O coração, confinado à cela de suas obrigações para com uma sociedade, clama pela solidão que o libertará. Esse querer livrar-se das sufocantes amarras de uma existência que me parece artificial não é, em si, um grito de rebeldia, mas sim uma reviravolta natural, ou uma tentativa inconsequente – mas consciente – de retorno às primitivas origens de uma raça que, em tempos longínquos, era obrigada a respeitar primeiramente o meio em que vivia – o mundo, de onde retirava seu sustento – para depois pensar em uma possível organização arcaica com seus semelhantes – outros seres humanos, ainda não homos sapiens, mas bem mais respeitosos com o nosso globo terrestre do que os nossos contemporâneos ditos “evoluídos”. Vez ou outra lampejos canalizam meus pensamentos aos remotos antepassados, que da terra e da água extraíam apenas o necessário para a sobrevivência, e lamento que, hoje, tenhamos que ir além disso para suprir nossas necessidades progressistas, tecnológicas, culturais e egocêntricas. Lamento, ademais, que tenha que me isolar de tudo e de todos para lograr daquela paz que os centros urbanos, nos quais desperdiçamos nosso escasso tempo de vida, não nos oportuniza sentir.
A solidão da estrada
Destrinchar o curso do Rio Itabapoana não foi, nem de perto, o meu primeiro plano para os quatro dias de que dispunha para viajar. Outros locais eram preferíveis em detrimento a esse obscuro caminho pelo qual resolvi, de última hora, enveredar-me. A notícia de que dois de meus companheiros de aventura não poderiam comparecer a uma incursão nesta data me fez repensar, e muito, sobre o rumo que eu tomaria. Optei pelo que supostamente me traria mais recompensa visual e espiritual, já que estaria sozinho e, portanto, poderia planejar uma rota que atendesse unicamente aos meus próprios desejos, não necessitando me preocupar com os planos de outrem. Sintetizando: sempre fui aficionado pelos vales dos grandes rios brasileiros, e em uma de minhas cruzadas pelo Espírito Santo, no ano passado, conheci superficialmente o Rio Itabapoana. De lá para cá vinha nutrindo a vontade de desbravá-lo por completo, desde a sua cabeceira, na tríplice divisa entre os Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, até sua foz, no Oceano Atlântico. Era chegada a hora, portanto, de sacrificar o meu comodismo em nome dessa sede louca por conhecimento que, de tempos em tempos, resolve me assolar.
Plantação de arroz em Lambari
Parti de Americana, pela via Anhangüera, exatamente as 7:30h de um 28 de abril atípico, pois pela primeira vez em algum tempo ninguém estaria me esperando em algum ponto do caminho para, juntos, seguirmos viagem. Uma manhã de outono refrescante: essa sim me acompanhava enquanto eu ansiosamente deixava a RMC, passando pelos perímetros urbanos de Sumaré e Campinas, onde acessei a Rodovia Dom Pedro. Visando deixar para trás incontinenti o segundo ambiente mais urbanizado do Estado de São Paulo, aumentei a velocidade da toada até o momento em que os contornos da serra começaram a ocupar o horizonte. Vencendo o afã pelos olhos, livrava-me da claustrofóbica sensação proporcionada pelo concreto cinzento e mergulhava, agora, de peito aberto no verde, no tapete atlântico que, infelizmente, em algumas propriedades foi dizimado para dar lugar às pastagens do gado paulista. Devaneando, abandonei a Dom Pedro e adentrei a caótica Fernão Dias, principal elo de ligação entre as capitais São Paulo e Belo Horizonte. Estava, agora, em Minas Gerais. A claustrofobia quis retornar, reavivada pelo excesso de caminhões que me encurralavam no sobe e desce frenético da Serra da Mantiqueira. Em pouco tempo, as extensas planícies às margens da estrada, as araucárias, as escuras montanhas rochosas e a Área de Proteção Ambiental Fernão Dias foram deixadas para trás. Embrenhava-me agora por uma vicinal que me levaria a Lambari. Próximo a uma plantação semialagada, que imagino ser de arroz, parei por um momento para analisar a rota que faria a partir deste amarelado cenário.
