Muitas vezes me apanho pensando nas mazelas do sedentarismo. Eu, embora seja um educador físico por formação, não me refiro ao termo enquanto falta de atividade motora, mas sim no sentido sociológico, ao estar geograficamente inerte, assentado sobre um mesmo local por longas estações. Penso, ademais, em um período longínquo da história em que o ser humano passou a estocar alimentos (carne de caça e frutos) ao invés de mudar constantemente em busca de outros campos onde as presas fossem abundantes, passando do nomadismo para o atual estado que a sociedade perpetua, sedentário. E penso, por fim, que hoje não temos mais a necessidade de permanecermos hirtos, pelo menos não o tempo todo. A modernidade nos trouxe o conforto de termos tudo às mãos, contribuindo para a pusilanimidade, para a preguiça, para o comodismo. Contudo, essa mesma modernidade ferrenhamente combatida pelos saudosistas (e amiúde por mim), que é apontada como a grande culpada pela nossa alienação por meio principalmente de aparelhos eletrônicos (computadores, celulares, televisão), também nos presenteou com a possibilidade de nos movermos para cada vez mais longe de nossos domicílios, e cada vez mais rápido. A meu ver, portanto, é um erro execrável crer que temos acesso a todos os conteúdos do mundo sem movermos os pés, pois os avanços tecnológicos nos incitam exatamente ao contrário. Podes pesquisá-los, em textos, vídeos e imagens, e logo após, in loco, desfrutar-se dos mesmos materialmente, fechando o ciclo que muitos teóricos denominam práxis (a comprovação, na prática, da teoria). Portanto, minha visão é a de que se deve, levando-se em consideração os atuais pormenores da vida capitalista e cristã, dos quais dificilmente poderíamos nos dissociar, buscar um equilíbrio entre o sedentarismo (trabalho, família, lar) e o nomadismo (viajar, isolar-se, “sumir” no mundo sem motivos aparentes para outras pessoas).
A propósito, nômades ainda existem nos ermos desertos africanos, mas hoje são exceção, e não a regra. Longa vida a eles.
Partindo para o coração do Brasil
Minha gana de viajar sempre esteve atrelada a pesquisas e aspirações particulares, totalmente minhas. Não obstante, desta feita fui um mero coadjuvante, um coautor nos planejamentos de meu caro camarada Thiago Lucas Santos. Quando o mesmo demonstrou interesse em desbravar a Chapada dos Veadeiros, desfrutando de um período de férias forçadas, prestamente me organizei para tentar acompanhá-lo, haja vista que seriam dez dias laborais normais (dias úteis) para mim, excetuando-se o feriado de primeiro de maio. Tudo foi alocado onde deveria, e em dois, portanto, rumaríamos para o coração do Brasil, no Estado de Goiás, uma região que sites que se dizem especializados exibem apenas superficialmente, não fidedignos com a complexidade das intrincadas serras que a compõem. É mais um daqueles recônditos negligenciados por viajantes brasileiros, que não demonstram interesse em intimizar-se com o imo do país, seja devido ao difícil acesso seja pela prioridade de ir a outro país em detrimento ao nosso. Enfim, como diria novamente meu camarada Thiago Lucas Santos, talvez falte um pouco de patriotismo aos jovens de hoje, e acrescento à fala do intrépido que não precisamos daquele choro ao cantar o hino nacional – uma das críticas clássicas de Antônio Abujamra – ou demonstrações de indignação com os problemas sociais que eivam nosso grande “feudo”. Carecemos de uma curiosidade mais eloquente para com a nossa História e nossos biomas ainda relativamente bem preservados.
Rio Grande
Partimos de Americana, mais precisamente do bairro Praia Azul, exatamente às 11h da manhã de um causticante 25 de abril, um fim de mês que ainda prometia muitas surpresas para dois andejos incautos. Sabíamos que a fatídica Anhanguera, a rodovia “diabo velho”, não nos seria assim tão surpreendente. E realmente não foi, levando-nos por perímetros urbanos de cidades como Leme, Pirassununga e Ribeirão Preto, permanecendo praticamente o tempo todo retilínea e sem trechos com mudanças bruscas de altitude. Lá pelas bandas de Aramina Igarapava há uma nesga de mudança, com leves montanhas das serras do Campo Redondo e da Pedra Branca despontando aqui ou acolá até o vale do rio Grande, na divisa do Estado de São Paulo com Minas Gerais. As águas azuis-celestes desse grande formador do rio Paraná são o passatempo preferido de pescadores aos quais o encômio paciencioso não encontraria rival de parelho significado, visto que os mesmos, imóveis, aguardavam o frêmito dos corpos subaquáticos na outra extremidade da linha. Não nos demoramos muito por ali, tocando em frente pela BR-050 (rodovia Chico Xavier), agora em solo mineiro, passando por Uberaba e pelo anel de contorno de Uberlândia, com a companhia de opulentos buritizais na paisagem, demonstrando que a água aqui é abundante. Afinal, onde há buritis, há muita umidade. Vale lembrar que essa região é conhecida como Triângulo Mineiro, ou nariz de Minas, ou mesopotâmia triangulina, ou ainda antigo Sertão da Farinha Podre, uma terra que já pertenceu a Goiás (mais detalhes na postagem sobre Marechal Mascarenhas e Desemboque). Uma breve passagem pelo rio Araguari e estávamos na cidade de Araguari, atravessando o rio Paranaíba, limite norte do triângulo mineiro e de Minas Gerais. Daí pra cima já é Goiás, o coração do Brasil. Registramos, no rio que, a exemplo do Grande, também é formador do Paraná (ambos confluem em Aparecida do Taboado e Santa Fé do Sul, na divisa entre Mato Grosso do Sul e São Paulo), os ranchos flutuantes de pescadores que, para usufruir melhor do escasso tempo, preferem dormir atracados às margens do rio de leito pedregoso ao invés de regressar para suas casas fixas no fim de cada dia. É uma cena que eu nunca havia visto antes. Transportar a própria casa rio abaixo é privilégio para poucos. Por fim, alcançamos Catalão, finalizando o primeiro dia de incursão às 18h, no caos de uma grande cidade, após 590km rodados.
