domingo, 27 de novembro de 2011

Piracaia e Joanópolis – 20 de novembro de 2011


Para algum lugar próximo vou quando para longe o pensamento voeja. O ciclo incessante de internalizações não me apraz, e o tentar dele me desvencilhar não me parece um jogo muito saudável, ou que possa ser suportado por estações a fio. Ao invés de intentar extrair de meu imo os pensamentos que não me são agradáveis, busco iluminar as vias de acesso para outros que condizem com o atual momento de meu espírito, viajando. Estou submerso em uma onda proveniente de annwn, das praias de Atlântida ou de qualquer outro local igualmente incompreendido, e esse contato direto com a água me é benéfico. Os entes que de perto observam este bailar não me proveem uma canoa, e no fundo, como eu, acreditam que necessito passar por tudo isso, solitário. Faz parte do meu treinamento de desapego às coisas materiais e à perfunctória palavra daqueles seres humanos que insistem em querer sustentar o que seus músculos, tendões e nervos não são capazes.
Companheiros de viagem
Passados cinco dias após o regresso de Ilha Bela, recebi um chamado – praticamente uma convocação – de Rodrigo Costa Gil, companheiro de outras incursões, para uma curta viagem a Joanópolis, extremo norte do Estado de São Paulo, na divisa com Minas Gerais. Havia mencionado esta cidade em várias de nossas querelas sobre lugares passíveis de visitação, e então era chegada a hora de para ela incursionarmos. Vencendo alguns empecilhos, como a falta de capital e de saúde, consegui recrutar Luiz Paulo Blanes e Thiago Lucas Santos, este último recém adepto da quadra filosófica “motociclismo, aventura, blues e utopia” que venho disseminando entre meus conhecidos há alguns meses. Agindo diligentemente, pusemos na estrada quatro almas, oito pneus e muitas ganas de conhecer um local que para mim não era estranho. Contudo, em momentos como este me recordo das palavras de um sábio que infelizmente os caminhos errantes da existência apartaram do rol de pessoas que eu gostaria que estivessem por perto. “O lugar pode ser o mesmo. O momento, contudo, é novo”.
Portal de Piracaia
Eu, Thiago Lucas e Luiz Paulo partimos de Americana com o sol ainda ensaiando sua diária aparição. Adentramos a Via Anhanguera, que dista apenas alguns metros de minha gleba, e por ela seguimos até a Rodovia Dom Pedro, na qual nos reunimos a Rodrigo, que pacientemente nos aguardava nas imediações de Campinas. Com a trupe completa, dirigimo-nos sem demora a Atibaia, de onde acessaríamos uma rodovia de mão única que nos levaria diretamente ao coração de Joanópolis. Entretanto, o plano não se desenrolou como o idealizávamos: para alcançarmos Joanópolis teríamos que atravessar Piracaia, uma cidade a qual até então não nos atentáramos. Enquanto fotografávamos o belo portal da cidadela, a partir de um jardim floridamente adornado, Rodrigo obteve um folheto que relacionava, com um minucioso mapa, todos os pontos turísticos da cidade. Não sou um grande admirador deste tipo de mídia, mas me interessei pelo Santo Cruzeiro, na parte urbana, e por uma cachoeira, distante cerca de 22km da cidade, na parte rural. Por tabela, conheceríamos uma cidade a mais.
Escadaria para o Santo Cruzeiro
O Santo Cruzeiro está disposto no caminho que naturalmente trilharíamos em direção a Joanópolis. Sem delongas, então, o localizamos. O local nos chamou a atenção por se situar sobre um morro, a 1200m de altitude, o que nos daria uma vista privilegiada de Piracaia, quiçá da região. Porém, não contávamos ter que subir a pé 590 estreitos degraus para alcançar o cume. O topo da escadaria, visto do primeiro degrau, era impossível de ser discernido, pois a luz do sol o afrontava ferozmente, enchapelando-o com um halo de luz ofuscante. A boa notícia é que há 8 paradas para descanso. Como bons sedentários, utilizamos cada uma delas. Do último lance já era possível visualizar um enorme crucifixo amarelo de 14 metros de altura. Dizem ser o maior do mundo. Enquanto subia cheguei a balbuciar algo do tipo “não sou católico e, mesmo do alto do meu ateísmo, tenho que passar por este martírio”? A resposta veio serena, por parte de Luiz Paulo, o poeta boêmio, que despretensiosamente degustava um cigarro de palha: “Tem. É a sua sina. E agora também a minha”.

O maior crucifixo do mundo

O Santo Cruzeiro
A vista de cima do morro não é tão magnífica quanto eu imaginava. Para quem gosta de observar edificações e a dinâmica de uma cidade habitada por 26000 cidadãos, é uma boa pedida. Dei preferência à apreciação do bem cuidado jardim, das hortênsias que adornavam a escadaria e da arquitetura do crucifixo em si, bem como a do coreto e a de uma casa que deve servir de almoxarifado ou algo parecido. Ao fundo notei uma estrada, e logo depois descobri que poderíamos ter chegado ao topo por ela, sobre nossas motocicletas, o que seria bem menos desgastante, mas nem um pouco emocionante. Dois cães nos fizeram companhia, pelo menos enquanto conseguiram se manter sobre as quatro patas, visto que o sono lhes era implacável. Foi bom ter fotografado cenários com o azul dos céus ao fundo, o que não acontecera na viagem anterior, na qual o cinza foi a tônica. Após o descanso da subida, descemos pela mesma escadaria. A jornada começaria a ficar mais natural deste ponto em diante. Mal sabíamos disso.
O princípio da trilha a pé
Com o mapa turístico em mãos, e também nos baseando em algumas informações de transeuntes, adentramos a zona rural de Piracaia com sentido ao Bairro do Pião, onde pretendíamos visitar uma cachoeira homônima. Por 22km serpenteamos entre a Serra da Mantiqueira, passando inclusive pela Represa de Jacareí e por sua barragem. O perigo destas áreas é evidente em cada curva, já que não se pode esperar que o gado permaneça sempre nas pastagens que fazem a vez de acostamento. Demoramos certo tempo para vencer os quilômetros citados, dada a complexidade do traçado da vicinal. Por fim alcançamos o Bairro do Pião, pacato como todo distrito distante do cerne de uma cidade. Nele, placas rústicas feitas à mão nos indicaram o caminho para a cachoeira, que incorreu ser por estrada de terra. Em uma das bifurcações nos perdemos, mas prontamente um morador de um sítio local, também sobre uma motocicleta, nos indicou o viés correto. Entramos por ele e, quase no fim da estrada, um tronco de árvore atravessado na trilha impossibilitou nosso avanço. Deixamos nossas motocicletas e findamos o percurso a pé.
Cachoeira do Pião
A trilha margeava um córrego de águas barrentas. A mata foi se fechando, mas não em demasia. Passamos por algumas pedras limbosas e, na primeira clareira, avistamos a Cachoeira do Pião. Uma queda simplória, marrom como o córrego, de talvez 4 metros, mas com uma força considerável. É um daqueles lugares que você não enxerga a beleza em um primeiro momento; num segundo, talvez. Eu a enxerguei num quarto momento, quando armei minha câmera sobre o tripé e o dispus em meio à corredeira. Tentei buscar outros ângulos para fotografá-la, mas infelizmente a disposição das pedras e da mata adjacente inviabilizaram tal tentativa. Não muito contente com o resultado, aproveitei para posicionar-me em um ponto próximo à queda para estudar o mapa, visto que não poderíamos nos demorar por ali. Minha intuição, que poderia ser embasada por uma bússola que jazia quebrada na mochila de Luiz Paulo, bramia que a continuação da estrada de terra nos levaria diretamente a Joanópolis. Aventei a ideia aos meus camaradas, mas os mesmos se mostraram relutantes. No fim das contas, a relutância resultou coerente. Quando retornamos ao bairro para levantar maiores informações sobre a estrada, relataram-nos que a mesma se encontrava em precárias condições. Aclives com pedras soltas, em meio a Serra da Mantiqueira, dificultariam o trajeto, o que não me desanimou. Contudo, estávamos em quatro. Democraticamente foi decidido que seguíssemos via asfalto.