Ao fundo, o Pico do Papagaio
Cachoeira do Rio Furnas
Com o caminho a seguir devidamente interiorizado, atravessei o pequeno município de Lambari e localizei um trevo do qual se ramificava a rodovia Vital Brazil, que supostamente me conduziria a Juiz de Fora. A ela me atrelei, sentindo randomicamente o efeito da troca da gélida sensação da manhã paulista pelo calor causticante do começo de tarde mineiro. Cruzei uma ponte sobre o Rio Verde e outra sobre o Rio Baependi, ambos afluentes do meu querido Rio Grande, o qual visitei, junto com Rodrigo Costa Gil, na viagem anterior, quando rumávamos a Três Marias. Numa blitz policial, cujo pano de fundo era a cidade de Caxambú e seu Cristo Redentor no alto do morro, conheci Túlio, um motociclista que pretendia chegar a São Thomé das Letras. Trocamos algumas informações e prosseguimos, sós, em direções opostas. O caminho adquiria mais garbo à medida que Caxambú se tornava cada vez menor quando olhada pelos espelhos retrovisores. Passei algumas vezes sobre o Rio Furnas, que vem serpenteando sobre a rodovia na tentativa de encontrar o Grande, e do acostamento da estrada pude visualizar algumas volumosas – e inacessíveis – cachoeiras. Lamentando a impossibilidade, continuei vagarosamente pelo curvilíneo desenho da Vital Brazil até o trevo de acesso a Aiuruoca, de onde era possível avistar o Pico do Papagaio, montanha rochosa de 2293 metros de altitude muito procurada por montanhistas de todo o Brasil. Enquanto o observava, um outro motociclista emparelhou-se a mim e se apresentou como Lázaro. Enquanto sorvia a fumaça do tabaco, tentava me convencer a conhecer Aiuruoca, sua cidade natal. Eu, contudo, estava decidido. Iria ao Itabapoana, e ainda estava bem longe de lá.
Pico do Pão de Angu
Já me aproximava da enorme Juiz de Fora, terra na qual me vi perdido em uma outra ocasião. Na parte da Mantiqueira que circunda a cidade de Lima Duarte, a chamada “Serrinha de Lima Duarte”, uma outra montanha rochosa me chamou a atenção. Tratava-se do Pico do Pão de Angu. Infelizmente não consegui precisar a que altitude estava, mas eu diria que é consideravelmente menor que a do Pico do Papagaio. Com o formato de barbatana de tubarão e com uma rala vegetação circundante, foi a penúltima grande paisagem da rodovia Vital Brazil. Como se já não bastassem as dúvidas com relação à altitude deste magnífico maciço, fui obrigado a ficar ainda mais cabisbaixo ao ver outra grande montanha de pedras, extensa e dividida em três partes, e não conseguir sequer uma singela informação sobre ela. Nem nome, nem altitude. Absolutamente nada. Por mais que eu interpelasse alguns transeuntes, aparentemente apenas eu enxergava aquela imponente obra da natureza. Ademais, exclusivamente eu parecia me importar em saber. Mascarei e estampada decepção e prossegui, chegando alguns quilômetros depois a Juiz de Fora. Para não me perder novamente, desci a BR040, contornando este grande município pelo lado oeste. Fiquei pouco tempo nesta rodovia federal, mas o suficiente para admirar, a partir de um de seus mirantes, a infinitude da Serra da Mantiqueira. As cristas das montanhas mais longínquas se confundiam com os céus e, ao mesmo tempo, respeitavam-se entre si, já que nenhuma se sobressaia enormemente em relação a outra, ficando todas praticamente no mesmo nível, na mesma altura, como pontas de bem aparadas madeixas.
Serra da Mantiqueira vista a partir da BR040, em Juiz de Fora
Muriaé
Deixei a BR040 e acessei, logo ao sul de Juiz de Fora, uma estrada que me levou a Matias Barbosa, município banhado pelo Rio Paraibuna e que, no Brasil Colônia, mais precisamente a partir de 1707, fazia parte do chamado Caminho Novo, rota por onde o ouro e o diamante de Ouro Preto eram transportados para o Rio de Janeiro. Em Matias Barbosa havia uma espécie de pedágio, chamado na época de “registro”. Cobrava-se dos viajantes, que se locomoviam a pé ou sobre mulas, uma quantia pela utilização da estrada, aberta com mando e subsídios da coroa portuguesa. Pensando numa futura incursão pelo que restou do Caminho Novo, debandei da pequena cidade e me embrenhei pela estrada que me levaria a BR116, nunca perdendo de vista os desenhos da Mantiqueira que aqui, não sei por que razão, se exibem triangulares. Em poucos minutos eu já era “desembocado” na rodovia pretendida, na altura do município de Leopoldina. Todos os perigos da Rio-Bahia, como aqui é chamada a maior rodovia do Brasil, felizmente não mostraram seus preocupantes indícios a mim enquanto subia, sentido norte, rumo à cidade de Muriaé, passando pela discreta Laranjal e pelo espalhafatoso Rio Pomba, importante afluente do Paraíba do Sul. Em Muriaé decidi pernoitar, visto que, quanto mais ao leste se vai, mais cedo o dia cede lugar à noite. Não eram ainda 17:30h e o sol já havia deixado de iluminar o município há algum tempo.
