuosa apresentação.
Igreja de Nossa Senhora do Carmo, de 1734
Capela de N. Sra. das Dores, de 1918
No segundo dia de viagem despertamos logo cedo para rapidamente localizarmos alguns pontos que o tempo não nos oportunizara conhecer no dia anterior. Atrelamos as tralhas às motos, passamos pela Estação Ferroviária e, na rua Comendador Bastos, fotografamos a estreita, alta e amarelada Capela de Nossa Senhora das Dores. É uma obra mais recente, de 1918, bem distinta de todos os outros templos religiosos da cidade, com suas características lembrando a arquitetura de um castelo medieval. Na mesma rua, cinquenta metros à frente, a Igreja de São Gonçalo Garcia, de dimensões reduzidas, com uma simples torre central e uma cruz menos rebuscada do que suas vizinhas munícipes. Foi edificada em 1722. Defronte a ela, na Praça dos Expedicionários, há um monumento para um regimento dos Praças, soldados brasileiros enviados a missões em território italiano na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) para lutar a favor dos Aliados, liderados pelos Estados Unidos. Um soldado bradando um grito de guerra, em bronze, e uma arma de grosso calibre, talvez antiaérea, homenageavam o destacamento que partira de São João Del Rei e fizera inúmeros prisioneiros de guerra em solo italiano. Para finalizar nossa estadia na cidade, não poderíamos deixar de ingressar no Museu Tancredo Neves para conhecer um pouco mais de sua trajetória. Eleito em 1984, morreu antes de ocupar o cargo de presidente, nas primeiras eleições diretas após um período militarista. É, quiçá, o cidadão mais ilustre e icônico nascido nesse local em que a História parece pulsar em cada beco, travessia, templo e casarão, isso desde o descobrimento do ouro nos leitos de seus ribeirões, rios e também na Serra do Lenheiro.
Monumento aos Praças e Igreja de São Gonçalo Garcia, de 1722
Cachoeira do Bom Despacho
Principiava-se a subida para o cerne de Minas Gerais. Deixamos São João Del Rei, ainda antes das 10h, e fomos nos afastando de seu Centro Histórico, alcançando a cidade de Santa Cruz de Minas. A calçada Estrada Real entrecortava-a, e por ela fomos vagarosamente tocando, visando alcançar Tiradentes, a segunda cidade pretendida. A nossa esquerda, os primórdios da Serra de São José e o cerrado, e não demorou muito para visualizarmos uma cachoeira que deles desciam. Tratava-se da Cachoeira do Bom Despacho, que caía randomicamente, em degraus, com pouco volume d'água. Por ser uma área preservada eu diria que é pouco vigiada, visto que a sujeira se espalhava por todos os lados. A movimentação de pessoas era intensa, e portanto prosseguimos em direção ao destino, que não tardou a atingirmos. Já na zona urbana de Tiradentes o trânsito de pedestres e carros de passeio era ainda maior, principalmente nas imediações da Matriz de Santo Antônio, finalizada em 1752 e atração número um da cidade que, no começo do século XVIII, emergiu a partir do descobrimento de ouro na Serra de São José, um imenso paredão rochoso e brilhante que guarnece o norte de seu território. Abandonamos as motos, por um momento, à sombra de um florido flamboiã. O resto seria conhecido – por Luana e Ari – e reconhecido – por mim – a pé a partir dali.
Serra de São José, em Tiradentes
Matriz de Santo Antônio, de 1752
Cap. da Santíssima Trindade, de 1810
Subimos a Rua da Câmara, com o impetuoso calçamento pé-de-moleque de pedra sabão, parte original parte recalçado, e topamos com a Capela da Santíssima Trindade, que de tão humilde não recebia a atenção dos turistas. É de 1810, e para se chegar a ela a ladeira é exigente. As casas coloniais, transformadas em comércio de artesanato, estão de ambos os lados, brancas e de contornos coloridos, sempre impecáveis na pintura. Descemos, cruzamos o Bosque da Matriz e, atacados por marimbondos, chegamos a Igreja de São João Evangelista, datada de 1760, também simplória e desprovida de torres. Na rua de baixo, a Igreja do Rosário, de 1708, e a rósea Cadeia, com suas grades férreas intactas. Com exceção a Matriz de Santo Antônio, todos os outros templos religiosos se mostraram menores. O povo de São João Del Rei construía igrejas aparentemente maiores, mais adornadas, e no intuito de comprovar esse fato reavemos nossas motos e rumamos para o outro lado da cidade, fotografando, no caminho, o Chafariz de São José. Lá a chuva desabou mais uma vez, e nos abrigamos nas reformas da Capela São Francisco de Paula, do século XIX, num ponto alto da cidade, de onde se tem uma vista privilegiada de todo o Centro Histórico de Tiradentes. Vale abaixo, um registro do último templo católico de nossa breve estadia: a Igreja das Mercês, da segunda metade do século XVIII. Comprovadamente o ouro, descoberto na Serra de São José, era mais escasso do que o de São João Del Rei. Por isso as igrejas, aqui, na terra que leva o nome de um inconfidente que nasceu nas imediações, são menos suntuosas, mas igualmente belas e tricentenárias.