Cachoeira do Pião vista do curso d'água

Joanópolis
Regressamos ao perímetro urbano de Piracaia, após algumas fotografias da represa com a serra ao fundo e os guizos de alerta de uma cascavel, e acessamos a rodovia que nos direcionaria a Joanópolis. No itinerário margeamos a Represa de Atibainha. Cerca de vinte quilômetros depois atracávamos ao portal de Joanópolis. Utilizando a mesma abordagem de anteriormente, empunhamos um mapa turístico da cidade. O que me trouxe a Joanópolis, desde o princípio, foi a Cachoeira dos Pretos, a maior do Estado de São Paulo, e neste mapa ela era mostrada em destaque. Prestamente deixamos o portal e nos dirigimos a Estrada da Cachoeira dos Pretos. No caminho, o comércio ferrenho de cachaça e queijos, muitos aclives e declives agressivos. Dezoito quilômetros foram vencidos com muita demora, mas o atrativo foi alcançado.
Cachoeira dos Pretos
A Cachoeira dos Pretos tem uma portaria parecida com a de um shopping center: primeiro ponto negativo. Cobraram-nos uma taxa de exorbitante: segundo ponto negativo. Uma rede de restaurantes e lojas de bugigangas para turistas: terceiro ponto negativo. Sou contra tudo isso? Sim. Uma cachoeira é um lugar a se preservar, e o fomento do comércio predatório nos arredores – e eu digo praticamente dentro – dessa maravilha da natureza não caminha neste sentido. Andando ao encontro da queda de 154 metros, testemunhei o desrespeito às águas deste que deveria ser um santuário ecológico, e não um local para churrascadas. O curso de uma corredeira chegou a ser desviado com o intuito de criar uma piscina para banho com as próprias águas da cachoeira: quarto ponto negativo. Já que estou citando pontos negativos, egoisticamente citarei o quinto: não consegui uma boa foto devido ao grande número de pessoas que se revesavam nas pedras próximas ao local da magnificente queda. Ao tentarmos atravessar uma corredeira para talvez obter um melhor visual, o tripé de minha câmera de desgarrou e foi levado pela correnteza. Mesmo com os esforços de Luiz Paulo, nada pôde ser feito para recuperá-lo.
Cachoeira dos Pretos vista da estrada
A Cachoeira dos Pretos, como já frisado, tem 154 metros de queda. Não é daquelas que despencam em queda livre, como que mergulhando em um abismo. Pelo contrário, desce com grande vigor pelas encostas pedregosas da Serra da Mantiqueira. A família Preto, ainda na época dos bandeirantes, era a proprietária das terras onde se encontra a cachoeira, e por este motivo a mesma ficou conhecida como Cachoeira dos Pretos. Circula por Joanópolis uma lenda de que os escravos desobedientes eram jogados para a morte da cabeceira da cachoeira, servindo de exemplo a outros que pretendiam fugir ou fazer “corpo mole” ao trabalho braçal. Contudo, sabe-se que historicamente este conto não pode ser embasado. O primeiro, sim. Apesar de todos os esforços no sentido de torná-la um ponto comercial, eu diria que a queda consegue manter sua imponência natural, podendo ser vista e ouvida de muito longe. Goza de uma carga histórica meritória de muito respeito. Lastimo que alguns não vejam desta forma.