Pescador no rio Grande
Rio Paranaíba
Rancho flutuante
Morro de São João, em Catalão
No dia 26, logo às 7 da manhã, registramos a parte mais alta da cidade de Catalão: uma singela igrejinha, precípua, tombada pelo poder público, no alto do Morro de São João, ou Morro da Saudade. É o meu ateísmo novamente cedendo ao apelo arquitetônico dessas obras religiosas. Recolocamo-nos na BR-050, sempre sentido norte, envoltos agora pelo cerrado, responsável por 33% da biodiversidade brasileira. Em Pires Belo, poucos quilômetros depois, demos uma guinada de 15km para o leste à procura do recente reservatório da UHE da Serra do Facão, formado pelas águas represadas do rio São Marcos em 2010. Apeamos das motos em uma ponte extensa sobre aquela imensidão azul, de um tom bem mais escuro que o céu cândido da manhã goiana. Enquanto fotografava esse interessante contraste, sobre a passagem lateral de pedestres da ponte, nem me atentei a quatro cavaleiros que a atravessavam também por ali. Escutava os cascos dos animais, mas tinha por certo que viriam pelo asfalto. Quando me dei conta o primeiro cavalo já estava na iminência de me atropelar. Saltei para o asfalto o mais rápido que pude. A coxa do cavalo ainda me atingiu na lateral do quadril e caí, desequilibrado, do outro lado da mureta. Por sorte não trafegava nenhum automóvel naquele instante. O homem sobre o cavalo, visivelmente inebriado pelo álcool às 8 da manhã, balbuciou algumas desculpas e apeou do outro lado, perto de nossas motos, seguido pelos outros. Descobri, com esse incidente, que a vida é curta e que se deve dar o devido valor a ela. Afinal, não é todo dia que quase se é arremessado de uma ponte, quarenta metros abaixo, por um cavaleiro bêbado, logo nos primeiros raios de sol, em um rio com o mesmo nome que o seu.
Reservatório da UHE da Serra do Facão
Ponte sobre as águas do rio São Marcos
Alameda dos Estados, em Brasília
Regressamos para Pires Belo, colocamo-nos de volta na BR-050 e fomos subindo pelo cerrado goiano. Chegamos a Cristalina, onde a gasolina custava incríveis R$3,12 o litro, e a partir dela seguimos pela BR-040, passando pelo caos de Luziânia e Valparaíso de Goiás antes de adentrar definitivamente o Distrito Federal, um Estado retangular no cerne de outro Estado. Lá está, no Planalto Central, a nossa capital Brasília, entregue pelos construtores em tempo recorde, 4 anos, ao governo Kubitschek, em 1960. Pilotávamos pela asa sul do Plano Piloto, onde as ruas semicirculares se ramificam a partir de um eixo central, lembrando o desenho de um esqueleto de avião. O projeto foi um debuxo do saudoso arquiteto Lúcio Costa. No tal eixo central, oficialmente conhecido como Eixo Monumental, aportamos na Alameda dos Estados, defronte o Congresso Nacional, obra do recém-falecido Oscar Niemeyer. São duas torres de escritórios de igual altura, unidas por uma passagem central, formando uma espécie de H com a bandeira brasileira hasteada ao fundo, nos arredores da Praça dos Três Poderes. Some-se a isso duas cúpulas, uma côncava (à direita) e outra convexa (à esquerda). Girando 360º visualizamos o Palácio do Itamaraty, a esplanada dos ministérios, e mais ao longe a Catedral de Brasília e a Torre de TV, bem como o furdúncio da rodoviária e alguns prédios comerciais. Flâmulas de todos os Estados tremulam coloridas ao sabor do vento forte e seco, sombreando o caminhar incessante de transeuntes que atravessam as amplas ruas de um lado para o outro. É um frenesi, a ululante dinâmica de uma das mais caras cidades do Brasil para se viver, onde não existem fios elétricos aparentes (a fiação é toda subterrânea) e muito menos grades separando uma edificação da outra. Transita-se a pé livremente por entre as alvas obras de arquitetura.
Congresso Nacional
Bandeira hasteada entre as torres da obra de Oscar Niemeyer
Chapada na Serra da Boa Vista
Com receio de nos enfeitiçarmos pela aura da capital e postergar o plano original, saímos pela asa norte, contornando um dos braços do Lago Paranoá, e avançamos por Sobradinho e Planaltina, acessando em seguida a GO-118, com a Lagoa Formosa a oeste, lá embaixo, e as primeiras elevações da Chapada dos Veadeiros timidamente surgindo por todos os lados. Após São João d'Aliança as serras já são bem mais imponentes. Em Alto Paraíso de Goiás, na reta final do segundo dia de viagem, seguimos para o oeste por uma estrada de 24km de asfalto e 12km de terra, pedras e buracos, cruzando com uma chapada da Serra de Boa Vista, com o Jardim de Maytrea, obscurecido pelo sol poente, e com os morros do Buracão e da Baleia. Preás e sabiás-do-campo nos recepcionaram no campo da fauna, em uma parada contemplativa. No campo humano, por sua vez, uma cena inusitada. Uma kombi vinha em sentido contrário, pela estrada de terra, toda colorida, com quatro cidadãos cabeludos no banco da frente. Até aí, tudo bem. Em cima da perua, no meio de malas desajeitadamente dispostas e amarradas, um outro cidadão, deitado, olhando para as estrelas com um sorriso no rosto e com os pés recostados ao para-brisas, vinha aos solavancos, equilibrando-se de uma maneira insólita, e asseguro que estava em êxtase, pois nenhuma corda o prendia ao teto do automóvel. Ao chegarmos à vila de São Jorge às 17h, onde pernoitaríamos, conclui um outro fato, a exemplo do que acontecera de manhã com o cavaleiro embriagado. Eu, saindo de São Paulo, sempre procurei olhar para a frente em busca de novos caminhos e visões gratificantes. Diferente de mim, alguns preferem olhar para cima, mesmo que o corpo se movimente no plano horizontal e que o terreno seja incerto. Enfim, foram rodados, nesse dia, 610km. Estávamos às portas do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, e no dia seguinte o desbravaríamos.