Típica rua de Tiradentes
Vista de Tiradentes a partir da Capela São Francisco de Paula
Congonhas
Voltamos pela Estrada Real, vislumbramos pela última vez a Cachoeira do Bom Despacho, cruzamos Santa Cruz de Minas e nos colocamos na BR383. Num sobe e desce serpenteante pelo relevo mineiro deixamos para trás os perímetros urbanos de Lagoa Dourada, Entre Rios de Minas e São Brás do Suaçuí. A mistura de barro, caminhões e chuva nos emporcalhava e ensopava até que, finalmente, nos enviesamos pela BR040. Dela para Congonhas, cidade almejada naquele segundo dia de viagem, foram poucos úmidos quilômetros, inclusive por dentro da cidade que, digamos, não é nem um pouco planejada. Seguimos prontamente as indicações para o alto do morro onde foi erigida a Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, que teve suas obras iniciadas em 1765. Subimos a ladeira infindável e asfaltada, procuramos pouso nas proximidades do atrativo e, sem nossas motos, aproveitamos os últimos momentos de sol para uma “peregrinação” pelos entornos da basílica que, por si só, é um local histórico mundialmente conhecido, visto que nela se encontram, nos corrimões da escadaria de acesso, os doze profetas de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, todos esculpidos em pedra sabão entre 1800 e 1805, com faces expressivas, mas olhares desprovidos de órbitas, enigmáticos. Muitos consideram o homem que sofria de uma doença degenerativa, que minava seus movimentos, paralisando seus membros com o decorrer do tempo, o maior gênio dentre todos os artistas brasileiros, não só no segmento da arte sacra. Que era uma figura cercada de mistérios é indubitável. As iniciais de todos os profetas esculpidos, por exemplo, formam seu apelido.
Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos com os 12 profetas de Aleijadinho
Daniel
Seis capelas guardam, em frente aos profetas e à basílica, o caminho de Jesus ao calvário, entalhados em cedro por Aleijadinho e seu ateliê, mas correntes interpostas em nosso caminho impediram que as conhecêssemos no fim daquela tarde. Caminhamos, então, por uma ladeira histórica, onde o pé-de-moleque novamente era o calçamento. Mais casas centenárias e mais uma igreja, de formas arredondadas: a de São José. Data de 1817. Ao longe, do outro lado da cidade, a Matriz Nossa Senhora da Conceição, de 1734, em processo de restauração. A noite caía, e com ela a beleza de Congonhas não esmorecia. Pelo contrário, era ainda mais avivada pela bem postada iluminação da basílica. Cada profeta recebia seu naco de luz. A imagem carismática de Daniel, com um leão prostrado aos pés, bem como a de Isaías, de barba hirsuta e aparentemente desprovida de medo, foram a última visão da segunda noite de viagem. Amanheceríamos no outro dia, um sábado, apenas para fotografar o que outrora correntes nos empecilharam. As obras em madeira de Aleijadinho, esculpidas entre 1796 e 1799, vivas em cores, expressões, detalhes, retratando o Horto das Oliveiras, a Prisão de Cristo, a Flagelação e Coroação de Espinhos, a Subida ao Calvário e a Crucificação. Para um ateu, como é o meu caso, tudo era belo demais. Para um religioso fervoroso, a fé deve se reafirmar ao ver tais obras. A inervação e os ligamentos das mãos das esculturas eram algo digno de livros de anatomia humana. Um último adeus às obras do mestre, pensamos. Um último adeus a Isaías, Jeremias, Baruc (Louvado), Ezequiel, Daniel, Oséias, Jonas, Joel, Amós, Abdias, Naum e Habacuc. Só pensamos.