A maior cachoeira do Estado de São Paulo

Caminho para Iponina
Saindo da Cachoeira dos Pretos, retornamos a Estrada da Cachoeira dos Pretos. Deste ponto em diante os mapas turísticos que detínhamos não serviram aos nossos propósitos. Por isso não me apeteço por este tipo de mídia: destacam somente o trivial. Eu tinha algumas informações sobre uma cachoeira distante cerca de oito quilômetros dali, na mesma estrada, mas por terra, visto que o asfalto findava tendenciosamente na portaria do “complexo comercial” Cachoeira dos Pretos. Principiamos o caminho, agora mais rústico, cruzando a parte rural de Joanópolis. Angariamos informações dos moradores dos sítios locais, e com muito custo topamos com uma porteira de madeira fechada, 8km terra adentro. Do outro lado um trator jazia abandonado à própria sorte, o que era notado pela água de chuva acumulada sobre suas “garras” e pela ferrugem de sua lataria. Uma moradora de um sítio vizinho nos certificou de que a trilha para a “cachoeira menos badalada” de Joanópolis se principiava após a porteira. Salientou também que a propriedade era particular. Teríamos, portanto, que invadir o local, o que não nos freou em nenhum momento.
Cachoeira de Iponina
Pulada a porteira e passado o trator, seguimos ligeiramente pela trilha. Duzentos metros depois avistamos um córrego com as águas vindo de encontro a nós. O barulho de águas violentamente se chocando contra rochas já era perceptível, e não demoramos muito para avistar a Cachoeira de Iponina, queda que, segundo um morador quase surdo a quem pedimos informações no começo da estrada de terra, é a primeira maravilha de Joanópolis. Há de se escutar a voz da experiência, pois o velho homem viveu seus mais de 70 anos todos nesta cidade, e portanto deve conhecer todos os seus recônditos. Devo dizer, incorrendo no risco de parecer fútil, que Iponina foi a cachoeira mais intrigante a que direcionei meus olhos. São 20 metros de queda d'água torrencial, de ininterruptas pancadas contra rochas igualmente sólidas, mas que com o tempo vêm sucumbindo e sendo sumariamente perfuradas pelo furor da impressionante força de contato de Iponina. Eu e Luiz Paulo ousamos nos aproximar do chafariz formado no ponto de choque entre água e pedra, mas o volume d'água aumentava significativamente a cada minuto. Acredito que chuvas no curso do córrego anterior à cabeceira da cachoeira fizeram-na ganhar ainda mais poder de “destruição”. Tivemos que deixar a congelante água antes que fôssemos engolidos.

A ferocidade de 20m de queda

Vista da cabeceira de Iponina
Thiago Lucas, enquanto enfrentávamos o turbilhão, localizou uma trilha que ascendia em direção à cabeceira da cachoeira. Eu, Luiz Paulo e Rodrigo, então, nos colocamos na mesma com vistas a alcançar o ápice da queda. Há de se tomar cuidado com a taquara-lixa que margeia esta trilha. Em vários momentos cortei minhas mãos e braços na textura desta planta. A vista lá de cima, contudo, impressionou, mesmo com o desmatamento evidente. Neste sereno lugar pudemos fazer uma retrospectiva desta viagem de apenas 400km, trocar informações sobre outros locais que auguramos visitar em breve e, acima de tudo, repousar. O retorno se principiou poucos minutos depois, pela mesma estrada de terra e Estrada da Cachoeira dos Pretos. No centro de Joanópolis nos sentamos a Praça da Matriz para interagirmos com alguns cidadãos e nos divertimos com o sotaque “amineirado” destes. Acessamos uma rodovia adjacente ao portal de entrada da cidade e passamos por Vargem antes de encontrarmos a Fernão Dias. Dela adentramos a Dom Pedro, de onde nos despedimos, em Campinas, de Rodrigo Costa Gil. Os três que sobraram ainda enfrentaram a Anhanguera, finalizando um dia em que visávamos conhecer apenas uma cidade, mas conhecemos duas.
Não questiono mais meus pensamentos. São parte de mim, do que sou, do que aspiro. Já me isolei, me afundei no álcool e em antidepressivos. Já abracei a desesperança. De nada disso me orgulho. Hoje tenho pores-do-sol a caçar, cachoeiras a me acalentar e sempre estradas a me sacolejar, a fazer-me sentir vivo, parte integrante deste mundo. E o engraçado é que, procurando viajar solitário, encontrei companheiros que incrivelmente sentem e procuram o mesmo que eu. Minha fé no ser humano parece estar se despertando de seu estado inerte, de sua hibernação que eu acreditava perpétua. Agora não há apenas um eu, uma motocicleta, um mundo, sonhos e um triste blues. Há muitas vozes ao meu redor, que vociferam mais sonhos e dão a oportunidade ao mundo de querer se escancarar mais, de expandir seus horizontes. Mas não adianta abrir a janela e esperar que através deste minúsculo quadrado os céus me ofereçam respostas. É preciso levantar. É preciso agir. É preciso viajar.


Mais fotos aqui.

E abaixo um blues, com toques de música caipira, composto especialmente para as cidades de Piracaia e Joanópolis.


sábado, 19 de novembro de 2011

Estrada da Petrobrás e Ilha Bela – de 13 a 15 de novembro de 2011


O céu, como um sorriso que não se sabe irônico, alegre ou tristonho, é um imenso engodo. Muitas das estrelas que luzem no firmamento feneceram há décadas, e suas luzes, que vagam por muito tempo no espaço sideral mesmo após os colapsos estelares, somente encontram a atmosfera terrestre anos adiante. Algumas, porém, esplendorosamente ainda perduram e emanam seus brilhos que, dentre outras coisas, suscitam nossos devaneios. De verossimilhanças e falcatruas o universo perpetua o seu poder. De verdades e inverdades ele se faz imprevisível e me ganha por inteiro. Portanto, um céu recoberto por densas e carregadas nuvens carrega indubitavelmente um certo morbidismo a tiracolo, que pode nos prostrar letárgicos, mas também age como uma manta, encobrindo o vívido brilho das “defuntas” estrelas, tornando a visão, por conseguinte, mais real. Não ignoro tempos chuvosos. Pelo contrário, admiro a veracidade que eclode de seus tons cinzentos. Sigo viagem, sobretudo quando todos bradam para eu me abrigar. Encaro o mundo, mesmo sob a iminente tempestade.
Quem vai ficar? Quem vai partir?
Tal antelóquio, a meu ver, é necessário para o entendimento do arrazoado que se seguirá. Pela primeira vez desde que me propus a viajar, a me situar neste mundo que acredito ser meu e, em decorrência disso, a encontrar o meu próprio “eu”, fui assolado ininterruptamente pelas intempéries do nosso clima tropical. Chuvas torrenciais, por três dias, encharcaram os meus caminhos, mas não encolheram os meus ímpetos. Poderia ter permanecido hirto, escutando o tilintar das gotas d'água que osculam o alumínio das calhas que, observado através da janela do meu quarto, embalam outros tipos de devaneios, estes bem menos interessantes que os supracitados. Preferi, contudo, convocar o meu já longevo camarada Luiz Paulo Blanes para uma incursão por dois locais, no mínimo, excêntricos. Luiz, por sua vez, contatou Thiago Lucas Santos para acompanhar-nos. Os litros e litros de água que foram derramados sobre nós, depois disso, são apenas mais um detalhe, e não os protagonistas desta árdua cruzada pelo litoral norte paulista.
Represa de Atibainha
Partimos de Americana exatamente às oito da manhã de um domingo acinzentado. Deixamos a nossa querida Praia Azul – e seu povo que tanto fez e ainda faz por mim – e rumamos para a Anhanguera, com sentido à capital, para posteriormente acessarmos a Rodovia Dom Pedro. Em minhas inúmeras viagens tenho mencionado estas duas rodovias. Na maioria das vezes auguro evitá-las, simplesmente por serem estradas há muito conhecidas e que vez ou outra me causam certo asco. Não obstante, utilizei-me de uma outra abordagem e, mesmo que o visual não tenha sido tão marcante, acabamos conhecendo a imponente Represa de Atibainha, em Nazaré Paulista. Esta sempre foi vista pelo canto dos olhos, mas nunca analisada e fotografada. Estacionamos as motocicletas perto de sua orla, descemos por uma trilha e registramos o “mar” artificial de 25km². De lá seguimos o curso pela mesma rodovia, pendendo depois para a Dutra, da qual acessamos respectivamente Jacareí, Santa Branca e Salesópolis. Desta última se ramifica a Estrada da Petrobrás, nosso primeiro objetivo.

