O sul de Minas Gerais, desde seu extremo leste, nos píncaros da Mantiqueira, até seu extremo oeste, nos metros finais do grande rio Grande, guarda surpresas e revela paraísos que vêm, ao longo dos tempos, atraindo viajantes de todas as sortes. Essa imensa faixa de relevo acidentado, uma testemunha ocular da transição entre mata atlântica e cerrado, tem demonstrado, além desse poder de atração, uma capacidade de redescoberta muito peculiar, obrigando-me a revisitar locais que destrinchara em outras oportunidades e aos quais cria, ingenuamente, que não careceria retornar em hipótese alguma. Foi por esse motivo que aceitei o convite de Luciano Cogliati, um motociclista recentemente conhecido na cruzada do fim de 2013 pelo Jalapão (link). Ambos rumaríamos, então, com nossas digníssimas mulheres, Cíntia e Luana Romero, para Delfim Moreira, uma cidade cujos entornos Levi Vieira e eu já conhecêramos anos atrás (link), de passagem para a Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro. Luciano garantira que desfrutaríamos de cenários novos e cachoeiras nunca dantes registradas, e essas promessas me motivaram a regressar ao alto da Serra da Mantiqueira, no sudeste mineiro. Que a chuva nos desse uma trégua para que toda essa exuberância pudesse ser devidamente documentada.
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Delfim Moreira |
Partimos de Americana, Luana e eu, às 5 da manhã, visto que marcáramos de nos encontrar com Luciano na Marginal Tietê, em São Paulo, às 7. Pela Anhanguera e posteriormente pela expressa Bandeirantes aceleramos até o local combinado. Saímos da capital exatamente às 7:30, deixando a conturbada marginal e ganhando a Ayrton Senna, que depois de certo ponto se transforma na Carvalho Pinto, rodovia bem conhecida pelos frequentadores do litoral norte paulista. Por volta das 9 nos embrenhávamos no intenso fluxo da Dutra, que nos conduzindo pelos perímetros de Taubaté e Aparecida possibilitaram acessarmos uma estrada de mão dupla que, sentido oeste, nos levou até o município de Piquete, ainda pertencente ao Estado de São Paulo, aos pés da Serra da Mantiqueira. Aí foi pura ascendência, saindo dos confortáveis 650 metros de altitude para os brumosos 1200 de Delfim Moreira, primeira cidade após a divisa de Estados. Desfrutávamos já do ar úmido que emana da mata atlântica de Minas Gerais, e como bons aventureiros, pouco antes do centro urbano da cidade pretendida guinamos para uma estrada de terra bem batida, ladeada por eucaliptos e outras árvores de grande porte. Uma espécie de portal, abandonado, com tijolinhos à vista, apresentava-nos a uma trilha sem indicação alguma, mas sabíamos que ali, naquele ponto, deveríamos abandonar as motos e partir a pé, vale abaixo, rumo às aguas do ribeirão do Taboão. Sobre pés fomos, então, cruzando com as ruínas de uma antiga hidrelétrica e calhando nas enormes rochas do leito do curso d'água supracitado. Sobre elas vê-se, caindo com grande força, as já conhecidas quedas da cahoeira do Itagybá, que se contarmos em sua totalidade somam 40 metros. Aproximar-se, devido às chuvas que caíram nos dias subsequentes, seria impossível, e tivemos que nos contentar em contemplar o belo cenário de longe.