Detalhe da mão de uma escultura em cedro de Aleijadinho
Subida ao Calvário
Matriz de Ouro Branco, de 1779
Descemos, agora com nossas motocicletas, para o centro de Congonhas, cujo ouro do Rio Maranhão e ribeirões adjacentes financiou a necessidade por templos religiosos, e nos dirigimos a Ouro Branco, próxima cidade do Circuito do Ouro em pauta. Pouco mais de 20km separam as duas, e o caminho entre elas é digno de menção. O Lago de Soledade, de inúmeros braços, sombreado pelos contornos da Serra de Ouro Branco, é inspirador, quebrando aquela visão de obras estritamente humanas que gozáramos até então, mudando-a momentaneamente para algo esculpido por força da natureza, mesmo sabendo que o citado lago é uma represa do Córrego de Soledade. Na zona central de Ouro Branco fomos surpreendidos pela ausência de construções antigas. Baseados nas cidades recentemente visitadas, augurávamos conhecer construções coloniais, igrejas e mais igrejas, mas tal fato não ocorreu. Duas edificações, a Igreja Matriz de Santo Antônio, de 1779, e a Antiga Casa Paroquial, de 1759, e nada mais. Perplexos, rumamos às indicações de uma placa turística e nos afastamos do centro urbano. Em um trecho da Estrada Real, entre Ouro Branco e Conselheiro Lafayete, encontramos a Casa de Tiradentes, deteriorada pelo descaso das autoridades para com a nossa História. Diz-se que os Inconfidentes, entre eles Joaquim José da Silva Xavier, reuniam-se ali para tratar dos assuntos concernentes à revolução, rotulada Inconfidência Mineira, que nunca ocorreu, isso na última década do século XVIII. Acredito que seja uma informação equivocada, haja vista a localidade da casa. Seria difícil manter algo na surdina em meio a única estrada altamente transitada na época.
Casa Paroquial, de 1759
Casa de Tiradentes
Vista da Serra de Ouro Branco
Nossa desilusão para com Ouro Branco foi dispersada ao conversarmos com um ciclista, na Casa de Tiradentes, sendo informados pelo mesmo que encontraríamos mais atrativos históricos em Itatiaia, distrito de Ouro Branco, não muito longe dali. Como era caminho para Ouro Preto, aproveitamos o ensejo, subimos a Serra de Ouro Branco e rumamos ao local, não sem antes perambularmos cautelosamente pela crista da imensa chapada via calamitosas estradas de terra. Lá em cima a visão é privilegiada e recompensa o esforço empregado. Um cerrado limpo, que me lembrou a Serra da Canastra, e esparsos amontoados de pedras graníticas, pontilharam o caminho até uma pequena capela e um cruzeiro. Torres de transmissão também estavam ali instaladas. Via-se, de 1500m de altitude, a cidade de Ouro Branco, Conselheiro Lafayete ao longe, o Lago de Soledade e o acidentado relevo dessa rica – hoje em belezas, antigamente em belezas e ouro – região mineira. Na volta para o asfalto, ainda a partir de uma posição elevada, discernimos, emparelhada pela maravilhosa Serra de Itatiaia, o distrito de Itatiaia, que não demoramos a alcançar. Novamente o calçamento se modificou, e novamente estávamos em um local histórico, contemplando a Igreja de Santo Antônio, construída em 1761, barroca e em um meio termo entre o descaso e a preservação, e as pequenas casas de pau-a-pique e barro que resistem bravamente ao inexorável passar dos anos.