Santa Branca

Estrada da Petrobrás
A Estrada da Petrobrás, por alguns conhecida como Estrada do Sol, carrega esta denominação por antigamente pertencer exclusivamente à empresa homônima, famosa no exterior por sua imponência econômica, e dentro de seu país natal por encarecer absurdamente os preços do combustível tupiniquim. Era utilizada pelas equipes da multinacional como forma de facilitar a manutenção do oleoduto que parte de São Sebastião e encontra o seu fim em Paulínia. Quando foi aberta ao público, a estrada com 75km de extensão em meio à Serra do Mar, toda de terra e repleta de atrativos naturais, se transformou em uma nova possibilidade de rota para quem se dirige ao litoral norte paulista. Logicamente os mais aventureiros por ela ousam se embrenhar. Àqueles que o tempo urge, a Tamoios, enfadonho caminho, ainda é a melhor opção.
Rio Tietê em Salesópolis
Os primeiros dez quilômetros da estrada são fastidiosos. Algumas chácaras, pontos de extração de eucalipto e chão de terra batida em boas condições são a tônica. No km 12, entretanto, uma guinada é perceptível. Transpassamos uma pequena ponte e, para a nossa surpresa, tratava-se do Rio Tietê correndo por debaixo dela. Digo surpresa porque geograficamente não se assemelhava ao rio de grandes proporções (e fétido) que estamos acostumados a ver na marginal de São Paulo, em Pirapora do Bom Jesus ou mesmo em Barra Bonita. Na verdade, não passava de uma mansa corredeira, repleta de rochas arredondadas recobertas por musgo, transparentemente límpido e com não mais que dois ou três metros de largura. Com certo trabalho conseguimos alcançar suas margens e fotografá-lo sob da ponte. Segundo a planilha que seguíamos, a nascente se encontrava a um, talvez dois quilômetros rio acima. Numa rápida toada, então, retornamos à Estrada do Sol, agora visando localizar o princípio deste grande e injustiçado rio nacional.
Nascente do Rio Tietê
Dando procedência, passamos por um canil e alcançamos um vilarejo, no qual coletamos informações dos receptivos cidadãos. Deixamos a Estrada da Petrobrás um quilômetro à frente, seguimos por uma entrada à esquerda e, seis quilômetros depois, atracávamos à portaria do Parque Nascentes do Rio Tietê. Pagamos uma quantia irrisória de dinheiro e descemos por uma curta trilha até a nascente do rio mais degradado do Brasil. Por entre as pedras um filete de água é lentamente esguichado, seguindo um curso sereno de dois palmos de largura. À primeira vista o lugar impressiona, afinal temos uma outra ideia do Tietê (“água verdadeira”, em tupi). Não imaginamos que toda aquela imensidão de 1010km de extensão se principia com uma “baba” por entre duas simplórias rochas. Gastão, um guia do parque, nos deu alguns dados interessantes do rio em geral. Soubemos, por exemplo, que a nascente está situada a uma altitude de 1120 metros, em meio a Serra do Mar (como toda a Estrada do Sol) e a apenas 22km de distância, em linha reta, do litoral paulista. Apesar da proximidade, não deságua no Atlântico. A geografia de suas nascentes o obrigam a seguir seu curso na direção oposta, até “colidir” com o Rio Paraná na divisa do Estado de São Paulo com o Mato Grosso do Sul.

Referência no Parque Nascentes do Rio Tietê

Vale na Serra do Mar
Deixamos o Parque Nascentes do Rio Tietê boquiabertos com a dinâmica e a desenvoltura da natureza. Retornamos à Estrada da Petrobrás e continuamos rumo ao litoral. Um vale, um pouco à frente, foi meritório de uma parada apreciativa. Uma casa solitária, com uma velha motocicleta e um senhor sentado à porta enrolando um cigarro de palha, nos surpreendeu em meio ao caminho. Neste ponto a Mata Atlântica já se mostrava densa, visto que já não existiam propriedades e, um quilômetro adiante, se iniciavam os domínios do Parque Estadual da Serra do Mar. Uma grande placa indicativa comprovou que estávamos seguindo corretamente a planilha. Mais seguros, localizamos as indicações e pinos amarelos da Petrobrás no km 24. Procurávamos por ali uma cachoeira de nome desconhecido.
Cachoeira de nome desconhecido
Saindo da via principal, adentramos a mata, ainda sobre as motocicletas, até um ponto em que ficou impossível continuarmos com elas. Camuflamo-las em uma quiçaça e descemos a pé pelo matagal, guiados unicamente pelo barulho de corredeiras. Localizamos, sem muito esforço, um pequeno tobogã d'água. Decididos a encontrar uma queda maior, seguimos o curso do riacho e, com a vegetação cada vez mais envolvente, fomos topando com diversas minúsculas cachoeiras. Uma gruta, em meio aos cipós, nos saltou aos olhos, e passada a mesma visualizamos uma garbosa queda de pelo menos dez metros. Vinte metros depois, um precipício e uma outra queda de 40 metros. Infelizmente não havia como descer, e tivemos que nos contentar com a vista parcial da cabeceira da cachoeira.
A neblina da Serra do Mar
Quando nos reunimos às nossas motocicletas, o tempo mudara e uma densa neblina, comum à serra do mar, envolvia o ambiente. Estávamos na parte mais elevada da estrada, a cerca de 1150m acima do nível do mar. Sem muita visibilidade, portanto, partimos. Mal pude notar um amontoado de grandes rochas, com talvez 6 metros de altura, na margem esquerda do km 26. Paramos para registrar o local e sentimos sede, visto que havíamos nos desidratado na pesada trilha para as cachoeiras. Encontramos água apenas no km 35, quando o Rio Pardo trilhava seu caminho rumo ao mar por debaixo de uma ponte. Água fresca e potável, com gosto de pedras, ao mísero preço de botas encharcadas devido a dois sucessivos escorregões, saciou minha necessidade de líquidos.