Serra do Brigadeiro
Muriáe, no alto de seus 215 metros de altitude, acorda cedo. Eram 5:30h da manhã e o astro-rei já luzia forte a leste. Eu rodara 780km até então, e ainda faltavam mais 150km para chegar ao meu primeiro objetivo: a tríplice divisa entre MG, RJ e ES, onde o Rio Itabapoana principia a sua descida em direção ao mar. Com pressa, então, abandonei a cidade, não sem antes fotografar o degradado Rio Muriaé, afluente do Paraíba do Sul. Uma feira pública em suas margens dava um ar de desorganização ao lugar, mas nem por isso deixei de chamar a atenção de alguns transeuntes que, ao me verem fotografando, indagaram se eu estava registrando as capivaras que usufruem – não sei como – do rio. Obtemperei que seria um privilégio, mas que não conseguira localizar capivara alguma. Deixei o município de cem mil habitantes e me embrenhei a leste, pela chamada Serra do Brigadeiro, em direção à divisa do Estado de Minas Gerais com o Rio de Janeiro. Eu estava inserido, agora, nos recônditos onde antigamente os Puris, indígenas de estatura baixa, extraíam o seu sustento, seja pela caça seja pela pesca. O modo de vida nômade e os métodos rústicos empregados em suas ações, bem como sua aparente amabilidade para com os colonizadores brancos, os tornavam alvos fáceis para os portugueses que, ao chegarem a estas terras, no começo do século XVI, tentavam ao mesmo tempo catequizá-los, escravizá-los ou simplesmente dizimá-los. O último viés parece ter sido o mas utilizado. Deixando de lado nossa nefasta história, serpenteei pelas montanhas singulares da Serra do Brigadeiro e, quando me dei conta, já estava no Estado do Rio de Janeiro.
Subindo a Serra do Sapucaia
Santa Clara, distrito de Varre-Sai
Em terras fluminenses, prestamente adentrei uma vicinal que, de tão ladeada por vegetação, mal permitia a entrada da luz do sol. Essa via, obscura, linda e gelada, me levou diretamente a Raposo, pacata cidade envolta por um pedaço da Mantiqueira chamado de Serra da Sapucaia. Por estar em estradas menos movimentadas, a partir deste momento comecei a notar mais a avifauna exuberante da mata atlântica, e logo ao principiar a subida para Natividade tive a oportunidade de observar alguns gaviões, falcões, tucanos e sabiás. Já em Natividade, acessei uma rodovia que me desembocou em Varre-Sai, onde fui instado pelos organizadores de uma corrida de rua a circundar toda a cidade para continuar no caminho correto, uma vez que em grande parte das ruas o trânsito de veículos motorizados estava impedido. Fui sacolejando entre os paralelepípedos que pavimentam as ruas desta aprazível cidade de nome cômico e localizei, a cerca de 5km do centro, uma estrada de chão que apontava para Santa Clara, distrito de Varre-Sai e de onde supostamente eu partiria para a conclusão do meu primeiro objetivo. Por 18km, num sobe e desce lento por entre os sítios locais, alcancei o pacato distrito, não sem antes fotografar um carcará que, repousando sobre uma amoreira, parecia me indicar com o bico forqueado que eu estava no caminho correto. Passando por um templo católico em construção na parte alta do vilarejo, embrenhei-me pelo emaranhado de estradas de terra que me aproximariam do meu destino.
Cachoeira ao lado de um cafezal
Cortando sítios, fazendas e obtendo informações com os sitiantes locais, fui abrindo porteiras e desviando do gado fluminense. Uma parte da estrada, de tanto estrume que continha, quase me fez perder o equilíbrio e ir ao chão. Poucos metros à frente, o susto se dissipou com os ruídos de água caindo. Era uma bela cachoeira, escorregando pelas lisas pedras à beira de um cafezal. Minhas coordenadas mostravam que, a minha esquerda, após os montes, era território mineiro; e a minha frente, a menos de 500 metros, passava o Rio Itabapoana, meu objetivo, mas num ponto que não correspondia a sua cabeceira. Avancei com cautela e alcancei o rio. Este foi o meu primeiro contato com as águas do Itabapoana. Marrom, ainda estreito, praticamente desprovido de mata ciliar. Um cavalo pastava pacificamente no lado carioca. No outro lado do rio, território capixaba, e uma ponte de madeira me levou até ele. Para que o leitor se sinta mais a par da importância do rio, saiba que o Itabapoana faz a divisa natural entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo pelos 144km de seu curso. É, portanto, um importante recurso natural para ambos os Estados. Não me contentei, todavia, em apenas localizá-lo. Fui margeando-o no sentido oposto a sua corrente para conhecer o princípio de seu majestoso caminho rumo ao mar. Foi quando me deparei com uma fazenda cuja construção remonta ao período escravagista do Brasil: a Fazenda 3 Estados. Minha aventura começaria, definitivamente, a partir daqui.