Sabiá-do-campo
Preá
Vila de São Jorge
João-de-barro na portaria do parque
Um devaneio adolescente começava a se concretizar às 7h da manhã do dia 27 de abril. Foi quando palmilhamos os 1000m que separam a pacata e mística vila de São Jorge, com seus 600 habitantes, e a portaria do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. De tão ávidos chegamos cedo demais. O parque abriria às 8h. Aproveitamos a aresta pra registrar a avifauna no cerrado adjacente aos limites do parque, em polvorosa. Fotografamos o joão-de-barro, o tico-tico, o periquito-rei e o pássaro-preto, ave de canto melodioso vista aqui aos bandos. Entristece-me quem em São Paulo se pague uma fortuna para ter um espécime desse confinado em uma gaiola, privado da liberdade. O guarda do parque nos permitiu a entrada exatamente às 8h, e fomos exortados a assistir a um vídeo com as regras de conduta dentro do parque, bem como a assinar um termo apontando as trilhas que faríamos naquele dia. Por incrível que pareça não é cobrada uma taxa de entrada, prática comum em parques nacionais. Tempos atrás só se entrava com guias credenciados, geralmente nativos de São Jorge, mas um decreto redigido no começo do ano depôs essa necessidade. Fomos informados, contudo, que as trilhas seriam difíceis e os atrativos distantes um do outro. Como nosso ânimo ainda estava em seu ápice, optamos por tentar palmilhar as duas permitidas: a dos Saltos do Rio Preto e a dos Cânions e Carioquinhas. No total, se tivéssemos pernas para tal, seriam aproximadamente 20km a pé. As motos, nesse dia, teriam um descanso merecido. Sequer as tocaríamos.
Periquito-rei
Pássaro-preto
Calango
Vale do rio Preto
Principiamos a Trilha dos Saltos, logo após a portaria do parque, sempre acompanhados pelo cerrado campo sujo, caracterizado por árvores de pequeno porte e de caule retorcido. O terreno era um misto de cristais e arenito. Pequenas furnas, bromélias, canelas-de-ema, candombás e lagartos tão ligeiros quanto o piscar de olhos... Enfim, estávamos inseridos em uma área de mais de 60 000 hectares. O plano original era que passasse dos 600 000, mas impedimentos políticos que ainda não compreendi em plenitude foram reduzindo sua abrangência, deixando de fora boa parte da bacia do rio Tocantins. Em um momento a vegetação se abre, dando vida ao capim-estrela e realçando as formas dos paredões de arenito da Serra de Santana, que começa por aqui e se finda lá em Cavalcante, para onde iríamos depois. Descendo o vale do rio Preto, importante afluente do Tocantins, alcançamos o famoso Salto 120, que como o próprio nome diz é uma queda de 120 metros de altura com dois fachos d'água. Infelizmente só é permitido ver a cachoeira de longe, a partir de um mirante, mas mesmo assim o cenário é impressionante. O som produzido pelo contato da água com o fundo do vale é gutural, tonitruante. Seguindo a trilha paralela ao rio, contra o seu curso, se alcança a segunda queda, o Salto 80, essa totalmente acessível. Embora menor, aparenta maior volume por ter um facho d'água mais amplo, único. Ai se veem lambaris, dada a transparência do rio Preto. A incidência da luz solar contrasta o negro do poço com o caramelo das margens, próximo às rochas. As duas quedas são também chamadas de Saltos do Garimpão, já que num passado não tão distante existiam por ali vários pontos de extração de diamante. Diz-se que a Chapada dos Veadeiros é o ponto mais luzente do Brasil quando visto do espaço. Essa é uma teoria que, infelizmente, não poderei atestar. O que posso dizer é que, subindo ainda mais a trilha, no curso do mesmo rio, se encontra belas corredeiras, completando a trilha de quase 9km para esses primeiros atrativos, tão airosos quanto nas fotos alheias aos quais debruçávamos nossos olhos nos dias de planejamento dessa viagem.
Salto 120
Salto 80
Corredeiras do rio Preto
Anuro camuflado
Regressamos um bocado, sentido portaria do parque, e com o sol a pino partimos para a segunda trilha, a dos Cânions. Essa é mais plana, mas nem por isso menos dificultosa. Esporadicamente caminhávamos sobre rochas soltas, traiçoeiras, e pontes de madeira sobre córregos cristalinos, sempre com a serra ao fundo testemunhando nosso perrengue. Em suma, andamos em um ritmo mais tranquilo, mas por uma quilometragem maior. O Cânion I infelizmente estava fechado à visitação devido à presença por lá do pato-mergulhão, em fase de reprodução. É um espécime muito sensível e que escolhe a dedo locais para procriar. É uma atitude, portanto, sensata por parte da direção do parque. Por falar em espécimes, registrei um anuro de coloração idêntica às rochas da trilha, camuflado, e que facilmente passaria despercebido por um olho menos atento. Ademais, o Cânion II estava escancarado, e sobre rochas engruvinhadas observamos o rio Preto correr, ligeiro, entre dois paredões naturais com talvez 20 metros de distância um do outro. Forma, no seu curso anterior ao cânion, várias pequenas quedas, e após passar pelo mesmo se abre em um grande poço, seguindo sereno seu caminho e encontrando novamente turbulência apenas na cachoeira de Carioquinhas, a qual nos dirigimos depois, muitos metros adiante. Apesar de pertencer ao mesmo rio, a Carioquinhas não é tão impactante, mas os caminhos encontrados pela água ao descê-la são curiosos. Imaginei os tentáculos de um polvo, as folhas de uma samambaia ou ainda um leque, uma vez que o curso vem estreito e se abre, caindo em veios distintos de 20 metros de altura. Nossa missão no Parque Nacional da Serra da Chapada se encerrava aqui, nesse cenário inspirador, e quando regressávamos à portaria para descansarmos novamente em São Jorge, calculamos ter perambulado por cerca de 22km. Foi um dia árduo. Saímos de lá com o sol se pondo. No entanto, qualquer ação extenuante é meritória de encômios quando o objetivo final é preservar a liberdade.