Rio Pardo

Rio Verde
Após o Rio Pardo, sempre mais do mesmo, o que não consistiu em motivo para reclamações. Cruzamos uma base da Petrobrás e topamos com alguns seres humanos, o que é bem raro por aqui. Vimos ainda uma corredeira-tobogã extensa no km 42 e o Rio Verde no km 46, escoando vagarosamente sob uma ponte de madeira. No km 66 trespassamos o Rio Claro, mas não nos demos ao trabalho de fotografá-lo por se encontrar já no fim da estrada, em uma área que começava a se mostrar urbanizada demais e, devido a isso, pouco interessante. A Estrada do Sol terminava, no km 75, entre os municípios de Caraguatatuba e São Sebastião. Com a noite começando a destronar a luz, decidimos pernoitar por ali mesmo, às margens da BR101. No outro dia se iniciaria a segunda parte da incursão.
Travessia de balsa
O segundo dia amanheceu chuvoso, como era de se esperar. Optamos por seguir viagem rumo a Ilha Bela, mesmo com uma insossa relutância de minha parte. Deixamos Caraguatatuba e incontinenti adentramos a balsa na Rua da Praia em São Sebastião, que por cerca de 20 minutos nos transportou sobre o mar até atracarmos e desembarcarmos na “capital dos mosquitos borrachudos”. Quando se viaja em grupo, nota-se nos companheiros os efeitos da mudança repentina de ambientes. Thiago, por exemplo, frisou nunca ter visto um navio tão próximo, e mesmo nunca ter colocado os pés sobre uma embarcação marítima, como era o caso do balsa. Eu apenas observava a ilha se aproximando e o continente se distanciando. Tentava inutilmente registrar em fotos o que via, mas a chuva, inexorável, me instava a guardar a câmera, caso contrário correria o risco de avariá-la. Luiz Paulo, como usual, pensava na temida Estrada de Castelhanos, que tínhamos a intenção de trilhar.
Estrada de Castelhanos
Já em solo insular, rapidamente localizamos a estrada, de terra, que nos levaria à Praia de Castelhanos, na parte leste e desabitada de Ilha Bela (a parte oeste é habitada como qualquer outra cidade). A ilha preserva 3% de toda a mata atlântica do Estado de São Paulo, e a estrada que desbravaríamos “corta” grande parte desta vegetação por estar inserida no Parque Estadual de Ilha Bela. Vencemos os oito primeiros quilômetros facilmente, passando pela portaria do parque, por algumas corredeiras e por uma cachoeira de aproximadamente 12 metros. Do nono quilômetro em diante a mata se fechou em demasia. Poças d'água de grandes dimensões nos obrigaram a levar a cabo manobras arriscadas. A chuva piorou ainda mais a condição da estrada, bem como a ação de alguns jipeiros que praticamente “jogavam” seus imensos automóveis sobre nossas motocicletas. Conversando com um morador de Castelhanos, tomamos consciência da conduta destes “motoristas”. Segundo ele, muitos (e digo “muitos”, não “todos”) encaram a Estrada de Castelhanos como uma “pista de treinamento” para carros 4x4 e simplesmente não se apetecem com a presença de pessoas e automóveis que “atrapalham” o caminho. Por ser uma área de preservação ambiental, acredito que quem atrapalha, na verdade, são os próprios jipeiros, o óleo diesel queimado pelos motores traçados e a imensa destruição da mata ocasionada por seus grandes monstros de metal.

Travessia de rio sobre a moto

Praia de Castelhanos
Lamúrias à parte, atravessamos um riacho de 15 metros de largura antes de alcançarmos definitivamente Castelhanos. O cenário, lindo apesar das nuvens, contrastou com o “inferno na terra” evocado pelos carnívoros borrachudos. Humanos são intrusos; os nativos são os mosquitos. Diferentemente de outras praias mais acessíveis, aqui não há muitas pessoas e quiosques, visto que nem mesmo luz elétrica está disponível aos poucos moradores, em sua grande maioria pescadores. Como dito anteriormente, não me aprazo por cenários praianos, mas perdi alguns minutos intentando sentir o que nunca senti no litoral: aquela sensação selvagem que somente o mato me proporciona. Não me contive, então, e instei meus camaradas a adentrar uma trilha em meio à mata rumo à Cachoeira do Gato. Prestamente atenderam ao meu pedido. Assentamos acampamento em uma área próxima ao mar, acomodamos nossa bagagem, apartamo-nos de nossas motocicletas e partimos a pé selva adentro.
Cachoeira do Gato
A trilha para a cachoeira em questão é intuitiva, mas em uma determinada bifurcação adentramos uma outra, de caçadores, que foi se fechando em demasia. Contumazes que somos, abrimos caminho com nossos antebraços até alcançarmos a margem de um rio. Acreditando ser este o rio em que se encontrava a queda, resolvemos subi-lo, ora dentro d'água ora pelos flancos. Localizamos uma volumosa cachoeira e algumas corredeiras, mas a do Gato não. Tentamos então retornar pela mesma trilha, mas nos vimos perdidos. Durante uma longa hora querelamos, procuramos, e enfim encontramos. Voltamos ao meio da trilha, atravessamos uma ponte de madeira e nos colocamos no caminho correto. Vinte minutos depois estávamos observando a Cachoeira do Gato e seus 80 metros de queda. Os respingos d'água quase impossibilitaram seu registro, mas acredito ter captado a essência da maravilhosa vista. O volume de água é grande, mas a água se atrita docilmente com o paredão rochoso, escorrendo lenta e continuamente, como se quisesse aproveitar cada segundo deste contato. Com a noite começando a cair, e exaustos, retornamos à praia e aos seus fatídicos enxames de borrachudos. O meu lado “selvagem” foi saciado. Regressei à areia apenas para dormir.