Rio Itabapoana. Do lado de cá, o Rio de Janeiro. Do outro, o Espírito Santo
Confluência dos rios São João e Preto,
ou "nascente" do Itabapoana
O casarão da Fazenda 3 estados, que já abrigava parte de seus trabalhadores para o almoço, chamou-me a atenção pela simplicidade e pelo zelo do Senhor Ítalo, proprietário há mais de 60 anos. Tive o prazer de conhecê-lo e, ao informá-lo sobre meus planos, obtive a permissão para palmilhar uma curta trilha que me levaria diretamente à confluência dos rios São João e Preto, estes que, ao se unirem, formam o Itabapoana. Caminhei por alguns minutos, passando por uma pequena represa, alguns abacaxizeiros, um barranco e a casa do Senhor Ítalo, apartada do casarão principal da fazenda. Da parte posterior do casebre azul e branco já era possível avistar o casamento entre os rios e a concepção do Itabapoana. As águas negras do Rio Preto e as águas marrons do Rio São João se chocavam, e cada um lutava para manter sua cor até que, depois de alguns metros, já no curso do Itabapoana, se transformavam em um só, com a mesma cor marrom. Ambos os rios nascem na Serra do Caparaó, palco de guerrilhas na ditadura militar e segunda maior serra do Brasil em média de altitude, perdendo apenas para a Serra do Imeri, na divisa do Brasil com a Venezuela. O local em que eu estava, a cabeceira do Itabapoana, faz a divisão natural de território entre os Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. O Rio Preto, que vem do norte, divide Minas e Espírito Santo. O Itabapoana, que vai para o leste, divide Rio e Espírito Santo. As montanhas ao sul do São João dividem Minas e Rio. Esta é a tríplice divisa, o que, inclusive, inspirou o nome da fazenda: 3 Estados.
Primeiras corredeiras
Desci à zona da confluência para medir com o altímetro a altitude da “nascente” do Itabapoana: 650 metros acima do nível do mar. Eu teria que vencer, juntamente com as águas do “pedra empinada da aldeia do barulho das águas” (significado indígena de Itabapoana), um desnível de de mais de seis centenas de metros até sua foz, no Oceano Atlântico. Como já dito anteriormente, seriam 144km de estradas incertas, ora por asfalto ora por terra. Apressando-me, fotografei as corredeiras do Rio Preto, pouco antes de juntar-se irreversivelmente ao São João, e regressei ao casarão sede da fazenda. O Senhor Ítalo me aguardava para o almoço. Quanta generosidade deste homem! Servir a um estranho! Conversei com sua família e empregados durante um bom tempo enquanto degustava a taioba, que me foi apresentada por Alice, a cozinheira. Nunca em minha vida tive o prazer de comer tal vegetal, e devo dizer que é assaz saboroso. Lamentei o fato de minha timidez me impossibilitar de pedir que o Senhor Ítalo me desse as honras de poder tirar uma foto com ele. Sou tão acostumado a lidar com o mundo que desacostumei-me no trato cordial com as pessoas. Como se não bastasse o zelo para comigo, o nobre homem ainda me exortou a conhecer as primeiras corredeiras do Itabapoana. Descendo por uma pequena trilha, após a primeira ponte do curso do rio, pude fotografar o começo do desnível do curso divisor de dois Estados. É realmente uma pena que em alguns pontos a mata ciliar tenha sido transformada em pastagens. Segundo a esposa do Senhor Ítalo, que por indiscrição esqueci de perguntar o nome, os proprietários de sítios às margens do Itabapoana vem adquirindo consciência da importância do rio. Porém, o trabalho de recuperação é longo. Tomara que dentro de alguns anos a mata atlântica volte a florescer nos entornos deste importante manto d'água.
Fazenda 3 Estados
PCH de Rosal
Despedi-me do Senhor Ítalo, de sua família e de seus empregados e dei início à segunda parte de minha aventura: margear o rio. Na segunda ponte, a mesma que me permitira o primeiro contato, atravessei para o lado do Rio de Janeiro e adentrei uma estrada que corria paralela ao curso. Fui passando por porteiras semiabertas, acenando para alguns poucos sitiantes que trabalhavam nos cafezais locais, cumprimentando pescadores e assustando os canários-da-terra, que zarpavam dos mourões em direção ao meio das plantações. O rio, sinuoso, me permitiu que o acompanhasse, sempre por terra, até um momento em que não mais foi possível margeá-lo. Faltou uma estrada. Tive que rumar um pouco ao sul, onde passei por alguns de seus afluentes, corredeiras e cachoeiras, para depois pender novamente para o leste e reencontrá-lo no povoado de Prata, após um breve trecho de asfalto. Aqui se encontra a primeira ponte de concreto, o que dá início ao curso mais urbanizado do rio. Deixei as poucas casas deste ermo e segui paralelamente, por estrada de terra mais uma vez, até a primeira parte represada do Itabapoana: o Lago de Rosal, concebido com o intuito de mover as turbinas da PCH de Rosal, gerando energia para os municípios adjacentes. Um pouco à frente localizei a barragem, com uma queda de aproximadamente 35 metros. Do lado direito a queda forma uma espécie de leque d'água e, por mais que eu tenha tentado descobrir o motivo disso, nunca poderia. Não havia sequer uma alma próxima a e esta Pequena Central Hidrelétrica. Eu estava, agora, a 575 metros de altitude. O rio vencera, até então, com a sempre grata ajuda da gravidade, um desnível de quase 100 metros desde a sua cabeceira.