Igreja de Santo Antônio, de 1761, em Itatiaia
Serra de Itatiaia
N. Sra. dos Prazeres, em Lavras Novas
Nos fundos da “vilinha” de Itatiaia, a Serra de Itatiaia, que o IBGE nomeia Serra da Chapada, se apresenta verde, imponente e de crista com altitudes variáveis, mesclando linhas horizontais e protuberâncias triangulares. Para continuar seguindo em direção a Ouro Preto fomos obrigados a contorná-la, via asfalto, atravessando algumas pontes de pedra da Estrada Real, romanas, com um arco simples. A leste, a Serra do Trovão, no alto da qual se esconde Lavras Novas, distrito de Ouro Preto. Parte do caminho até ele está asfaltada, parte não. Ficamos poucos minutos por lá, visto que o movimento de turistas era grande e poluíam em demasia as fotografias. Aliás, isso seria uma regra a partir deste momento. Fotos “limpas” rareariam. Registramos a Igreja Nossa Senhora dos Prazeres, de 1740, e logo nos afastamos do pequeno distrito onde o comércio gastronômico é ululante, com vistas a nos banharmos numa pequena cachoeira que Luana vira no caminho. Pequena, sim, porém refrescante, e veio bem a calhar num dia que, para mim, mais acostumado a mato do que a cidades, ver igrejas começava a ser um exercício enfadonho. Na verdade, são duas pequenas quedas, separadas por um parede rochosa de 4 metros de altura. De lado esquerdo as águas caem com mais vigor. Do direito apenas escorrem. O sol a pino se encarregou de secar o que a água molhara para prosseguirmos viagem, não sem antes registrar, a partir da estrada e pela última vez, a luzente Serra do Trovão.
Serra do Trovão
Cachoeira em Lavras Novas
Ouro Preto
Ouro Preto adiante. Nosso objetivo final se aproximava. Não tardou que mergulhássemos de vez na história mineira marcada pelo reluzente metal tão almejado pelo modo de vida europeu da época. Lembrei-me das descobertas de Bandeirantes que, no fim do século XVIII, chegaram a esse ermo e se apoderaram de pedaços de um material negro que, levados a São Paulo e ao Rio de Janeiro, tiveram camadas de óxido ferroso extraídas para revelar o ouro que se escondia em seu núcleo. Ouro Preto, o denominaram. Começava, então, a corrida pelo eldorado, uma exploração estabanada e desmedida que exigia altos custos, como a própria vida. Escravos, homens livres, aristocratas: todos empenhados em explorar o máximo possível dos morros e ribeirões desse local que já foi chamado de Vila Velha, depois Vila Rica e, por fim, Ouro Preto. Foi capital de Minas Gerais, cedendo o posto à planejada Belo Horizonte, construída sobre o Curral Del Rey no começo do século XX. Descemos os morros para ver o que víamos apenas nos livros de História. Desculpem-me a expressão, um jargão por assim dizer, mas não há melhor maneira de descrever essa viagem de resgate do nosso passado. Encontramos rapidamente pouso às margens do malcheiroso Ribeirão do Funil e, a pé, nos dispusemos a conhecer a maior de todas as cidades até então visitadas, para o infortúnio dos nossos estafados membros inferiores.
Pico do Itacolomi, ao fundo
Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia de Baixo, de 1773
Ig. de S. F. de Assis, de Aleijadinho
A antiga Vila Rica é uma das cidades mais fotogênicas em que estive o prazer de estar. Há elementos urbanos de quatro séculos distintos. Três serras a protegem: a Serra do Veloso, a noroeste; a Serra de Ouro Preto, a nordeste; e a Serra do Itacolomi, cujo cume é o Pico do Itacolomi, a sudeste, que possibilitou aos bandeirantes um estudo melhor do relevo local devido à posição privilegiada em que se encontra. De suas encostas também se extraiu o ouro, razão da rápida ascensão da vila. Inspirados por esse contraste entre o natural e o rústico, subimos a ladeira em pé-de-moleque da Rua Antônio Martins. Vencendo becos e uma grande escadaria localizamos a primeira das inúmeras igrejas de Ouro Preto: a de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia de Baixo, de 1773. Fechada a cadeados, com a mata ao redor das escadarias por cortar, abandonada: assim me pareceu. Possuía uma aura de anciã, mas sem demonstrar debilidade. Duzentos metros acima a segunda, mais uma bela obra de Aleijadinho, construída entre 1766 e 1810: a Igreja de São Francisco de Assis, onde atualmente está instalado um museu com peças do artista que nasceu e morreu em Ouro Preto. A este ponto já sabíamos que, para conhecer o interior dos templos, precisaríamos desembolsar uma certa quantia de dinheiro. São todas obras tombadas que albergam inúmeras e inestimáveis obras de arte. Preferimos guardar nossos poucos reais para o Museu da Inconfidência, porvindouro, que é uma coletânea dos assuntos históricos e religiosos não só de Ouro Preto, mas de todo o Estado de Minas Gerais.
