O trabalho alienado, subproduto mais intoxicante do capitalismo selvagem (aquele mesmo que cerceia nossas capacidades), extrai do ser “escravizado” a possibilidade de enxergar além do que está ao alcance de suas mãos e do que, prerroga, é necessário ao sucesso profissional. Com os anos virando história, cada vez mais nos tornamos imediatistas, corporativistas, egoístas e cegos. Talvez tenhamos essa necessidade premente – eu, inclusive – de percorrer maçantes distâncias para conhecer lugares longínquos porque desejamos esquecer a microdimensão em que estamos atolados. Queremos ter aquela falsa sensação de que podemos “enxergar o horizonte” a despeito do que a coerção social nos permite. Hoje, porém, agi diferente. Deliberadamente busquei conhecer o que estava “embaixo do meu nariz” o tempo todo. Vi aquilo que ignorei, por muito tempo, simplesmente por achar que estava perto demais e não merecia a minha atenção.
Tucano
Pouco mais de 12km separam o meu domicílio do meu local de trabalho. Eu e minha motocicleta trilhamos inúmeras vezes esse mesmo caminho – Vila Mariana-Anhanguera-Praia Azul e vice-versa – e sempre nos deixamos levar pela morgação provida pelos redundantes cenários. No dia 6, contudo, alguns sinais me indicaram que o clima estava propício para a visualização de aves. Logo ao acordar fui agraciado com a vista de um tucano sobre as árvores desfolhadas em frente a minha casa; e pouco depois um casal de corujas-buraqueiras também deram o ar de suas graças. A avifauna brasileira me encanta. Tendo que que me dirigir ao trabalho para alimentar um cachorro encontrado na rua e que adotara recentemente, optei por carregar comigo minha câmera. Convidei Franciane para me acompanhar e, após apanhá-la em Limeira, adentramos os domínios da Praia Azul, um dos bairros mais antigos e isolados de Americana.
A represa, os aguapés e as boias
Dispostos a andar pelo bairro com Logan, o cachorro, chegamos à Orla da Praia Azul, como é conhecida a margem esquerda da Represa do Salto Grande. Trabalho há 5 anos nas redondezas e nunca havia parado sequer por cinco minutos à beira d'água para observar a paisagem. Historicamente o local tem sido palco para a prostituição, mas é também uma área de lazer e convívio entre os moradores. Os mais abastados manobram seus jet-skies e alguns pescadores se concentram na parte central do lago. Quiosques e bares completam o panorama. Nós três, sentados ao mural, principiamos o processo de idealização. Se a Prefeitura levasse a cabo os projetos de revitalização da orla recentemente trazidos à baila, o que mudaria?
Lazer entre as macrófitas
A Represa de Salto Grande e seus pouco mais de 101km² está estabelecida na bacia hidrográfica do Rio Atibaia, mais precisamente entre os municípios de Americana, Nova Odessa e Paulínia. A inundação da área data do ano de 1949, quando a Usina Hidrelétrica de Salto Grande foi construída para atender as demandas energéticas da região. A orla então nascia e, nas décadas em que exalou sua beleza, foi frequentada por banhistas e outras pessoas que eram atraídas para suas águas por motivos diversos. Acontece que Americana, cidade com maior parte do território da represa, tem passado nos últimos anos por um processo de migração da produção têxtil para a produção agrícola, notadamente com o cultivo da cana-de-açúcar. Deste modo, a margem direita, onde se concentra a maior parte das plantações, acabou se tornando via de entrada de pesticidas, herbicidas e fertilizantes, o que tem contribuído para a poluição da água e para a proliferação de macrófitas, como os aguapés, inviabilizando o turismo na represa.
Coruja-buraqueira
As colônias de aguapés são notáveis na margem esquerda, tanto que boias de contenção foram instaladas como forma de coibir o avanço destas macrófitas para outras áreas. Elas se aproveitam do excesso de matéria orgânica disponível na água e se multiplicam desmedidamente. Logicamente a diminuição do número destes vegetais se faz necessária, pois a ação dos mesmos, juntamente com a de outras algas tóxicas, como as cianobactérias, provoca a diminuição dos níveis de oxigênio na água, causando a mortandade dos peixes e, consequentemente, o desaparecimento de outros animais logo na sequência da cadeia alimentar. As macrófitas podem “limpar” o corpo d'água e ajudar a conter a poluição, mas vale lembrar que, quando mortas e decompostas, devolvem ao meio ambiente tudo o que dele extraíram.
Jaçanã
Apesar dos pesares, a Represa de Salto Grande ainda abriga uma considerável quantidade de espécies. Pude fotografar uma carão (foto que abre a presente postagem) sobre os aguapés, além de um casal de jaçanãs que ciscavam freneticamente à procura de insetos entre a mesma vegetação. Jacarés também habitam estas águas, mas não fui capaz de encontrá-los. As árvores que adornam a orla são locais perfeitos para os joãos-de-barro e os bem-te-vis, também registrados em câmera. Resta-nos esperar que atitudes sejam tomadas para que a agricultura na margem direita da represa seja menos dolosa ao corpo d'água e que possíveis focos de esgoto sejam coibidos, reavivando ainda mais a fauna local.
Não tenho medo de deixar o meu trabalho à revelia. Posso abrir a porta, ocasionalmente, e pendurar essa capa que me cobre, que me pseudocaracteriza, que me faz interpretar esta personagem amorfinizada pela economia de mercado na qual subsisto. Não nasci para ser professor, fotógrafo, mecânico, biólogo, piloto ou engenheiro. Nasci para ser tudo isso e o que mais desejar. Aqui dentro há bilhões de neurônios. Eles estão disponíveis por uma razão. Posso sentir. Posso ser. O que vem depois do SER é de minha escolha.