Cachoeira-corredeira de Rosal
Adiante, sempre com o rio a minha esquerda, passei por uma enorme cachoeira-corredeira (que em épocas anteriores à construção da barragem da PCH de Rosal deveria gozar de uma maior vazão d'água) e pela ladrilhada avenida principal da pequena Rosal. A Igreja Matriz e seu florido jardim me chamaram a atenção, mas tinha que continuar na lida. Por asfalto, subi e desci as encostas do vale, obtendo uma acalentadora visão das partes mais altas da serra. Seguindo umas placas indicativas localizei uma ponte de madeira que me serviu de mirante para a segunda barragem do Itabapoana: a da PCH de Calheiros. Muito pouca água passava por essa pequena barragem. O rio, após ela, se estreitou de uma tal maneira que parecia sumir entre as pedras de seu leito. Registrando o ocorrido, retomei minha direção leste. Transpassei a cidade de Calheiros e encontrei a Casa de Força da PCH de Calheiros, onde uma súbita chuva me obrigou a parar. Sob a vegetação do acostamento oposto à Casa de Força, aguardei por breves cinco minutos até que o chuvisqueiro cessasse seu gotejar para então fazer a medição: estava a 360 metros de altitude. O preocupante é que em menos de 70km eu já encontrara duas hidrelétricas. Apesar de serem de pequeno porte, com reservatórios que não passam de 3km², são capazes de causar certos impactos ambientais. Contudo, vale frisar que os municípios aos quais é distribuída a energia dessas PCHs dependem única e exclusivamente da força deste rio, visto que são áreas pouco urbanizadas e não-industrializadas. A energia das grandes UHEs, hidrelétricas de grande porte, não chega a estes recônditos. Mais uma vez o antagonismo ferrenho entre progresso e preservação ambiental encontra argumentos contrários e favoráveis. Mais uma vez algo tem que ceder, mesmo que esse algo seja sempre a própria natureza.
Represa do Rio Itabapoana que alimenta a PCH de Calheiros
Barragem em Barra do Pirapetinga
Via asfalto eu perpetuava minha marcha rumo ao mar. Percebi, após deixar para trás a cidade de Barra do Pirapetinga, que a pavimentação me levaria para longe do rio. Fui obrigado, mais uma vez, a enveredar-me por uma estrada de chão. Dois quilômetros nela foram suficientes para que avistasse uma terceira barragem. Porém, eu estava na crista do vale, local tão elevado que me possibilitou apenas fotografá-la de longe. O rio fazia grandes curvas neste ponto, e as pedras aumentaram sua concentração no leito quase seco por causa da pouca vazão da barragem. O aspecto confortante é que a mata ciliar, protegida pela impetuosidade do vale, se mostrava mais exuberante, bem preservada. Alguns metros adiante a estrada foi se afunilando. Parecia que nenhum veículo passava ali há tempos. Não havia marcas de pneu ou pegadas humanas no chão. Para piorar a situação, a estrada, que já se estreitara e muito, decidiu desaparecer em meio a uma vegetação que se adensava. Eu não conseguiria manobrar a minha moto e voltar, dada a pouca largura da via. Ao meu lado direito, a encosta de uma montanha. Ao meu lado esquerdo, o precipício do vale. Tudo o que pude fazer foi vencer lentamente a vegetação, acelerando com cuidado na tentativa de “vazar” o mato. Ia ganhando terreno, cortando superficialmente as mãos e o pescoço com as folhas da envolvente vegetação, até que me deparei com um desbarrancado. Sobrara apenas meio metro de “estrada” para eu tentar atravessar. Digo tentar porque esse ínfimo pedaço poderia desbarrancar também caso eu dispusesse o meu peso e o de minha moto sobre ele. Fechei os olhos, acelerei e, felizmente, o derrotei. Ileso, abri caminho por entre os arbustos restantes. Uma pedregosa estrada era vista adiante. Errei pela mesma e dei de cara com a Casa de Força da PCH de Pirapetinga, proprietária da terceira barragem.
Esgoto despejado no rio
Com uma ilhota equidistante das margens capixaba e fluminense, o rio, caudaloso, descia. Estava a 110 metros de altitude. Com a noite se aproximando, acelerei o máximo que pude, por asfalto, até Bom Jesus de Itabapoana e sua altitude de 90 metros, onde o rio recebe dejetos dos 35000 munícipes. Some-se a isso o esgoto de mais 10000 do lado do Espírito Santo, diretamente da cidade de Bom Jesus do Norte. É a área mais urbanizada do curso do rio, e talvez por isso a mais malcheirosa. Não há mata ciliar, nem sequer margens. As casas são edificadas praticamente sobre o rio, encurralando-o com concreto. A beleza da Praça Governador Portela, onde descansei, poderia me animar, mas o garbo artificial de uma obra humana não anula a degradação a que o homem expõe o ambiente em que vive. Por mais que a cidade trate parte de seu esgoto, muito ainda é despejado nas majestosas águas do Itabapoana, e isso é lastimável. Ignorando a minha revolta, parti incontinenti dali, passando para o lado do Espírito Santo, onde segundo meus mapas eu supostamente permaneceria descendo paralelo ao rio, o que não aconteceria no Estado do Rio. Neste intento conheci Marco, um ex-motociclista que fora obrigado a vender a moto para investir no restaurante localizado imediatamente após a ponte entre Bom Jesus de Itababapoana e Bom Jesus do Norte. Declarando admiração pela vida que levo, frisou que, um dia, voltaria a aventurar-se. Despedimo-nos e, com as coordenadas do próprio Marco, dei um último estirão em direção à foz. O mar estava próximo. Bem próximo.