Museu da Inconfidência, no prédio da Antiga Casa da Câmara e Cadeia
Praça Tiradentes
Igreja de N. Sra. do Carmo, de 1772
O casario colonial, abarcador de repúblicas estudantis, restaurantes e comércios, acompanhou-nos para o norte, momento em que o aperto das vielas repentinamente desapareceu, dando lugar à ampla Praça Tiradentes, na área central da cidade. Indiferentes à concentração claustrofóbica de turistas, deixamo-nos envolver pelo panorama, composto pela Casa da Câmara e Cadeia, erigida entre 1784 e 1846 e onde hoje funciona o Museu da Inconfidência, pela Estátua de Tiradentes, de 1894, e pela face lateral norte da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, finalizada em 1772. Perto dessa última, aos pés de sua escadaria, subsiste o mais antigo teatro em funcionamento da América Latina: a Casa da Ópera de Vila Rica, de 1770, hoje chamada de Teatro Municipal de Ouro Preto. Toda essa área central é muito bem mantida pelos órgãos responsáveis, principalmente no que se refere às estruturas, aparentemente firmes e sem sinais de desgaste, e à pintura, sempre com o branco, ou outra cor clara, contrastando com um tom mais vivo. Ainda mais ao norte, ao lado do Palácio dos Governadores, de 1741, os parapeitos de concreto da Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia de Cima, de 1771, ofereceram uma vista ainda mais apreciativa de toda a desorganização dos arredores da Praça Tiradentes e de toda a Ouro Preto em geral. Não é uma cidade planejada, como é o caso de suas contemporâneas Paraty e Mariana, tendo crescido desordenadamente ao longo do século XVIII por conta daqueles que aqui chegavam e se instalavam em busca do ouro.
Igreja de São Francisco de Paula e a Serra do Veloso
Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia de Cima, de 1771
Ig. de N. Sra. do Pilar, de 1731
No alto da Serra do Veloso, a noroeste da cidade, descemos pela rodoviária e, a partir da pichada Igreja São Francisco de Paula, edificada entre 1804 e 1898, obtivemos a panorâmica mais privilegiada de Ouro Preto até então. Via-se o sempre presente Pico do Itacolomi, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, o Museu da Inconfidência, o casario central e a Igreja de São José, de 1811, a qual Aleijadinho deu um naco de contribuição. Na verdade essa última estava na mesma ladeira, um pouco abaixo, e por ela passamos apenas para retificar nossas suspeitas de que todos os templos católicos detinham seus próprios cemitérios, no qual enterravam seus membros mais ilustres. Com mais essa informação assimilada, palmilhamos uma rua semicircular e fomos agraciados pelas formas também semicirculares da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de 1785. Foi, para mim, a mais difícil de registrar, haja vista a altura de suas torres e a estreiteza do Largo do Rosário, onde foi erigida. A luz solar colaborava cada vez menos, e numa progressão rápida, permeada por desvios bruscos de universitários inebriados que subiam em sentido contrário, fotografamos, escondida entre sobrados coloniais, a Igreja de Nossa Senhora do Pilar, na qual o padre discorria sobre o fim do mundo. Não era assunto para aquele momento. O mundo não poderia acabar com tanto por conhecer. Optamos por retornar ao principal ponto da cidade, vigiado pelo altivo líder da Inconfidência Mineira em bronze: a Praça Tiradentes. As luzes dos Museu da Inconfidência e da Igreja de Nossa Senhora do Carmo se acenderam, imitando a lua. Foi o desfecho perfeito para um dia fisicamente demandador.
Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de 1785
A noite de Ouro Preto
Igreja de Santa Efigênia
Manhã chuvosa de domingo. O subir de ladeiras continua, agora para riscar do roteiro os atrativos aos quais ainda não puséramos um olhar. Cruzamos a ponte de pedra sobre o Ribeirão do Funil novamente, palmilhando a Rua Antônio Martins até uma região conhecida como Antônio Dias, onde a Igreja Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, construída em 1727 pelo pai de Aleijadinho, Manuel Francisco Lisboa, exibia-se rósea, de pintura branca enegrecida, com o tempo a embolorá-la. Em uma das ruas de acesso a ela adentramos uma propriedade privada, que detém os direitos de visitação de uma das muitas minas de ouro de Ouro Preto. Tratava-se da antiga Mina da Encardideira, hoje conhecido por Mina do Chico Rey. Segundo fantasiosa história, Chico Rey, um escravo que antes de ser trazido para o Brasil era príncipe no Congo, conseguiu comprar sua alforria e a de vários outros escravos com o ouro extraído da mina de seu senhor, primeiro extraviando parte do metal e, depois de juntar o suficiente para comprá-la, tomando posse em definitivo da mina. Pagamos uma pequena quantia e, equipados com capacetes, caminhamos com um jovem guia pelo interior dos claustrofóbicos túneis que abrangem 7km² de área. São raros os momentos em que podemos ficar totalmente em pé, pois a baixa altura da rústica escavação não o permite, fazendo com que caminhemos agachados em noventa por cento do percurso. Diz a lenda, e também o guia, que um dos túneis dá acesso ao interior da Igreja de Santa Efigênia, distante 2km dali. Essa igreja, que ulteriormente visitamos ao subir o pior morro de todos, foi erigida entre 1720 e 1785 para os negros de Vila Rica por, dizem, intermédio e financiamento do próprio Chico Rey.
Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, de 1727
Mina da Encardideira, ou Mina do Chico Rey
Tiradentes, o líder inconfidente
Uma última missão para deixar de vez Ouro Preto: absorvermos o conteúdo do Museu da Inconfidência. Partindo da Igreja de Santa Efigênia, rapidamente passamos pela Capela Nossa Senhora das Dores, de 1788 e com as paredes laterais prestes a desmoronar, e volvemos ao centro da cidade à altamente trafegada Praça Tiradentes. Ali, o imenso casarão com traços do barroco, com duas escadas laterais para uma entrada frontal, aguardava o pagamento de oito reais para mergulhar-nos de vez na luxúria dos áureos séculos passados. São dois andares que expõem obras de Aleijadinho, Manuel da Costa Ataíde e de outros brilhantes artistas de nossa História, peças de vestuário, objetos de uso doméstico, cartas, cheques e recibos de uma época em que a palavra falada começava a não valer muita coisa. Um pouco de precaução sempre é benquista quando há ouro envolvido nas negociações. Na última sala do primeiro andar existe um espaço dedicado exclusivamente à tentativa de revolução engendrada pelos inconfidentes, com destaque para a lápide de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, líder da chamada Inconfidência Mineira, movimento contrário à cobrança do quinto – “derrama” – pela coroa portuguesa. Traídos por um próprio membro, grande parte dos inconfidentes foi exilada. No caso específico de Tiradentes, enforcado e esquartejado em praça pública no Rio de Janeiro. Seus membros foram dependurados em árvores ao longo do Caminho Novo da Estrada Real como forma de acalmar os ânimos de quem porventura estivesse cogitando levar a cabo novas tentativas de insurreição. Infelizmente não é permitido que se fotografe o interior do museu. A lembrança disso tudo terá que ser mental, e não fotográfica.
Adeus, Ouro Preto
Mariana
Antiga Casa da Câmara e Cadeia
A despedida de Ouro Preto foi emotiva. Nunca antes me deixara envolver tanto por obras humanas como nesta cidade. Luana e Ari partilhavam idêntico sentimento. Por incrível que pareça não necessitamos nos afastar muito dela. Pela Rodovia dos Inconfidentes, 20km depois, envolvia-nos Mariana, primeira cidade de Minas Gerais e, portanto, primeira capital. Estávamos agora do outro lado da Serra de Ouro Preto e da Serra do Itacolomi. Tratamos de encontrar pouso, livrar-nos do excesso de bagagem e, a pé, desbravar o Centro Histórico cheio de peculiaridades e consideravelmente menor que o de Ouro Preto. E quão grande foi nossa surpresa ao nos depararmos, logo de cara, com as duas igrejas que evitam se encarar mais famosas do nosso Brasil: a de Nossa Senhora do Carmo, de 1783, e a de São Francisco de Assis, de 1762. Construídas a poucos metros de distância uma da outra, perpendiculares entre si e muito semelhantes em seus desenhos, em uma época onde a rivalidade entre os barões do ouro chegava ao ponto de duelarem para ver quem conseguiria erigir a melhor igreja. Deu no que deu: um belo cartão de visitas para Mariana, mas mais um capítulo sórdido intermediado pelo excesso de ouro. O mais engraçado é que a Antiga Casa da Câmara e Cadeia, da segunda metade do século XVIII, em um dos lados da mesma praça onde se encontram as “inimigas”, testemunha todo o embrolho. Será que ambas não pecaram ao procurar o local ideal para a construção? Logo em frente à cadeia? Brincadeiras à parte, o certo é que a antiga cadeia, que hoje abriga a Câmara dos Vereadores, é, também, uma bela obra arquitetônica e, em seu interior, quadros da realeza portuguesa estão gratuitamente expostos.