Cânion II
Cachoeira de Carioquinhas
Detalhe da queda de 20 metros de largura
Pepalantus
Amanheceu o dia 28, o quarto da incursão. O Parque Nacional já fora desbravado, então restou-nos voltar a atenção para o que se desenrola em seus derredores. Mesmo sendo espaços não protegidos diretamente por leis federais e estatutos, preservam seus recursos naturais e paisagísticos com uma maestria ímpar. As serras e seus contrafortes rochosos, como as de Boa Vista, de Almécegas, do Segredo e de Santana, são empecilhos geográficos que impedem o desmatamento em grandes proporções do solo para a instauração de uma agricultura de porte considerável. O que se planta, em pequenas áreas planas entre montanhas, é apenas para a subsistência das própria famílias. Os proprietários de terra encontraram, devido a isso, outros quinhões de onde obter renda. O maior deles é, indubitavelmente, o turismo, e não muito longe de São Jorge, encostado ao perímetro do parque, visitamos o primeiro ponto dito turístico. Fomos de moto até o começo da trilha. Thiago insistiu um pouco mais, na parte em que supostamente deveria estar caminhando, e acabou atolando a sua. Com um pouco de esforço a livramos e, a pé, como seria o correto desde o princípio, avançamos cerrado adentro até a propriedade do “seo” Graciliano, rodeada por sanhaços-de-fogo (macho alaranjado, fêmea amarela) e gralhas-cancans. Arcamos com uma taxa de R$10 e andamos cerca de 1km por um cerrado campo limpo, com pepalantus (“chuveirinho”) de mais de 2 metros de altura aqui ou acolá, até a cachoeira do Abismo, gotejante, praticamente seca. Só é possível vê-la em todo o seu esplendor na época das águas, de outubro a março. Descendo um vale e subindo outra montanha, por mais 2km, alcançamos o Mirante da Janela, de rochas quadradas sobrepostas, do alto das quais se vê as duas quedas do Garimpão, o Salto 120 e o Salto 80, dentro do Parque Nacional, bem como uma grande extensão do vale do rio Preto guarnecido por uma densa mata de galeria. Thiago tomou um belo susto ao quase pisotear uma jararaca-cruzeiro juvenil de 60cm de comprimento. Caso picado, correria o risco de perder o membro ferido pelas presas da bichana, que inoculam uma peçonha gangrenante. Dizem que a beleza tem seus perigos. Aqui experimentamos um pouco disso. Tratamos de deixá-la em paz e abandonar o alto do penhasco, voltando para nossas motos. Foram 7km de caminhada, no total.
Jararaca-cruzeiro
Saltos do Garimpão
Vista total do Mirante da Janela
Vale da Lua
Quando o segmento é o turismo, o ponto mais visitado da região de São Jorge é o Vale da Lua, distante 7km da vila por estradas de chão. Para lá seguimos de moto, após uma breve subida na torre de celular para uma vista panorâmica do vilarejo. Na portaria do sítio nos cobraram uma taxa de R$10, possibilitado-nos o acesso à trilha de 1,5km aos contrafortes da Serra da Boa Vista, onde o rio São Miguel corre por entre rochas ora esbranquiçadas ora em degradês de cinza, sulcadas, crivadas por crateras ovaladas e formas abstratas diversas. É uma obra que vem sendo esculpida há milhões de anos pela ação constante das águas de um ainda tímido curso d'água contra a truculência do pedregoso vale. Se é parecido com o solo lunar, não sei, mas posso assegurar que aqui se transforma em regra o famoso jargão “água mole, pedra dura, tanto bate até que fura”. É o lugar perfeito para todas as classes de vertebrados. Pequenos répteis aquecem o sangue frio, tisnando seu rígido couro; diminutos anuros amarelecidos, por sua vez, se escondem nas concavidades menos atingidas pela luz solar; borboletas maria-bobas erram pelos ares. Enfim, é um insigne conjunto paisagístico, embelezado ainda mais pela Serra da Boa Vista e pela mata adjacente, com elementos da flora irradiantes de cores, como a bromélia-gravatá. Por sorte pudemos vir a esse lugar fora de feriados e férias, pois certamente nesses períodos o encontraríamos abarrotado de banhistas. O rio São Miguel, que aqui forma poços translúcidos, gelados e peculiares, ainda ostenta, ao longo do seu curso, outros atrativos, os quais conheceríamos no dia posterior, mas aqui obviamente suas águas são mais disputadas.
Vale da Lua com a Serra da Boa Vista, ao fundo
Rio São Miguel
Anuro
Em destaque, o Morro do Buracão
Saindo do Vale da Lua, voltamos para a estrada que liga São Jorge a Alto Paraíso de Goiás, seguindo em direção à última. A estrada de chão se acabou e o asfalto nos fez alcançar incontinenti o Jardim de Maytrea, pelo qual passáramos no segundo dia de viagem, mas que a escassez de luz não nos permitira registrar. É uma imensa planície com alguns morros carecas em redor, como o da Baleia, e buritis gigantescos sombreando o capim ralo. Ao fundo se vê os píncaros da Serra de Santana. Dizem ser um local de meditação (Maytrea é o ser supremo de cada religião ou seita, como Deus para os cristãos e Buda para os budistas), venerado desde os tempos em que Alto Paraíso de Goiás era ainda uma incipiente vila, com menos de 1000 habitantes, isso na década de 1960. Hoje conta com mais de 7 000. É consenso entre alguns munícipes que na Chapada dos Veadeiros, comumente no Jardim de Maytrea, ocorrem aparições de OVNIS (objetos voadores não identificados), guiados por seres extraterrestres. Durante os vários dias em que estivemos por lá, afirmo, não notamos atividade aérea suspeita sobre as serras da chapada. O que notamos e ratificamos em imagens foram as simples quedas da Fazenda São Bento, a poucos quilômetros dali, cuja entrada se dá à beira da estrada Alto Paraíso-São Jorge mediante um pagamento de R$10. A cachoeira Almécegas II, do córrego homônimo, tem cerca de 10 metros de altura; a Almécegas I vence, com a ajuda da gravidade e da perda de altitude da Serra de Almécegas, mais de 40 metros, caindo paulatinamente em pequenos e tortuosos degraus; e a de São Bento, também com 10 metros, que fotografamos quase sem luz, pois o sol debandava lá por detrás do Morro do Buracão. Foi difícil voltar, já cansados e com a visão faltosa de claridade, para São Jorge, onde mais uma vez pernoitaríamos.