Bom Jesus do Itabapoana
Serra do Garrafão
Eu via a Serra do Garrafão, ao longe. O Itabapoana, agora, corria a minha direita. Em Apiacá, registrei que estava a 60 metros acima do nível do mar e mais largo do que eu me habituara. De uma ponte com as proteções laterais avariadas eu visualizava, vívida, a serra do mar, mas estava tão desorientado que não fui capaz de discernir quais picos eram. Meus mapas também não elucidavam coisa alguma. Com muitas dúvidas prossegui, alcançando Ponte do Itabapoana e seus 50 metros de altitude. Nesse município pude fotografar a única ponte férrea que cruza o rio. Fotografei também o prédio da estação, inaugurado em 1879 e tirada de funcionamento talvez na década de 40. Digo talvez porque muitos documentos da fase áurea das ferrovias do Brasil foram perdidos, e não há, portanto, como ter certeza de datas. Distanciando-me de Ponte do Itabapoana, rumei ao leste para a BR101. Os meus olhos estupefatos foram agraciados, neste ínterim, pela vista magnífica da Pedra do Garrafão, contrastante com a última área represada do curso do Itabapoana, que praticamente chega ao acostamento da rodovia asfaltada. Essa represa alimenta a PCH Pedra do Garrafão, mas infelizmente do ponto em que eu estava não era possível registrar em fotos a barragem. O cenário, indescritível, foi a mais bela vista de todo o Itabapoana. Ver a Serra do Garrafão por entre o capim-do-texas-rubro, que se prolifera abundantemente pelas margens da represa, tornou essa minha insana cruzada em algo deveras recompensador. Em um daqueles raros momentos de vaidade, senti-me feliz, totalmente interligado com aquela paisagem deslumbrante. Contudo, todo e qualquer sentimento de felicidade e vaidade é efêmero, e eu ainda seria castigado por isso.
Ponte férrea em Ponte do Itabapoana
Fui desembocado na BR101. Meus mapas e a observação atenta da geografia local me instaram a voltar para o Estado do Rio de Janeiro, visto que não existiam mais estradas que margeavam o Itabapoana. Eu teria que buscar um caminho alternativo, sem a referência do vale do rio que, a esta altura, já não existia mais, pois estava em uma planície próxima ao mar. Cheguei à conclusão de que a Estrada do Morro do Côco, próxima ao Morro do Baú e a Pedra Lisa, que de longe tive o privilégio de fotografar, seria a melhor escolha. Rapidamente me dirigi a ela, adentrando-a sem problemas. Trechos de asfalto poroso, intercalados com a sempre presente estrada de chão, me levaram por entre pequenos vilarejos, como o de João Pessoa. Eram quase 17 horas e, apesar de tudo, o sol ameaçava se por, instando-me a me apressar. Mesmo no azáfama de concluir minha missão de chegar à foz do Itabapoana, tirei algum tempo para registrar a despedida de nosso astro-rei de mais um dia. Ele, que me acompanhara por todo desde a manhã, mesmo que em muitas ocasiões tenha sido sobrepujado pelas densas e inofensivas nuvens, melancolicamente escondia seu brilho. Não poderia ignorá-lo. Naqueles raros momentos – como os de vaidade e felicidade – em que o aventureiro é insuflado pela lucidez, diminuí o ritmo. Seria impossível ver a foz do Itabapoana sem a luz do sol. Contentei-me em desbravar o distrito de Barra de Itabapoana, pertencente à cidade de São Francisco do Itabapoana, e aguardar o nascer de um novo dia para completar minha cruzada.
