terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Americana, Pirassununga e Descalvado – 24 e 25 de dezembro de 2011


Imiscuo-me na história do meu povo, da minha cidade, região, Estado e país. Não nego os sentidos arraigados neste “projeto” da natureza chamado raça humana, sempre em constante desenvolvimento, e transformo-os todos em meios de aproximação do meu corpo com o organismo Terra, este também em constante evolução darwinista. Enquanto alguns preferem negar as próprias percepções, sentimentos e instintos, prefiro avivá-los, aproximando-me do ideal de ser humano que sempre devaneei: um animal realmente racional, sensível, submisso a um poder maior – a Natureza – mas ao mesmo tempo integrado à sua dinâmica. Recordo-me dos ensinamentos de Marx e Engels, quando começaram a perceber que a humanidade se enviesava a um caminho alienatório ao invés de a um caminho emancipatório: o mundo, sem o ser humano, consegue se manter. E o homem sem o mundo?
A primeira parte: Americana
Esta viagem, levada a cabo num momento festivo para a cultura ocidental, pode ser dividida em duas partes: uma despretensiosa e outra nem tanto. No dia 24, por exemplo, após uma descontraída reunião em minha casa, regada a cigarros de palha (“paiêros”), cachimbo e blues, Luiz Paulo Blanes, Éwerton Cunha e eu partimos em uma cruzada pela parte norte do território de Americana, mais precisamente nas áreas limítrofes com os municípios de Cosmópolis e Paulínia, com vistas a conhecer alguns recônditos do Rio Jaguari, que juntamente com o Atibaia formam o Rio Piracicaba, também em Americana. No dia 25, como já acordado durante a semana anterior entre Luiz e eu, dirigimo-nos à zona rural de Pirassununga e ulteriormente a Descalvado, infelizmente sem a presença de Éwerton, intentando encontrar duas grandes cachoeiras que, apesar de próximas, são pouco conhecidas na região.
O Jaguari e restos da Funilense
Sob o sol forte do dia 24 deixamos meu domicílio, sobre nossas motocicletas, em direção ao Salto Grande, bairro de Americana com um peso histórico significativo. Dele se ramifica uma rodovia secundária que une a cidade a Cosmópolis e Paulínia, a qual adentramos. Sempre com a Represa de Salto Grande ao lado direito da paisagem, vagarosamente trilhamos por entre o mar de cana-de-açúcar, passando por duas rotatórias que nos direcionam às cidades supracitadas. Rumamos sentido Paulínia. Ao avistarmos uma plantação de soja ainda em fase de florescimento, deixamos o asfalto e nos embrenhamos por uma estrada de terra, alcançando em alguns minutos uma vegetação mais fechada. Chegávamos às margens do rio Jaguari que, com suas águas barrentas e força, nos presenteou com um cenário que, além de belo, descobrimos ser também histórico, graças ao nosso companheiro Éwerton, praticamente um especialista da história das ferrovias no Estado de São Paulo.