Jardim de Maytrea
Cachoeira de Almécegas II
Cachoeira de Almécegas I
Cachoeira de São Bento
Santuário Raizama
Sete da manhã do dia 29. Como de praxe, logo cedo deixamos São Jorge rumo a uma das cachoeiras mais inacessíveis da região, a do Segredo. Entretanto, informaram-nos que a trilha é controlada e que poderíamos visitá-la com a companhia de um guia, e como estávamos fora da época de feriados e férias, não conseguimos um. Com todo o dia pela frente optamos por explorar mais minuciosamente a região pós-São Jorge do rio São Miguel, o mesmo que corta o Vale da Lua. O primeiro atrativo, sentido oeste, foi o Santuário Raizama, distante 4km da vila. É um local de feições rústicas, palco de shows de jazz, rock e blues, com as gravuras de nomes mundiais desses estilos em grandes tampões de redonda madeira compensada. O proprietário recebeu a paga de R$10 e nos indicou uma trilha que, em seu princípio, nos enviesou pelas margens do Córrego Raizama, pontilhado por pequenas quedas e densa mata ciliar. Pouco mais de 1km depois estávamos sobre uma grande queda, o Salto do Raizama, que despeja as águas de seu ínfimo curso diretamente no rio São Miguel, em um cânion tão estreito que não nos possibilita fotografá-la frontalmente. Subindo pelas margens do São Miguel, ulteriormente, obtivemos uma bela visão do cânion, e nada mais. Deu-se por encerrada nossa breve visita ao Santuário Raizama. Passaríamos, contudo, mais adiante, no sítio Morada do Sol, de território parelho, onde nos disseram que existia uma vistosa cachoeira, também do rio São Miguel. Testemunhamos, infelizmente, mais uma corredeira do que propriamente uma cachoeira. Não que não seja um local distinto, mas após um Salto 120 e um Salto 80, ou ainda um Almécegas I, fica difícil entusiasmar-se com uma queda de cinco metros. Para não perdermos os outros R$10 investidos, descemos o vale mais à frente e chegamos ao Buraco das Andorinhas e a Barra dos Dourados, o primeiro uma armadura de rochas em volta do São Miguel, repleta de pequenas grutas e, devido a isso, perfeito para a reprodução de andorinhas, e o segundo um poço límpido, onde lambaris e outros peixes se aglutinam e perpetuam a espécie na água esmeralda.
Queda do córrego Raizama
Cânion estreito do rio São Miguel
Buraco das Andorinhas
Encontro de rios
Dentre todos esse foi indubitavelmente o dia cenicamente menos belo. As estradas para se chegar a eles são, no mínimo, calamitosas, e Thiago e eu resistíamos bravamente aos solavancos impingidos pelo impetuoso terreno. Riachos era comum atravessarmos, encharcando os pés constantemente. Some-se a isso longas caminhadas e terás um resultado nem um pouco agradável: bolhas. As minhas explodiam a cada passo, e derrocar os 2,5km de uma trilha para o chamado Encontro de Rios foi uma amargura. E dá-lhe mais R$10. Ao alcançar o alto da Serra da Boa Vista, espantando os as guaracavas-de-barriga-amarela, os pés se aliviam da subida e, quem recebe a recompensa são os olhos, ao verem, no fundo do vale, as praias do rio Tocantizinho. Praias de água doce, água gelada e uma brisa que lufa, seca. Próximo a esse mirante a trilha se bifurca. À esquerda calhamos nas corredeiras do rio São Miguel, ligeiro em seus últimos metros antes de misturar-se com o Tocantizinho. É um rio carregado de belezas ímpares desde sua concepção, no alto dos emaranhados de serras da Chapada dos Veadeiros, e aqui encontra sua principal função: unir-se a um outro curso d'água para alimentar, em um outro ponto distante daqui, o rio Tocantins, um dos mais importantes do centro-oeste. À direita acessamos o afamado Encontro de Rios, onde o Tocantizinho, caudaloso e piscoso, recepciona o São Miguel enviesado por um leito rochoso, acinzentado, com o cerrado das montanhas circunvizinhas testemunhando a união. Palmilhamos as praias que vimos lá do alto, já com o intuito de ir embora. Vale lembrar que, após esse encontro, o rio continua com o nome Tocantizinho. E nós continuávamos exaustos. Por sorte guardamos o melhor para o regresso a São Jorge. No Sítio Morro Vermelho, onde há sete fontes de águas termais, sendo duas abertas ao público mediante R$15 de paga, olvidamos a faina em troca de alguns momentos submersos na água morna e esverdeada que brota do subterrâneo da chapada. Já anoitecendo, num último esforço estivemos na Praia do Jatobá, mas seus poços de água gelada nos dissuadiram a um novo banho. Foi nosso último contato com o São Miguel. E foram nossos últimos R$10 gastos na região de São Jorge.