Morro do Baú e Pedra Lisa
Lago próximo à foz
Alvorecia o dia 30 de abril e com ele meu ensejo de eloquentemente finalizar o que há dois dias principiara. Aos 0 metros de altitude, no nível do mar, acelerei minha moto até a avenida de Barra de Itabapoana que margeia as últimas curvas do rio. Muitos barcos de pesca estão aportados aqui, já que os mesmos, tendo este ponto estratégico como local de partida, gozam da liberdade de pescar tanto no rio quanto no mar, sem precisar, para tal, se movimentarem por grandes distâncias. O lixo, infelizmente, se acumulava sob os coqueiros, próximo à água, extraindo do cenário parte de sua airosia. As garças são as aves mais notadas. Pousadas sobre os perigosos decks improvisados, que possibilitam o acesso da margem ao interior dos barcos maiores, elas observam os últimos metros de “vida” do rio. Do outro lado, em território capixaba, um denso manguezal impede a vista da Praia da Neves. Não havia problema algum. Tentaria visitá-la assim que concluísse meu derradeiro objetivo. Ao lado da rósea Igreja Matriz tive meu último vislumbre exclusivo. Pretendia vê-lo, agora, sendo despejado no mar, e no afã de que isso ocorresse, acelerei desmedidamente pelo solo irregular, uma mistura de areia, terra e paralelepípedos. Ao apear de minha moto na areia da praia, um azulado lago, formado pelas águas do Itabapoana que desviam para uma depressão da orla arenosa, conquistou minha admiração. Enquanto o fotografava, aproximou-se de mim o Senhor Raimundo, que também chegara aqui sobre duas rodas. Meu desejo de ver o mar aumentava à medida que conversávamos sobre nossas viagens e aspirações futuras. Da beira do lago era impossível vê-lo. Dunas altas me privavam de suas ondas. Por uma ininterrupta hora dialoguei com o carismático homem de Cachoeiro do Itapemirim, ao som do chacoalhar das águas do Atlântico. Ao nos apartarmos, apertei o passo em direção à praia.
Praia de Barra do Itabapoana
Cambaleante, errei pelas dunas, tentando me desviar da vegetação rasteira, predominantemente salsa-da-praia com suas flores arroxeadas, que as manteavam. Do alto dos montes de alva areia tive meu primeiro vislumbre do mar. A orla, a minha direita, se estendia a perder de vista, fazendo uma curva para sudeste. À direita, distante uns 200 metros, o objeto de meus devaneios: a foz do Itabapoana. Caminhei, com jaqueta e tudo, sob o sol causticante do extremo nordeste do Rio de Janeiro, nem me dando conta de que muitos detritos da civilização salpicavam a areia. Quando me aproximava do momento da simbiose entre o doce e o salinizado, eis que dois carcarás, como que por obra do destino, pousam sobre a areia que, na maré cheia, é acariciada pelo mar e, na maré baixa, serve de encosto e leito aos últimos centímetros do Itabapoana. Logicamente o casal de falconídeos, símbolo de minha luta pessoal pela descoberta de um Brasil que muitos – e que eu próprio – não conhecia, debandaram tão logo notaram minha aproximação. No ponto de contato entre as águas marrons do “meu rio” e do Oceano Atlântico, sentei-me para sentir o emocionado prazer de ter concluído uma missão. Eu margeara este importante rio da Região Sudeste por aproximadamente 150km, vencendo, neste ínterim, um desnível de 650 metros, desde a tríplice divisa até este pequeno canal de talvez 30 metros de largura. Sobre a areia, em meio à sujeira que o rio carrega para o mar e que o mar devolve para a areia, eu via, do outro lado da foz, a Ponta das Neves, o extremo sudeste do Espírito Santo. Havia perambulado pelos dois Estados e, agora, tornaria a espalda a eles. O prazer de vê-los ambos na finalização de minha cruzada, na companhia dos serelepes maçaricos-pintados que chafurdavam a orla (nunca se está realmente sozinho), foi algo inenarrável. Bem mais do que as pegadas marcadas por minhas pesadas botas na areia, deixaria ali uma parte de mim, um laivo de meu incansável espírito. Abandonaria aquela contumácia, aquela obstinação naquele ermo para dar lugar a novos desejos, a novas aspirações, à concepção de novas aventuras. Não estava no lugar mais belo do mundo. Contudo, naquele instante, todo o peso secular do Itabapoana pareceu se desvelar aos meus sentidos. Eu, daquele minuto em diante, tornava-me íntimo de suas águas, passando a também fazer parte de sua história.
Foz do Itabapoana no Oceano Atlântico
Praia das Neves
Pensava eu que, deixando a foz, me apartaria do Itabapoana. Ledo engano. Com coordenadas de alguns moradores locais, deixei Barra de Itabapoana e localizei a última ponte a cruzar do Rio para o Espírito Santo. Por ter desviado pela Estrada do Morro do Côco, tal ponte me passara despercebida. Para tapar esse hiato, errei por uma rósea estrada de terra. Em questão de minutos eu estava sobre a ponte, novamente na divisa de Estados. Enquanto fotografava o rio a uma altitude de 12 metros, observei a passagem de um motociclista que vinha do lado capixaba. Ao me ver ao lado de minha moto e fotografando, apeou próximo a mim. Trocamos muitas informações e ele me elencou as maravilhas do litoral do Espírito Santo. Carlos, natural de Minas Gerais, conhece muito bem toda a costa capixaba, como boa parte dos habitantes do leste mineiro. Como Minas não é banhada pelo mar, os mineiros acabam "migrando" para a orla do Espírito Santo, que é a mais próxima. Visitei grande parte dos lugares que mencionou, mas deixei que falasse por curiosidade de saber se haveria algo novo, que eu ainda não visitara. No fim da conversa, tinha uma boa ideia de lugares desconhecidos para uma futura viagem. Ao nos despedirmos, vaguei pelo extremo sudeste capixaba, passando pela deserta Praia da Neves, de onde também se vê a foz do Itabapoana a partir da Ponta das Neves. Perambulei descompromissadamente pela restinga até o princípio do manguezal, que me impedia de prosseguir, mesmo a pé. No regresso ao Estado do Rio de Janeiro, encontrei, abandonada pelo tempo, uma capela forrada de marimbondos e vespas. Sem mais o que fazer, e já me preparando psicologicamente para o regresso, voltei para Barra de Itabapoana e para o Estado do Rio de Janeiro. A rota eu já traçara na noite anterior.