Uma das diversas cachoeiras de Ilha Bela

O regresso
Na manhã do terceiro dia nos pusemos em pé com o único intuito de ir embora. Contudo, a motocicleta de Luiz Paulo não dava sinal de vida. Acordamos pessoas o suficiente para que achássemos um par de fios que servissem ao propósito de ligarmos a bateria de minha motocicleta a dele. Com a bagagem devidamente acomodada nos alforges, deixamos Castelhanos, talvez para sempre. Castigados pelos mosquitos e pelo clima pesado, enfrentamos novamente a famigerada estrada. Após ela, novamente mais do mesmo: a balsa, São Sebastião, a 101, Mogi-Bertioga, Ayrton Senna, Bandeirantes, Anhanguera, Praia Azul, casa. Não me recordo de ter sentido tanta fadiga como nesta viagem. Vendo as poucas fotos me surpreendo com a bravura com que encaramos o desafio. Hoje posso vociferar sentenças como “bebi a água do Tietê” e “fui a Ilha Bela não para ver o mar, mas sim o mato”.
Detalho caminhos por neles, um dia, ter estado. Quando se conhece algo, pode-se sonhar com ele. Quando não se conhece, o que nos resta é fútil divagação. Esse meu azáfama em querer enxergar diferentes nuanças de azul e cinza no firmamento me é prejudicial, e como ninguém tenho consciência disso. Àqueles que me julgam antissocial, obtempero que não tenho tempo para questiúnculas. Com um mundo imenso ansiando pela minha visita, não há porque eu me demorar em desbravá-lo. Já não sou cronologicamente tão jovem como outrora, mas biologicamente ainda demonstro certo vigor. Meios sempre encontrarei para estar no topo de uma montanha, à beira de um riacho ou caminhando pelo cerrado, minha paixão suprema. Estratagemas sempre criarei para olvidar o óbvio. E não me esqueço de vós, meus nobres amigos, pois é por vocês que retorno. Carrego-os comigo o tempo todo. Que saibam disso.


Mais fotos aqui.

E abaixo um blues para o cinza dos céus do nosso litoral norte paulista.


“Há um êxtase que marca o apogeu da vida, além do qual a vida não se pode elevar mais. E tal é o paradoxo da existência, que esse êxtase surge quando se está mais vivo e surge sob a forma do completo esquecimento da própria vida. Esse êxtase, esse esquecimento de si, atinge o artista, surpreendido, em transe, num lençol de chamas, atinge o soldado, enlouquecido pela guerra, que numa batalha perdida recusa trégua e atingiu Buck, ao conduzir a matilha, soltando o antigo brado do lobo, perseguindo o alimento vivo que corria velozmente à sua frente, sob o luar. Estava explorando o que de mais profundo havia na sua natureza e, além de si mesmo, recuava até às entranhas do próprio tempo. Dominava-o uma pura explosão de vida, uma onda de euforia, a alegria perfeita de cada músculo, de cada articulação, a plenitude do sentimento de não estar morto, de ser pleno de cor e exuberância, exprimindo-se pelo movimento, voando exultante sob as estrelas e sobre a face da matéria morta e imóvel”. (Jack London, em O Apelo da Selva).

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Santa Rita do Passa Quatro e Tambaú – 02 de novembro de 2011


Quantas epifanias um homem é capaz de suportar? Eu, até o presente momento, resisti a um turbilhão delas. Lembro-me vagamente das primeiras; das derradeiras concisamente, mas insuflado por um apreço que me enviesa ao ascetismo. Muitas ainda virão. Enquanto isso borbulham, perenes, sob a superfície outrora mesquinha e agora carregada de significados, mesmo que difusos. Não temo o porvir. Com um bródio aclamarei a chegada de uma nova estação, permitindo-a que modifique a seu bel-prazer minha essência. O novo “eu”, então, já não será apenas mais um corpo que vive assolado por gravidade, inércia e alienação. Será, em suma, um órgão integrante deste imenso organismo chamado Terra.
Amizades pelo caminho
Eu, Rodrigo Costa Gil, Levi Vieira e Luiz Paulo Blanes, após um encontro nas proximidades do controverso portal de Americana, decidimos levar a cabo uma curta viagem a duas cidades muito conhecidas pelos adeptos do turismo religioso: Santa Rita do Passa Quatro e Tambaú, ambas no Estado de São Paulo. Pela primeira vez desde que me dispus a mapear o Brasil tenho três companheiros ao meu lado, e visualizá-los em minhas rápidas passadas de olhos pelo espelho retrovisor foi assaz confortante. A força de nossa amizade possibilitou a feitura de diversas outras pelo caminho, o que me fez lembrar da conflitante conclusão a que chegou Cristopher McCandless poucos dias antes do beijo da morte: de que me serve viver em meio ao mundo selvagem se não tenho com quem conversar a respeito?
Vicinal Porto Ferreira-Santa Rita
Enfrentamos a temida Anhanguera, com sentido a Ribeirão Preto, logo pela manhã. A mesmice do caminho e das paisagens era esperada, haja vista a quantidade de ocasiões em que nesta rodovia estive. Em Porto Ferreira, 100km depois, a estória principiou a se modificar ao acessarmos uma vicinal que se ramifica de dentro da cidade com direção a Santa Rita do Passa Quatro. O impetuoso frio, mesmo sob a luzência do sol, nos obrigou a esporádicas paradas. Em uma delas, abrigados do vento por um “calabouço natural” de vegetação alta, aproveitamos o ensejo para uma sessão de fotos. Luiz Paulo Blanes, gatuno inconsequente, por sua vez, atravessou uma cerca para saquear laranjas de uma plantação às margens da vicinal que, de tão calma, nela se podia sentar sobre as faixas contínuas, descascar e degustar os carnudos frutos cítricos recém furtados.
Santa Rita do Passa Quatro
Logo ao chegarmos a Santa Rita, algumas indicações de cachoeiras saltaram aos nossos olhos. O escopo era conhecê-las todas, mas não poderíamos deixar de visitar o centro da cidade e a incrível Igreja Matriz, que se impõe visualmente com ampla folga sobre as outras edificações. Mesmo na condição de ateu fico abismado com a aura destas grandiloquentes obras arquitetônicas. A praça imediatamente em frente a mesma é ampla e repleta de placas em homenagem a Zequinha de Abreu (1880-1935), compositor do clássico da música nacional Tico-Tico no Fubá, que aqui nasceu e viveu, tornando-se o maior orgulho da cidade que, hoje, detém o título de Estância Climática. Um casal de maritacas permitiu a minha aproximação e o privilégio de “capturá-las” digitalmente, para o deleite do ornitólogo que vez ou outra se apossa de mim.