Rio São Miguel em seus metros finais,na iminência do encontro com o Tocantizinho
Praias do rio Tocantizinho
Piscinas termais do Sítio Morro Vermelho
Poço das Esmeraldas
No dia 30, concluímos que nossa missão na parte sul da Chapada dos Veadeiros estava concluída. Logicamente negligenciamos muitos atrativos, mas é sempre bom deixar um motivo para voltar. Despedimo-nos do pessoal acolhedor e extrovertido da vila de São Jorge e seguimos para Alto Paraíso de Goiás, passando pelo já citado Jardim da Maytrea. Em Alto Paraíso, antes de subir definitivamente para Cavalcante, por asfalto, visitamos a Fazenda das Loquinhas, distante 4km por terra do centro, que conta com vários poços cristalinos e cachoeiras que vertem pouca água, devido à seca. O Poço das Loquinhas é um manto d'água que, dependendo do ângulo de incidência da luz, parece nem existir de tão translúcido, evidenciando rochas arredondadas e áureas em seu fundo. As trilhas dentro da fazenda são bem demarcadas, e sem dificuldades chegamos ao Poço das Esmeraldas, com características semelhantes ao anterior, mas com a água puxando mais para o tom de verde. Voltando para a portaria para reavermos nossas motos e debandarmos de vez, registramos a presença do pequenino e parrudo capacetinho-do-oco-do-pau, uma ave extinta no Estado de São Paulo e cada vez mais rara no centro-oeste. É incrível como uma imensidão verde dessas, protegida por leis, tenha problemas dessa ordem. Um guarda do parque nos relatou, ao nos ajudar a socorrer um casal no acostamento da GO-118, cuja moto tossia, engazopada, que não é raro caçadores invadirem o território delimitado para caçar veados-campeiros, raposas, emas e antas. Os “chuveirinhos”, matérias-primas para o artesanato, também são visados, bem como outros espécimes raros da flora do cerrado. Enfim, é um quadro lastimável, que a paisagem entre Alto Paraíso de Goiás e Teresina de Goiás conseguiu apenas sutilmente esvanecer em minha mente. Passamos, nesse ínterim, pelo Cume de Goiás, ou o ponto mais alto do Estado, com quase 1700m de altitude. De Teresina de Goiás a Cavalcante foram mais 20km, totalizando 90km desde Alto Paraíso de Goiás. Estávamos em um remanescente quilombola bem maior do que esperávamos, com seus 10 000 habitantes, no norte da Chapada dos Veadeiros.
Poço das Loquinhas
Capacetinho-do-oco-do-pau
Cachoeira do Poço Encantado
Encontramos pouso para a noite, livramo-nos do excesso de bagagem, e com ainda metade do dia para desfrutar dos encantos da Serra de Santana, enviesamo-nos por uma estrada de chão sentido Colinas do Sul, onde alguns atrativos podem ser acessados. Pensamos em ir primeiro a Ponte de Pedra, na Fazenda Renascer, mas nos apontaram a necessidade da contratação de um guia credenciado, obrigando-nos a postergar tal empreitada. Passáramos, a caminho, pela Fazenda Veredas. Retornamos um pouco e a adentramos. Mais R$10, os primeiros deixados em Cavalcante, e com o aval do proprietário Gaúcho, natural de Palmeiras das Missões, na região das missões no Rio Grande do Sul (link), subimos os aclives calamitosos da serra até o encerramento da estrada, a partir de onde o meio de locomoção voltou a ser nossos judiados pés. Um hálux em carne viva, contudo, não conseguiu retardar nossos passos, e em poucos minutos conhecemos duas cachoeiras: a do Poço Encantado e a Veredinhas Cânion. A primeira, simples, com talvez 20 metros de queda, na qual os borrachudos não nos pouparam; e a segunda, com mais de 30, mas caindo em um cânion (ou vereda, como dizem por aqui) maravilhoso, claustrofobicamente estreito. A cachoeira Véu da Noiva foi de acesso mais difícil, sendo necessária uma longa caminhada por uma trilha aberta na época escravagista, quando negros fugiam de seus senhores e se organizavam em quilombos no meio da mata. Não é uma queda monumental, não tendo mais do que 25 metros, mas o cerrado campo limpo forrado por capim-estrela antes de se chegar a ela é algo indescritível. E pelo caminho há ainda outra queda, de menor expressão: a Toca da Onça. É o habitat perfeito para o lobo-guará, que infelizmente nunca consegui registrar. Já na parte baixa da serra, voltando à sede da fazenda, tentamos localizar a maior de todas, a Veredas, mas simplesmente não fomos capazes. Com o laranja de mais um fim de tarde sobre a chapada, regressamos para o centro urbano de Cavalcante.
Cachoeira Veredinhas
Cachoeira Véu da Noiva
Serra de Santana na Fazenda Veredas
Kalungas
Dia primeiro de maio, quarta-feira, feriado nacional do trabalho. Às sete da manhã já estamos na estrada de terra para o quilombo Vão do Moleque, ou Engenho II, distante 30km de Cavalcante, incrustado na cadeia intrincada de serras que compõem a região. Dá-lhe riachos, terra, pedregulho, buracos e areia. Chegando ao quilombo, fomos recepcionados pelo “seo” Cirilo, líder da comunidade Kalunga e profundo admirador da cidade de São Paulo, onde recentemente esteve internado para uma cirurgia. Comentei que a gente sai da cidade grande pra vir pro mato, e quem está no mato quer ir pra cidade grande. Sorriu, oferecendo-nos um café mateiro e mudando o foco da conversa para a história da formação do quilombo, tão antiga quanto a História do próprio Brasil. Segundo ele, em meados do século XVIII, com a extração aurífera em seu apogeu, inúmeros escravos foram trazidos para a faina. Consequentemente muitos fugiram e se refugiaram nas serras, topando com índios, constituindo famílias e formando comunidades como essa. Augurávamos conhecer duas cachoeiras dentro do território, e de quebra nos conscientizamos também de sua evolução social. A região de Cavalcante é considerada o maior remanescente quilombola do Brasil, reconhecido como Sítio Histórico e Patrimônio Cultural desde a década de 1980. Abriga mais de 80 mil afrodescendentes espalhados também pelos municípios de Monte Alegre e Teresina de Goiás. Estima-se que 93% de seus 270 mil hectares continuem intactos. Nossos bolsos, contudo, já apresentavam sinais de devastação. Foram mais R$35 cada para que Joelson, um guia Kalunga, nos levasse às cachoeiras.