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Cachoeira do Itagybá |
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Estação de Delfim Moreira |
Voltando ao ponto em que se iniciara a trilha, reavemos nossas motos e seguimos pela estrada de chão, que em um determinado ponto passou a ser calçada e, por fim, asfaltada. A esta altura já estávamos envolvidos pelas simples construções do centro urbano de Delfim Moreira, algumas de feições coloniais do alvorecer do século XX. Apeamos novamente apenas aos portões da antiga estação ferroviária, inaugurada em 1927 e zelada com muito esmero. Pessoas nem mercadorias obviamente embarcam mais aqui, como na primeira parte do século passado, mas o prédio ainda é utilizado como espaço cultural e museu, muito embora, pela segunda vez, o tenhamos encontrado fechado. E mais no centro da cidade, palmilhamos as ruas que envolvem a praça central, essa típica, com direito à igreja, coreto e canteiros floridos, bem cuidados, diga-se de passagem, à exemplo da estação. Foi neste local, no coração do município de 8 mil habitantes, que somou-se a nós Daniel Bento e Ariadne, ambos vindos de São José dos Campos e conhecidos de Luciano. Partimos então, agora em três motos, para a mais turística de todas as cachoeiras da cidade, mas que nem por isso poderia ser negligenciada: a Ninho da Águia. Acessá-la foi fácil, visto que se encontra às margens da rodovia MG-350, a mesma pela qual subíramos a serra desde Piquete. Mediante uma paga de R$5 por cabeça trilhamos pela bem sinalizada propriedade que protege não só uma, como imáginávamos, mas várias quedas d'água do barrento rio Santo Antônio. Apesar de não tão altas como a do Itagybá, merecem destaque pelo conjunto da obra e pela tonitruância de suas águas, potencializadas, logicamente, pelas chuvas dos últimos dias.
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Quedas da cachoeira Ninho da Águia |
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Túnel do Barreirinho |
Do asfalto da MG-350 saímos à caça de uma outra cachoeira, a do Túnel, de acesso um pouco mais complicado que a turística Ninho da Águia. Na primeira entrada norte, por estrada de terra, passamos peo bairro rural Água Limpa, e depois pilotamos por mais 4km, ganhando um pouco de altitude, até o bairro Barreirinho. A partir desse último foi necessário mais 1km para avistarmos uma clareira de terra defronte a uma pastagem íngreme, onde obrigatoriamente deixamos nossas motos. A trilha de 200m a partir daí foi toda palmilhada em declive para se chegar ao Túnel do Barreirinho, uma construção da década de 1920 idealizada com dois propósitos: canalizar as águas de uma cachoeira e possibilitar que uma antiga linha férrea a sobrepassasse. Para ver essa cachoeira foi necessário tirar os calçados e caminhar pelos seus 50m de extensão. Do outro lado, a serena queda de águas gélidas se revelou. É um local que, se levássemos em conta somente a cachoeira ou somente o túnel, não pareceria interessante. Contudo, o conjunto, a união da natureza com uma obra humana praticamente centenária contribuem para a construção de uma identidade carismática de mais esse atrativo de Delfim Moreira. Enfim, fomos embora com essa última boa impressão da zona rural da cidade. Tentamos ainda conhecer a cachoeira do Areião, mas a propriedade estava fechada. Contentamo-nos com uma foto longíngua de uma de suas quedas.
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Cachoeira do Túnel |
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Cachoeira do Areião |
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Cachoeira do Cubatão |
Amanhecia o dia 26. Chovera a noite toda e nossos planos para subir a nordeste, rumo a Marmelópolis, se esvaiam, levados pelas águas da Mantiqueira. Por sorte nos informaram que boa parte da estrada que liga as duas cidades estava asfaltada, o que nos garantiria uma toada mais rápida e um tempo maior para desbravarmos essa parte da serra que, para mim, era nova, ao contrário de Delfim Moreira. Não obstante, enganamo-nos ao pensar que a empreitada seria tranquila. Ao deixarmos a estrada principal, por exemplo, encaramos aproximadamente 10km de barro através da zona rural até a cachoeira do Cubatão, e ainda uma trilha a pé, com direito a travessia de rio, de pouco mais de 200m, dentro de uma propriedade particular. O proprietário não nos cobrou taxa alguma pela entrada. A queda de 50m parecia toda atarantada devido às chuvas. Rochas arredondadas, empilhadas na continuação das águas do rio Cubatão, pareciam ter sido despejadas ali recentemente, como que trazidas por uma tromba d'água. Porém, sabíamos que não acontecera dessa forma. Trata-se de uma peculiaridade dessa cachoeira. De volta ao banco das motos, derrocamos ainda mais 8km até o centro urbano de Marmelópolis, com 4 mil habitantes, e saímos rapidamente por uma outra estrada de chão, ao norte. Poucos quilômetros depois estávamos na propriedade que alberga a cachoeira dos Padres, que são, na realidade, três quedas distintas, medindo entre 10 e 20 metros, e mais algumas corredeiras. A facilidade da trilha veio bem a calhar depois do perrengue pelas estradas barrentas desde Delfim Moreira, e é nela que se avista comumente a borboleta coruja (foto que abre essa presente postagem), encontrada apenas em território sulamericano.