Igrejas de S. F. de Assis (1762), à esquerda, e de N. Sra. do Carmo (1783), à direita
Basílica de N. Sra. da Assunção, de 1760
Ig. de S. P. dos Clérigos
Nossos próximos passos foram em direção a Praça da Sé, de frente para a qual foi edificada, em 1760, a Basílica de Nossa Senhora da Assunção, ou simplesmente Catedral da Sé. Ao seu lado, uma rua reta com um casario colonial que abriga diversos comércios, todos obviamente fechados por ser um domingo. Quis mencionar “ruas retas” porque Mariana, como frisado anteriormente, foi uma cidade planejada desde o princípio, quando ainda era vila, no alvorecer do século XVIII. Suas vias são muito mais intuitivas que as de Ouro Preto e, usando isso a nosso favor, encontramos prestamente todos os outros atrativos, como a Capela de Sant'Ana, de 1720, na mesma rua da Praça da Sé, mas um pouco mais afastada do centro, em uma área residencial. Depois, passando pela Praça Doutor Gomes Freire, forrada de munícipes, localizamos a Capela de Nossa Senhora da Boa Morte, de 1750, com ampla área verde e concentração de pássaros. Subindo uma ladeira, mais desgaste muscular e mais um templo: a Igreja Arquiconfraria de São Francisco dos Cordões, com as torres em reforma, de 1780. Somente Luana e eu quisemos fotografar uma outra, mais escondida, numa rua atravessada: a Igreja de Nossa Senhora das Mercês, de 1787 e de dimensões reduzidas. Nos reunimos a Ari poucos minutos depois em um dos pontos mais altos da cidade, nas imediações da belíssima Igreja de São Pedro dos Clérigos, de aspecto amadeirado por apresentar uma tonalidade marrom, remetendo ao barro. Dela se tem uma ampla vista de toda Mariana, não somente de seu Centro Histórico, mas também de sua área residencial mais moderna e periferias. É da segunda metade do século VIII. Aqui terminamos nosso domingo. Aqui planejávamos o regresso para casa.
Capela de Nossa Senhora da Boa Morte, de 1750
Seminário de São José, também de 1750
Itabirito e sua Matriz, de 1720
Na segunda-feira, dia 19, pulamos cedo da cama, pois ainda faltava conhecer a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de 1752, que víramos ao longe, no alto de um morro do outro lado da cidade. Aproveitamos o ensejo e passamos pelo Seminário de São José, escondido entre altas palmeiras. Tem uma bela imagem de Cristo em azulejos azulados numa espécie de torre central. Chegando à igreja supracitada, a fotografamos e repensamos para onde iríamos a partir dali. Sabará, representante do Circuito do Ouro, estava longe e não teríamos tempo hábil para visitá-la. Ficaria para uma próxima viagem. Optamos, então, por voltar pela Rodovia dos Inconfidentes, cruzar Ouro Preto pelo perímetro urbano e rumar para Itabirito, cidade mais modesta e também detentora de importantes obras arquitetônicas do século XVIII. Teve seu quinhão de ouro, mas foi na extração de ferro que se destacou. Na antiga estação obtivemos essas informações e mais algumas que nos levaram ao pequeno Centro Histórico. Subindo a ladeira São Francisco, de pé-de-moleque, topamos com a Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem, de 1720, e subindo mais ainda, com a Igreja Nossa Senhora do Rosário, do começo do século XVIII. Dessa última vimos as outras duas, às quais seguimos após atravessarmos a Rua 7 de Setembro, com um charmoso casario colonial. Mais uma ladeira e nossa saga pelo Circuito do Ouro se encerrava com as fotografias das Igrejas Nossa Senhora das Mercês, de 1764, e Bom Jesus do Matozinhos, de 1765. Nossa breve estadia em Itabirito, cidade natal de Telê Santana (há uma estátua de bronze em sua homenagem numa das ruas do centro moderno), testemunharia, pelo retrovisor, nossos primeiros quilômetros no retorno para casa.