Vão do Moleque
Sede do Engenho II
Cachoeira Barbarinha
Do povoado até a cachoeira de Santa Bárbara, o cartão-postal máximo da Chapada dos Veadeiros depois do Parque Nacional, foram 6km de moto, passando por três riachos, erosões e pedras, pra quebrar a rotina. As casinhas de adobe do Engenho II foram ficando para trás e o cerrado ressurgiu com força. Uma curta trilha a pé, findado o papel das motos, nos direcionou a um primeiro contato com o córrego Santa Bárbara e com uma de suas cachoeiras, a Barbarinha, de meros 5 metros mas com um poço azul que, iluminado por alguns raios de sol que infiltravam pela copa das árvores, mostraram mais uma vez a insuperável qualidade da água da chapada. Mais alguns metros córrego acima e nos deslumbrávamos com a cachoeira de Santa Bárbara, a que víamos nas fotos durante o planejamento. São mais de 30 metros de queda e um poço paradisíaco de um azul fosco mais escuro que o celeste. Pensando bem, é bom que cobrem caro para a visitação de lugares como esse. Se fosse de livre acesso, certamente seria mais uma no rol das joias raras da natureza brasileira depredadas, desfiguradas. E como se não bastasse essa cachoeira, ainda fomos levados por Joelson a uma outra, essa mais perto da comunidade. A cachoeira da Capivara, que na verdade são duas quedas, uma do rio Capivara e outra do Tiririca, também impressiona, mas não pelas cores, e sim pelo volume d'água da queda direita (rio Capivara) e a sutileza da esquerda, caindo estreita e demoradamente até formar um mesmo poço juntamente com a as águas provenientes da vizinha.
O gavião-caramujeiro, espreitando nossas trilhas
Cachoeira de Santa Bárbara
Cachoeira da Capivara
Cachoeira do Ave Maria
Com um aceno do povo Kalunga, deixamos a região do Engenho II e voltamos para Cavalcante, parando por um momento no mirante da Cachoeira Ave Maria, enorme, mas difícil de registrar devido à verticalidade do vale e a ausência de trilhas que levem ao fundo dele. Seguramente possui mais de 100 metros, mas cai morosa, letárgica, com pouca água. Já no centro urbano, começamos a difícil tarefa de conseguir um guia credenciado a nos levar a Ponte de Pedra, que tentáramos visitar no dia anterior. Rodamos a tarde e inteira e nada. Demo-nos por vencidos e, para matar o tempo, subimos o árduo Morro do Cruzeiro, a 2km por estradas de chão e mais 1,5km a pé, para obter uma vista panorâmica de todo o entorno de Cavalcante e da Serra de Santana. Lá encontramos, empoleirado a 1100m de altitude, o carcará, a ave símbolo de minhas perambulações, e também o urubu-de-cabeça-vermelha. Chegamos a ver o urubu-rei, mas o arredio voa alto, longe do alcance da câmera. A exemplo do lobo-guará, persigo-o há tempos. Por fim descemos, retornamos ao conglomerado urbano e repensamos a viagem a partir dali. Caso não encontrássemos um guia para o dia seguinte naquela noite, não havia motivos para permanecermos ali, prostrados. Por sorte, já bem tarde da noite, informaram-nos a respeito de um guia. Fomos até a casa do indicado e agendamos o passeio para as 8 da manhã do dia 2. Zé Pedrão era o nome dele, e cobraria R$100 para nos levar a Ponte de Pedra. Vale frisar que ele cobra esse valor para grupos de até 6 pessoas, ou seja, o valor total é dividido entre todos. Como estávamos em dois, e somos motociclistas sem dinheiro, ficou um tanto oneroso. Seria, porém, o último dia na chapada. Teria que valer a pena.
Carcará
Vista do Morro do Cruzeiro
Zé Pedrão, guia de Cavalcante
No dia 2, às 8 da manhã, Zé Pedrão se unia a nós e o levávamos para a Pousada Vale das Araras, onde assinamos uma lista e pegamos a chave que abre a porteira da Fazenda Renascer, onde está a trilha para a Ponte de Pedra. Enquanto aguardávamos a burocracia, uma arara-canindé, com as cores do Brasil mas predominantemente azul e amarela, pousou no retrovisor de minha moto, de mesma cor. A princípio achei cômico e comecei a fotografá-la loucamente, mas aí então a bela ave começou a arrancar peças de plástico com seu bico forqueado. Aproximei-me, tentando amedrontá-la, mas a bravia permaneceu focada em seu intento: destruir minha moto. Já quase encostado nela, estendi minha mão e incrivelmente ela se acomodou, agarrada à luva, que passou a ser o novo alvo de seus ataques. Depois disso ainda passou para as mãos de Thiago antes de voar em definitivo para o alto dos coqueiros que ladeiam a recepção da pousada. É um dócil animal, nem podendo ser comparado ao que encontramos momentos depois, logo no princípio da trilha a pé, passadas as porteiras da Fazenda Renascer, a 8km dali. Foi aí que o dinheiro pago ao Zé Pedrão se mostrou um grande investimento. Em uma mata de galeria, sem muita luz, um salto rápido do guia, para trás, revelou a presença de uma jararaca-rabo-de-osso, armada, aguardando que déssemos mais um par de passos para abocanhar-nos. Claro que não nos atrevemos. Uma picada teria as mesmas consequências das referentes à jararaca-cruzeiro, mencionada na trilha para o Mirante da Janela, em São Jorge. Apesar de perigoso, é um belo espécime, de cara jactante, fechada, de tons marrons e negros e papo amarelo. Demos uma boa volta para contorná-la e prosseguimos na trilha.