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Quedas da cachoeira dos Padres |
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Cachoeira do Paredão |
Luciano detinha as coordenadas para uma outra cachoeira, mas essa, digo, era daquelas que, de tão camufladas nas matas da Mantiqueira, tornou-se um deleite para raros. Para começar, partindo da cachoeira dos Padres segue-se por uma estrada bem batida, sem engodos, mas que em uma guinada, nos metros finais, em algum lugar entre o território de Marmelópolis e Passa Quatro, transformou-se em uma ladeira barrenta, a priori, e a posteriori em um sinuosa aclive a um sítio aparentemente abandonado à própria sorte. Foi na porteira desse último que largamos nossas motos e nossas mulheres, que não quiseram nos acompanhar em uma caminhada pelo meio da quiçaça. Aí foram três perdidos procurando uma trilha em uma clareira com o mato pelos cotovelos. Por sorte a localizamos, deixamos a clareira e nos embrenhamos por uma mata bem fechada, e alguns minutos depois encarávamos não uma cachoeira propriamente dita, mas um paredão quase vertical com 100 metros de altura, pelo qual descia, sereno, um feixe d'água de mais de 5 metros de largura. Não sei se há algum nome para esse atrativo, mas o designamos cachoeira do Paredão. Se essa não for sua verdadeira graça, que um dia possam nos corrigir e perdoar pela blasfêmia.
O tempo se esvaia rapidamente velozmente. A chuva, nossa (in)grata companheira nesses dois dias, ameaçava desabar sobre os píncaros da Mantiqueira. Tínhamos, contudo, um grande desafio antes de regressar: chegar a Piquete por uma estrada de terra íngreme, sinuosa e escorregadia. Por fim a tememos bobamente, pois foram meros 7km a partir da cachoeira do Paredão e relativamente fáceis de se trilhar. Após esses quilômetros a descida se intensificou, mas aí já havia calçamento. Passamos pela Vila dos Marins e fomos perdendo altitude à medida que nos aproximávamos de Piquete e, consequentemente, do Estado de São Paulo. Já nos contrafortes da serra, ainda observamos de longe a impressionante cachoeira do ribeirão Mendanha (foto que encerra a presente postagem), escorregando por 150 metros e tendo como “vigilante”, ao fundo, o imponente Pico dos Marins, o maior inteiramente dentro do Estado de São Paulo com 2420 metros de altitude. A cachoeira, por si só, é de vistosa beleza, visto “escorregar” Mantiqueira abaixo por 150 metros. Em Piquete, uma despedida dos companheiros de aventura e um aceno final para a “gota de chuva” (amana tykyra, em tupi). Seguimos pela Dutra e pela Carvalho Pinto, vendo a moto de Daniel Bento sumir para São José dos Campos. No acesso à Dom Pedro foi a minha vez e a de Luana, que rumamos para o inteior paulista enquanto Luciano seguia para a capital. Foram 700km rodados em dois dias, mais algumas cachoeiras no porta-fólio e a certeza de que a Mantiqueira sempre nos reservará surpresas caso tenhamos a gana de redesafiá-la, dia após dia.
Mais fotos no seguinte slideshow ou aqui.