Maritacas

Ruínas da Casa de Força
Após um desjejum e coleta de informações em uma padaria local, dirigimo-nos à vicinal Santa Rita-Tambaú. Dela são acessados praticamente todos os atrativos naturais da cidade. A Cachoeira de Três Quedas, o primeiro deles, foi facilmente localizada. Estacionamos as motocicletas próximas à base de uma imensa e íngreme escadaria, que descemos cuidadosamente a pé. Ao término da mesma nos deparamos com as ruínas da Casa de Força da primeira usina hidrelétrica da região, construída no fim do século XIX. Em meio à alvenaria a natureza ascende visando os céus, utilizando as paredes como base para seus imensos troncos e raízes. Infelizmente o local, de acesso público, é assolado pelos artefatos cortantes empunhados por cidadãos que não respeitam a própria História e, por este motivo, insistem entalhar suas “graças” na nostálgica construção, poluindo-a visualmente.
Cachoeira de Três Quedas
Três Quedas, em si, não é das cachoeiras mais vistosas. Sua designação não poderia ser menos coerente: realmente são três quedas, feito uma escada, mas com pouco volume de água por estar inserida no curso de um córrego, o Passa Quatro. Não tenho a altura oficial das cascatas, mas eu diria que, no total, as três somadas não devem passar dos vinte metros. As fotos, inclusive, não ficaram tão aparentes devido à forte incidência dos raios solares sobre a cabeceira da cachoeira. Luiz Paulo, o nosso “boi de piranha” para banhos de cascata, não demonstrou interesse em pular na fria água. Contentamo-nos, então, em apenas permanecer por um momento encostados às pedras da segunda cascata. Parcialmente satisfeitos, vencemos novamente a escadaria, agora ascendendo, para nos unirmos às nossas motocicletas e levarmos adiante a incursão de Finados.

A segunda das três quedas

A natureza contra a engenharia
Ao sairmos de Três Quedas fomos alertados por um transeunte, usuário de entorpecentes pesados (infelizmente nos arredores de cachoeiras é comum vê-los), que deveríamos ter cuidado com a vicinal alguns quilômetros à frente, visto que as chuvas do fim de semana anterior haviam castigado em demasia o asfalto da estreita estrada. Para a nossa estupefação, o toxicômano estava certo: uma erosão medonha, numa baixada, teve que ser contornada por um curto trecho em terra. A cratera gigantesca, mas bem sinalizada por grandes placas amarelas, não chegou a atrasar a viagem, mas nos fez imaginar a força natural da água duelando com a inofensiva engenharia humana. E vencendo. Um tucano e um urubu-de-cara-branca sobrevoaram o local enquanto o fotografávamos. Desta vez não tive tempo hábil para “capturá-los”.
Cabeceira de São Valentim
Após o estarrecimento catastrófico, adentramos uma estrada turística, repleta de pousadas, em direção a Usina São Valentim. Uma ponte, sobre o limiar da queda d'água, nos pareceu dar acesso à base da gigantesca cachoeira, homônima à usina. Contudo, erramos em nossos projeções. Restou-me tentar acessar, sozinho, a parte baixa da cachoeira por uma estrada de terra em meio a um canavial próximo, o que também não rendeu frutos. Felizmente encontrei Paraíba, um funcionário da usina, que me deixou voltar por dentro dos domínios da propriedade e chamar os meus companheiros. Paraíba frisou que a cachoeira estava fechada à visitação. Não obstante, deixou-nos conhecer um pouco da estrutura e do maquinário da usina. Negociamos um pouco e Paraíba solicitamente “mexeu uns pauzinhos”: concederam-nos a permissão para descer à cachoeira. Antes corremos de um Rottweiler que subia as escadas em nossa direção. Recuei meus companheiros e os fechei atrás de uma grade de pouco mais de um metro de altura. Retardaria por apenas alguns segundos nossa desgraça. Para o nosso alívio, era apenas um filhote. De longe parecia bem mais assustador.

O cão-de-guarda de São Valentim

Cachoeira e Usina de São Valentim
Pedras barrentas foram transpostas para que chegássemos próximos à cachoeira. Torci meu pé esquerdo, escorreguei diversas vezes, encharquei minhas botas. Meus companheiros, como que a acompanhar-me, também não saíram ilesos. Mas por quê choramingar se os 82 metros de queda d'água de São Valentim, no curso do Rio Clarim, nos impressionaram pelo enorme caminho que a esvoaçante água percorre de sua cabeceira ao inevitável contato com as rochas dispostas no fundo do vale? O volume de água não é poderoso, mas isso não diminui o garbo da cachoeira que, em contraste com a casa das máquinas alguns metros abaixo, onde as turbinas da hidrelétrica são abrigadas, possibilitam fotografias não menos garbosas. Vale ressaltar que a hidrelétrica, construída em 1910, foi desativada em 1976 e reposta em funcionamento em 2007. Gera energia para todo o território de Santa Rita do Passa Quatro. Para quem quiser aventurar-se por aqui, digo que venha preparado. São 352 degraus que te guiam ao “paraíso”; 352 que te trazem de volta ao “inferno”.
Zito Silvério conosco
Deixamos São Valentim e seu pedregoso vale. Com o dia ainda vívido, propus aos meus camaradas que estendêssemos a viagem até Tambaú, município vizinho. Eu tinha informações sobre uma cachoeira praticamente desconhecida pela população e turistas locais, visto que o que pesa, nestas bandas, é indubitavelmente o turismo religioso, e não o ecológico. Todos concordaram e voltamos para a vicinal Santa Rita-Tambaú. Poucos quilômetros depois estávamos no distrito de Santa Cruz da Estrela, ainda nos domínios de Santa Rita do Passa Quatro. Enquanto estudávamos o mapa, alguns moradores se aproximaram e gentilmente nos passaram algumas informações sobre o caminho que trilharíamos. Um destes foi Zito Silvério, poeta e jornalista, que de uma maneira afetuosa nos contou um pouco da história do distrito. Assegurou que Zequinha de Abreu em Santa Cruz da Estrela, precisamente, nasceu e residiu. Apontou, ao fundo de onde conversávamos, a igreja onde o compositor se casou.