Salto a partir dos pilares da antiga Cia Carril Funilense

Pegada de capivara
O rio Jaguari nasce na Serra da Mantiqueira, no Estado de Minas Gerais, e no local em que o interpelamos está a aproximadamente cinco quilômetros de sua foz. Uma cachoeira no estilo “corredeira”, de talvez quatro metros, desce ferozmente por entre rochas naturais e resquícios de bases de colunas de concreto. Luiz, que chegou a saltar em meio ao turbilhão de água ao pé da queda, acreditava ser estas estruturas vestígios de uma antiga barragem, o que não foi corroborado por Éwerton. Segundo ele, a presença de vigas de ferro incrustadas nas estruturas de concreto são remanescências de uma ponte férrea que passava por ali com sentido a Cosmópolis, sobre o rio, o que foi confirmado por pesquisas posteriores. A linha, construída pela Cia Carril Funilense em 1899, partia de Campinas e cessava em Barão Geraldo de Rezende, atual Cosmópolis. Foi incorporada a Sorocabana em 1921 e fechada 39 anos depois, tendo seus trilhos arrancados. Esta é uma parte de minha cidade que eu desconhecia. A beleza do lugar e sua bagagem histórica muito nos impressionou. Há de se ressaltar, ademais, a fauna que subsiste às margens do rio. Observamos garças-mouras, savacus e, ao retornar às motocicletas, pegadas de capivaras.
Quebra-popa do rio Jaguari
Após uma homeopática dose de conhecimento sobre nossa própria cidade, deixamos esta altura da orla do Jaguari para encontrarmos uma outra, já mais próxima à confluência com o Atibaia. Voltamos via asfalto até uma estrada, parelha a uma pedreira do Salto Grande, que em meio aos canaviais de Americana nos direcionou a uma mata mais fechada, nas proximidades do Aterro Sanitário. A terra traiçoeira exigiu muito esforço de nossa parte. Éwerton atolou uma vez e tivemos que ajudá-lo a movimentar sua motocicleta, que não ia para frente nem para trás. Alcançamos a margem do Jaguari novamente, após uma breve trilha a pé e, para o nosso espanto, o volume de água do rio nesta altura de seu curso era temível. O interessante, na verdade, era um caminho de rochas engruvinhadas que se estendia de uma margem a outra, formando uma espécie de cais que atravessa 80% do rio, ou uma semibarragem natural. Os pescadores nomearam este local de “quebra-popa”, já que muitos barcos sofreram avarias devido às rochas que se camuflam rasamente sob a característica água barrenta do rio. Este é outro “paraíso” em Americana que poucos moradores conhecem. O que mais admirei aqui, na verdade, foi a vegetação relativamente bem preservada das margens e aquela silenciosa tranquilidade somente sentida nas beiras de rios muito remotos, o que não é o caso deste.

Formações rochosas que praticamente atravessam o rio Jaguari

Antiga Usina São José
De volta ao Salto Grande, mais precisamente à ponte sobre o rio Atibaia, atracamos as motocicletas à sombra e circundamos o Casarão do Salto Grande, localizado na antiga – e escravagista – Fazenda Salto Grande. Foi transformado em museu pedagógico, mas danos em suas estruturas obrigaram a prefeitura a interditá-lo. Já faz um tempo que suas portas estão fechadas, e me parece que nenhum esforço vem sendo empregado na tentativa de reabri-lo ao público. É um caso bem diferente do da Fazenda Santa Maria do Monjolinho, em São Carlos, na qual tudo é preservado para o estudo desta época obscura da história brasileira. Lamentos à parte, fotografamos a antiga Usina São José e suas imponentes chaminés. A degradação do rio Atibaia foi o que mais me chamou a atenção. Do ponto onde deixamos nossas motocicletas, são 200 metros de caminhada até chegarmos à confluência do mesmo com o Jaguari. Isso significa que o Piracicaba, o maior afluente do Tietê, se principia aqui.
Casarão do Salto Grande
O despretensioso dia 24 assim se encerrou. Despedi-me de meus camaradas que, pela Anhanguera, seguiram para seus lares. Não obstante, no dia 25, logo pela manhã, Luiz Paulo e eu nos reunimos para uma nova empreitada, esta programada a alguns dias. Mesmo com a relutância de nossos amigos, que tentaram nos dissuadir da ideia de viajar nesta data, partimos de Americana em busca de duas cachoeiras nas redondezas da cidade de São Carlos, a aproximadamente 130km de nossa cidade natal. Partimos pela Rodovia Anhanguera até Pirassununga, na qual acessamos um viaduto e a SP225, com sentido a Analândia. Permanecemos nesta rodovia por cerca de 10km, momento no qual nos embrenhamos por uma estrada de terra rumo ao coração da zona rural das cidades de Pirassununga e Analândia, e na qual, segundo informações que eu detinha, esconde uma grande queda d'água que até mesmo os pirassununguenses e analandenses desconhecem.