Igreja de Nossa Senhora do Rosário, do começo do século XVIII
Igreja do Bom Jesus do Matozinhos, de 1765
São Thomé das Letras
A Rodovia dos Inconfidentes nos desembocou na BR040, passando pela ressequida Represa das Codornas. Fomos subindo sentido Belo Horizonte, que contornamos pelo anel viário. A capital, gigantesca, não nos apeteceu, e aceleramos para longe dela pela Fernão Dias. Daí pra frente foram 300km de pedágios e monótona pilotagem até Três Corações, pela qual passáramos no primeiro dia de viagem. Desta feita, contudo, adentramos sua zona urbana, acessando uma vicinal que nos levou, anoitecendo, a São Thomé das Letras, a 1440m de altitude. Nela dormiríamos nessa última noite de viagem. Acordaríamos no dia seguinte, logo cedo, apenas para uma visita rápida pelos mirantes magníficos do Parque Municipal Antônio Rosa, como o Cruzeiro e a Pirâmide, construção de pedras encaixadas sem qualquer espécie de argamassa entre elas. Aliás, tudo em São Thomé é feito de pedras, notadamente quartzito, sendo sua extração a principal fonte de renda da pequena e mística cidade. Dizem que aqui pousam OVNIS. O que sei é que a Igreja Matriz é de 1785, construída ao lado da Gruta de São Thomé, que segundo a lenda guardava a imagem de São Tomé encontrada por um escravo que se escondera ao fugir de seu senhor, dando origem ao nome da cidade. Há também uma outra, a de Nossa Senhora do Rosário, do século XIX, toda revestida em pedra. Para finalizar com chave de “ouro” nossa passagem, um banho de cachoeira no gélido Vale das Borboletas. Era hora de regressar. Hora de alienar-nos novamente.
Igreja de Nossa Senhora do Rosário, revestida com pedras de quartzito
Vale das Borboletas
Regresso à estática vida
Deixamos São Thomé das Letras às 14h de uma terça-feira de Consciência Negra, para a maioria dos paulistas, mas de trabalho para o proletariado mineiro. Cruzamos a movimentada Três Corações sob uma fina garoa que, quando já estávamos na Fernão Dias, transformou-se em um pesado dilúvio. O sol e a chuva, a partir daí, foram se alternando até o município de Pouso Alegre, a partir de onde o astro-rei prevaleceu pelo resto do caminho. Em Atibaia, acessamos a Rodovia Dom Pedro e nela permanecemos até Campinas, pagando, nesse decorrer, dois onerosos pedágios que, digo, me despertaram aquela vontade louca de abandonar tudo e seguir a pé, como fizéramos em todas as cidades do Circuito do Ouro em que estivéramos. Na Anhanguera, batizada com o nome de um bandeirante temido pelos índios, rodamos nossos últimos quilômetros em
direção ao comum, à vida cheia de engodos, contas a pagar e falsas relações sociais por manter. Ari, no trevo de Sumaré, despedia-se com um aceno, deixando Luana e eu a sós sobre a minha fiel companheira, minha moto, símbolo de minha resistência e sede de conhecimento. Luana apeou na Praia Azul e eu, sozinho, trilhei os últimos quilômetros dos 1600 totais em direção a minha residência. No fim somos todos bandeirantes, “matando” o que quer que esteja no caminho em busca de um “eldorado”. Custe o que custar.
Uma voz estridente gritava em minhas orelhas: go south! Era, na verdade, o refrão de uma senil canção, intitulada Go West, mas estava eu tão absorto na vã tentativa de concatenar meus próprios pensamentos que devo ter entendido errado. Pois bem, atenderei a mais este apelo. Com parte da nossa História devidamente internalizada, documentada e, nesta postagem, externalizada (à minha maneira, eu sei), partirei à caça de ermos tão desconhecidos por mim quanto a psicótica mente de um assassino em série, por mais complicado que seja o caminho. No fim, como sempre digo aos meus alunos em um simples português, é preferível sucumbir à fadiga a desistir pela falta de vontade. Go South!