A caminho das Quedas do Rebojo, na zona rural de Tambaú

Nosso guia
Com mais amizades no coldre, terminamos o percurso a Tambaú. Mesmo com muitas dúvidas em relação ao caminho, localizamos a Rodovia Padre Donizetti. Seguimos por esta por cerca de 2km, e então avistamos uma estrada de chão próxima a uma cerâmica que, segundo informações da planilha que eu detinha, deveria ser acessada para que chegássemos à Cachoeira do Rebojo. Nesta estrada, mais de areia do que de terra, rodamos por 25km. Os três últimos, os mais árduos, de tão entroncados fizeram com que eu me desnorteasse. Meu apelido de “GPS” (só utilizo mapas de papel, hei de ressaltar) neste momento não me caracterizou. Um senhor, morador de um sítio local, passou sobre uma velha motocicleta trinta minutos depois que nos sentáramos à sombra de uma jabuticabeira. Poderíamos ficar horas ali sem que alma alguma fosse avistada e nos prestasse auxílio, mas demos sorte. Sem capacete e num ritmo que eu diria inapropriado para uma estrada arenosa, o velho homem humildemente nos guiou à Fazenda da Cachoeira, local que, segundo ele, abrigava a cachoeira que tanto almejávamos conhecer.
Carcará próximo à fazenda
Despedimo-nos do nosso guia e atracamos às porteiras da Fazenda da Cachoeira. De dentro de uma casa, a cerca de vinte metros de onde estávamos, surgiu um homem que lentamente se moveu em nossa direção. Interpelamos o sujeito a respeito da cachoeira. Num primeiro momento disse não existir queda d'água alguma por ali. Num segundo, contudo, permitiu a descida, a pé, pela trilha que parte da casa em direção ao Rebojo, mediante, logicamente, o pagamento de uma quantia em dinheiro. Estávamos ali, maltrapilhos e cansados. Não poderíamos sair destes confins sem nos banharmos na cachoeira. O capital pago não foi assim tão exorbitante. Todos que detêm cachoeiras em seus domínios cobram taxas para visitação. Não esperávamos um sistema diferente neste local.
Cachoeira do Rebojo
Descemos por uma pequena trilha. A primeira parte entre as pastagens; a segunda entre mata fechada. Ao avistarmos a Cachoeira do Rebojo a fadiga e o nervosismo se esvaíram: duas quedas d'água de não mais do que dez metros, sendo a da esquerda com águas mais serenas e a da direita com águas vigorosas. O riacho límpido e gélido, após as cascatas, segue manso seu curso em direção a outros recônditos. Mesmo sem roupa reserva acabei adentrando a piscina natural que se forma aos pés das quedas. Posteriormente alimentei uma fogueira para secar meus andrajos e defumar-me com uma espécie de flor roxa abundante no local. Este é o banho possível na selva. Não encontramos peixes e, com o estômago pedindo calorias, tivemos que nos contentar com as carnudas laranjas que Luiz Paulo saqueara ainda no princípio da viagem.

Duas quedas de diferentes intensidades

Quedas anteriores à cachoeira
Quando nos preparávamos para regressar, eis que Luiz Paulo Blanes encontra uma picada numa encosta do riacho. Descalços, eu e ele subimos e localizamos uma cerca de arames, que foi rapidamente vencida. Do outro lado caminhamos em direção à cabeceira da cachoeira. Adentrando uma outra picada, para a nossa surpresa demos de cara com o princípio das quedas do Rebojo e, de quebra, com uma cascata de apenas dois metros, mas consideravelmente mais larga que as “irmãs” maiores riacho abaixo. Rodrigo e Levi, ao nos avistarem, seguiram pelos mesmos passos, trazendo consigo, logicamente, a câmera para que eu pudesse registrar o local. Águas profundas, que tive de vencer com o braço que segurava a câmera para cima, longe da água, formam aqui uma piscina natural translúcida que, com a incidência de esparsos raios solares, vivificam tons de mel.
Cachoeira de Emas
Após boas três horas de incondicional veneração, tivemos que partir. Voltamos pela mesma trilha, alcançando a casa do relutante homem que nos “permitira” visitar a cachoeira. Dele extraímos outras informações sobre a estrada de terra que se seguiria. Incontinenti labutamos contra os areais, cortando plantações de laranja, eucaliptos e bandos de carcarás. Velozmente encontramos a Rodovia Padre Donizetti e retornamos a Tambaú, de onde nos dirigimos a Santa Cruz da Conceição e Cachoeira de Emas. Nesta última, uma parada para reflexão, o que costumo fazer sempre que viajo em grupo. Pude captar, enquanto fotografava o Rio Mogi sobre a ponte, os diálogos entre meus camaradas e determinar os efeitos que os lugares em que estivemos provocaram na personalidade de cada um. Com o objetivo cumprido e com a bola de fogo laranja nos céus ensaiando uma retirada, partimos pela Anhanguera, mais realizados do que quando começamos a trilhar os 360km no começo do dia.
Obtempero o óbvio com consciente estática; às epifanias, com uma contundência cega e inconsequente. Sinto-me como Buck, de Jack London, ouvindo o apelo da selva. Não há razão para temer, para se sentir selvagem, rústico, ligado à mãe Terra. Não peço desculpas a vocês, meus companheiros, que um dia balbuciaram que me embrenho no mato e carrego-os comigo, colocando-os em perigo. O que vemos nos recompensa. O único risco, na verdade, é petrificar o coração e a alma ao abdicar do prazer de não estar em lugares como os que estivemos. O único risco é o conforto.


Mais fotos aqui.

E abaixo um lamento que compus em 2006 ao magnânimo Newton Norio Nabeta, que numa conversa contundente despertou uma de minhas várias epifanias. Daquele momento em diante deixei de ser antropocentrista e me metamorfoseei em biocentrista. Estendo esta nova gravação às cachoeiras de Santa Rita do Passa Quatro e Tambaú.


“Estou correndo atrás de ti, porém não sei onde estás.
Pareço não conseguir alcançar-te.
Ah! Como quero que me conheças”!
(Travis Meeks)