Poucos metros abaixo desta ponte se encontra a cachoeira Monte Sião

Cachoeira Monte Sião
É muito fácil nos perdermos em estradas de terra. Sem placas indicativas, andamos em círculos por vários minutos. Fomos obrigados a parar em uma sítio para nos situarmos. Informados pelo sitiante, colocamo-nos no caminho correto e descemos por uma estrada arenosa, em direção a um vale, no qual trespassamos uma ponte de madeira. Sobre ela já era possível escutar o barulho da cascata. Sabíamos, mediante pesquisa prévia, que muitos roubos acontecem nesta área. Resolvemos, então, descer com todas as tralhas, o que dificultou a descida a pé pela trilha até a base da cachoeira. Pedras escorregadias, pirambeiras e barro hostilizavam o caminho, mas sem muitas delongas o vencemos. A cachoeira de Monte Sião, com 30 metros de esplendorosa queda, finalmente nos contemplaram com sua singular maneira de ser influenciada pela gravidade. Do lado esquerdo a água cai mansa, enviesando-se pelos sulcos do paredão do vale; do lado direito cai em queda livre, deixando um espaço praticamente vago entre o véu e o paredão.
"Ducha" natural
O dia, quente, era convidativo para um banho. Adentramos a queda, escorregando algumas vezes até alcançarmos o ponto de choque entre a água e as rochas, e garanto nunca ter estado em uma cachoeira de temperatura tão morna quanto esta. A força da queda, que de longe assusta, não é tão violenta quando golpeia o corpo, o que a torna uma cascata ideal para pessoas de qualquer idade e condicionamento físico. No espaço entre o paredão e o véu, que quase não chega a molhar, presenciamos um fenômeno inusitado: alguns feixes menores da queda se chocam com as pedras, formando gotículas que sobem e ficam presas entre os feixes maiores, flutuando e bailando como enxames de insetos frenéticos. Infelizmente não tive como fotografar tal efeito. De fato, foi difícil até mesmo fotografar a cachoeira de longe, visto que os vapores de água, somados ao vento, gotejavam a lente da câmera constantemente. Luiz Paulo, que geralmente não verbaliza suas impressões, desta feita aventou odes a Monte Sião.

Monte Sião vista do curso d'água

Coruja-buraqueira
De volta às motocicletas, iniciamos a parte mais árdua da viagem: encontrar o caminho, por entre o labirinto de estradas de terra que cortam plantações de soja, laranja e cana-de-açúcar, para Descalvado, cidade que abriga outra cachoeira que pretendíamos conhecer. Rodamos por muito tempo sem avistarmos pessoa alguma, o que nos desnorteou acima do usual. Felizmente um pequeno caminhão, guiado por um sitiante local, cruzou o nosso caminho. Solicitamos informações e, sem perder a Serra do Descalvado de vista, já perceptível ao longe, trilhamos pelas perigosas estradas arenosas e repletas de poças d'água. O cansaço de pilotar em terreno tão acidentado e pesado foi recompensado pela visualização de inúmeras aves, como seriemas, corujas-buraqueiras e carcarás, e pequenos répteis que ocasionalmente cruzavam a estrada. Consegui fotografar apenas uma coruja-buraqueira. Frustrado, voltei a utilizar minha câmera somente quando nos aproximávamos do asfalto de Descalvado. A Serra do Descalvado – que apesar do nome não é desprovida de vegetação – e sua altitude de 900m pareciam ondas estáticas ameaçando desabar sobre nossas cabeças.
Serra do Descalvado
Uma vez no asfalto de Descalvado, poderíamos seguir em direção a São Carlos, mas não sabíamos a exata localização da cachoeira Salto do Pântano, que pretendíamos conhecer. Preferimos, então, coletar coordenadas no centro da cidade, o que não surtiu muito efeito. Aos olhos dos moradores que interpelamos na cidade, não há cachoeira alguma dentro do território de Descalvado. Perguntamos a um frentista de um posto de combustível, e duvidosamente o homem nos indicou o caminho. Era o que tínhamos. Tivemos que nele confiar. Como bons alquimistas da estrada, seguimos nossas intuições. De volta à rodovia, rumamos a São Carlos. Após um vertiginoso declive, abandonamos o asfalto para estrear a terra de Descalvado. Sempre em frente, transpassamos, depois de 3km, uma ponte sobre o Rio do Pântano. Os ruídos de uma enorme e potente queda já eram perceptíveis. Novamente era chegada a hora de nos separarmos de nossas motocicletas e descer a pé um profundo vale.