Arara-canindé desmontando a moto
Jararaca-rabo-de-osso
A beleza do perigo
Ponte de Pedra
Não foi a trilha mais árdua de todas. Palmilhar rochas soltas já não afligia nossos pés. Não sei se estávamos mais resistentes, após 6 dias de incessantes caminhadas, ou se simplesmente ascendíamos, com Zé Pedrão encabeçando o trio, por puro impulso. O certo é que, em uma viagem dessas, descobre-se os limites do corpo. Em meu caso – acredito que Thiago tenha semelhante pensamento quanto à própria galhardia – descobri-me mais forte do que outrora acreditava ser. Deparar-nos com a Ponte de Pedra, um monumento geológico natural sobre o rio Santo Antônio, nos limites do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, foi a coroação de todos os nossos esforços, que passaram não somente por provações físicas, mas também psicológicas e financeiras. O rio, caramelo, passava calmo por baixo da “ponte”, cuja fundação em nada lembra as obras de nossos mais diligentes engenheiros. Seus píncaros são de formas jurássicas, e o tom acinzentado das frágeis rochas de arenito demonstram que esse não é um cenário estático, mas em constante mutação, assim como toda a natureza. Subindo em direção ao seu topo, revela-se a visão de uma extensa planície, das montanhas escarpadas do Parque Nacional e da cachoeira da Ponte de Pedra, que cai de uma altura de 80 metros pouco após passar pela estrutura homônima. Para visualizá-la é preciso apoiar-se um uma pedra, à beira de um abismo, um por vez, e mesmo assim a vista não é completa, pois sua maior parte está sombreada. O sol ali deve bater em apenas alguns minutos do dia, e aquele não era um deles. Reabastecendo os cantis nas próprias águas do Santo Antônio, defronte à Ponte de Pedra, tornamos as costas, pela última vez na viagem, a um local que foge do senso comum, único, inspirador. Levaríamos Zé Pedrão para sua casa, despediríamo-nos do ex-garimpeiro e atrelaríamos a bagagem às motos. Nossa jornada em Cavalcante se encerrava. Aproximava-se, não muito sorridente ou benquisto, o regresso.
Ponte de Pedra
Nos limites do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros
Cachoeira da Ponte de Pedra
André Luiz
No dia 3, às 8 da manhã, partíamos pela mesma rodovia que nos trouxera a Cavalcante. André Luiz, um menino de 9 anos que tentara lavar a minha moto com um esguicho d'água, sem sucesso, acenou-nos em nossa saída. O sorriso de uma criança, ainda não deturpado pela dureza da vida, nos animou a enfrentar o primeiro dia de retorno de dois previstos. Tudo o que ele queria era montar, exercer sua imaginação sobre esse objeto de duas rodas que fascina estranhamente mais do que um de quatro. Objeto bem sujo, por sinal. Rapidamente passamos por Teresina de Goiás e Alto Paraíso de Goiás, contemplando pela última vez os vívidos pepalantus espalhados pelo cerrado. Quase chegando a São João d'Aliança, apeamos no acostamento para fotografar os últimos seres vivos desse recôndito: emas. Eram 6, no total, que partiram em uma disparada desengonçada tão logo perceberam nossa inconveniente presença. Reentramos no Distrito Federal, avançando pelos entornos de Planaltina (e nos sentindo em alguma canção da Legião Urbana) e chegando a Cristalina, Goiás de novo. Desta feita, porém, não descemos para Catalão. Optamos por seguir ao leste pela BR-040. Uma breve ponte sobre o rio São Marcos (o mesmo em que eu quase fora atirado) e já estávamos em Minas Gerais. Passamos pela histórica Paracatu, com suas casinhas coloniais do século XVIII e com o belíssimo Largo do Rosário (cuja igreja foi construída em 1744) bem mantidos. Agora sentido sul, pilotamos por vicinais que nos levaram até Romaria, onde pernoitamos, passando por Coromandeí e Monte Carmelo.
Emas
Largo do Rosário, em Paracatu
Herança colonial paracatuense
Santuário de Nossa Sra. da Abadia
Romaria, uma cidade de 3 mil habitantes que vive em função do Santuário de Nossa Senhora da Abadia, uma imponente igreja de 1926, nos surpreendeu, devo dizer. Lá conhecemos um preclaro militar que lutou na Guerrilha do Araguaia, do lado das Forças Armadas, e morou próximo ao Xingu, tendo portanto muitas amizades com índios. Não citarei nomes porque esses mineiros de cidades pequenas conversam tão naturalmente, e vão falando, falando, falando sem se preocupar se o ouvinte é conhecido ou não, ou se vai usar aquilo contra eles. Em poucos lugares de São Paulo se pode ter, ainda, conversas como essa, sem se preocupar com possíveis repercussões. No dia 4, ao nos despedirmos de lá com a promessa de um retorno em agosto, quando acontecerá uma grande festa em celebração a Nossa Senhora da Abadia (o ateu novamente se envolvendo em assuntos religiosos), a corrente de transmissão da minha moto se rompeu. Mais uma vez contei com a ajuda dos munícipes para encontrar, às 8 da manhã de um sábado, um mecânico para remendá-la. Encontrado, foi só esperá-lo concluir o serviço, à beira da rodovia, e pagar uma quantia irrisória pelo seu trabalho. Se fosse em São Paulo certamente me escalpelariam. Mais uma prova da generosidade mineira. Numa toada mais lenta, com medo de a corrente estourar novamente, passamos sobre a barragem da represa de Nova Ponte, do rio Quebra-Anzol, e chegamos a Uberaba, seguindo até a divisa com São Paulo pela BR-050. Após o rio Grande revíamos nosso Estado natal, acelerando pelos quilômetros finais até Americana. Encerrava-se uma jornada de 3000km de moto e aproximadamente 100km a pé pelo coração do Brasil, uma região desconhecida pelos que negligenciam o próprios país em detrimento de paisagens estrangeiras. Não que eu ache errado viajar para fora, mas um povo que não conhece o próprio território, a própria História e os próprios recursos é um povo facilmente dominável. Isso dizia um velho andejo, morto na selva boliviana. Isso dizemos nós, a resistência sobre duas rodas. E sobre dois pés também.
“Amigo de rodinhas, tudo bem por aqui, mas o céu daí deve ser bem mais estrelado. Tire tantas fotos quanto possível; roa pequis; e plote o passeio”. Assim o fiz, meu caro amigo, e espero que, num futuro próximo, realmente ganhemos a vida desta maneira: viajando. Afinal, o que mais tem sentido?
E abaixo, um blues composto para a Chapada dos Veadeiros, no coração do Brasil, e para Romaria, em Minas Gerais, cuja benevolência de seu povo carregarei para sempre comigo.