Altitude de 900m

Salto do Pântano
A trilha, íngreme e castigante, apesar da ajuda de degraus de concreto, foi vencida lentamente. A quiçaça alta, próxima à cabeceira da cachoeira, cortou meu rosto e, além disso, quase me fez perder o chão, caindo ribanceira abaixo. De uma árvore de tronco diagonal já podíamos ver os 42 metros de queda do Salto do Pântano. A água, barrenta como a do Rio Jaguari, procura torrencialmente, com a ajuda da gravidade, o piso do vale, este adornado por lírios-do-brejo que certamente nunca terão a sensação de estarem secos, uma vez que o vapor de água resultante da queda tem um poder de alcance impetuoso. Para se ter uma noção da força da água, só consegui fotografar a cachoeira, sem a petulância das gotículas afrontando a lente da câmera, de uma distância superior a 100m. O meu medo de águas torrenciais – não sou um exímio nadador – e a gripe de Luiz Paulo nos dissuadiu do intento de nos banharmos nesta cachoeira. Espero ter registrado com um mínimo de maestria esta admirável queda.
Luiz e Dom Lino
Subir pela trilha foi bem mais desgastante do que descer. Sobre a ponte do Rio do Pântano tentávamos sorver o ar úmido da mata ciliar, objetivando esfriar nossos corpos que se desfaziam em sudorese. Conversamos com um motociclista que aguardava um amigo no local, enquanto isso. Solicitamos coordenadas para outras cachoeiras locais, mas o cidadão não soube nos informar os caminhos que nos levariam a elas. Nem mesmo na internet consegui informações, o que lamento bastante. Não gosto de partir de uma cidade sabendo que deixei possíveis visuais marcantes para trás. Pesquisando, descobri que o verdadeiro nome do Salto do Pântano é Salto Dom Lino, em homenagem ao bispo Dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho, que em 1883 se encantou com a queda d'água. Aprender História viajando é um dos meus maiores prazeres nesta mesquinha vida pontilhada de fúteis informações. Digo, sem medo de parecer presunçoso, que tenho pena de quem não quer conhecer nossos recursos naturais e nossa História, ou de quem prioriza apenas um destes. A práxis, a meu ver, é talvez o que mais tenha meios de possibilitar uma apoteose humana. Esta foi a parca conclusão a que cheguei enquanto retornava pela Anhanguera, findando os 310km de Natal, data que para mim seria insignificante se eu não estivesse na estrada.
Ela, La Bela Luna, não está aqui. O mundo, este sim, está. O seu tamanho, a sua abrangência, os seus recônditos me atraem. Como um agente deste planeta me incumbo da missão de fazer alguns verem o que a pusilanimidade os impossibilita. Eu, longe de ser um exemplo de ser humano, “comprei uma briga” da qual não consigo mais me desvencilhar, por mais que tente. Meu coração, eivado de sentimentos abstratos, vai adquirindo sensações concretas no decorrer de minhas experiências palpáveis. Preciso de ambos para manter a sanidade. Pergunto, para finalizar, e agora com medo de ser redundante: o mundo, sem mim, se perpetua. E eu sem o mundo?


Mais fotos aqui.

E abaixo um blues, gravado por Mr. Shadow em um momento de descontração pouco antes de partirmos para o rio Jaguari, no dia 24. Foi composto inicialmente para La Bela Luna, mas o estendo aos locais que conhecemos nesta curta incursão.

2 comentários:

  1. Obrigada Marcos pelo lindo passeio...
    Feliz 2012!

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  2. Como sempre lindo e perfeito seus relatos, ainda não sei se é um anjo ou um demônio, mas sei que apaixonado pela vida te admiro muito e o Blues como sempre perfeito sds.

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