Turbinas eólicas na Praia de Gargaú
Parti de Barra de Itabapoana exatamente ao meio dia. Fui seguindo a costa do Atlântico rumo ao sul, passando pelas praias de Porto de Manguinhos, área de desova de tartarugas fiscalizada pelo TAMAR, e Maxindiba, ambas pertencentes ao município de São Francisco do Itabapoana. De Maxindiba tive uma visão inesperada: as turbinas eólicas da Praia de Gargaú, que transformam as correntes marítimas em energia elétrica. Atravessei o centro da movimentada São Francisco de Itabapoana, que apesar do nome está bem afastada do rio do qual toma seu último nome emprestado, enviesando-me logo depois por Imbuíra e Travessão. Na grande Campos dos Goytacazes, importante polo petrolífero do Brasil, comecei a margear o Rio Paraíba do Sul contra a sua corrente. Ele seguia rumo ao mar. Eu subiria à região serrana do Rio de Janeiro. Sem demora deixei São Fidélis para trás, atracando em Itaocara para fotografar a Serra da Bolívia. Adotando um ritmo condizente com o trecho sinuoso em que estava, errei por Boa Sorte e Euclidelândia, descendo ulteriormente para Carmo, na divisa com o Estado de Minas Gerais. O tempo ameno me incitou a continuar subindo em direção a Serra dos Órgãos. Contudo, enquanto ascendia em direção a Teresópolis, a bruma foi me envolvendo e a temperatura decaindo. Ainda tinha esperanças de ver o Dedo de Deus, já que em minha última visita, com o meu intrépido camarada Levi Vieira, a fatídica neblina me privara deste onipotente cenário. Ao entrar na avenida principal de Teresópolis, a chuva desabou sobre 880 metros de altitude. Na serra que circunda a cidade há construções a mais de 1000 metros. É um local que sofre demais com o aguaceiro dos céus. Deslizamentos de encostas, infelizmente, foram responsáveis por muitas mortes em 2011. Como se não bastasse todo o sofrimento do povo desta cidade que aprendi a admirar, há ainda uma politicagem, desprovida de sequer um naco de misericórdia, que faz com que o dinheiro necessário para reparar os danos e guarnecer este belo pedaço do Rio de Janeiro seja desviado para sabe-se lá onde.
Rio Paraíba do Sul e Serra da Bolívia, em Itaocara
Teresópolis
No dia primeiro de maio as intempéries amanheceram comigo. Chovia muito, os termômetros marcavam 11º C e a bruma insistia em mistificar a visão. Fui obrigado a descer a perigosa e escorregadia Serra dos Órgãos em direção à cidade do Rio de Janeiro. Na Avenida Brasil, em território carioca, acessei a Rodovia Dutra, assolada por um aguaceiro que foi meu fiel companheiro até Resende, na divisa com o Estado de São Paulo. Meu Estado me recepcionou com um sol que luzia forte, apesar do frio. Fui sendo assaltado pelos abusivos pedágios até o município de São José dos Campos, onde adentrei uma outra meliante: a Rodovia Dom Pedro. Aquela sensação que tive no primeiro dia de viagem, de deixar a RMC em direção ao verde da serra, agora se invertia. Passei pela Represa de Atibainha e pela cidade de Atibaia. Em poucos quilômetros estava em Campinas, novamente sentindo a claustrofobia proporcionada pelo excesso de cinza. As saudades de casa eram extensas como o Itabapoana. Nos últimos metros de minha aventura, quando o odômetro de minha fiel e única companheira de viagem marcava 2100km, pensei em tudo o que havia deixado para trás por causa desta singela e recompensadora cruzada: a segurança de um lar, o carinho de uma namorada e a alegria de estar com os meus grandes amigos e familiares. No fim, realmente não deixei tudo isto para trás, pois regressei mais “eu” do que era antes. Voltei melhor para estas pessoas. Apenas aquela parte de mim, que fui espalhando como cinzas sobre as águas do Itabapoana, preferi não trazer comigo. Esta, assim espero, reaverei algum dia, quando uma nova aventura por aqueles confins for engendrada.
Desta forma serei enquanto permitir-me o mundo. Com o aval das águas, da fauna e da flora vagarei, tomara que eternamente, pelos ermos deste Brasil que, mesmo judiado, esconde em seu interior as mais ricas belezas deste imenso globo terrestre. Ainda há muito o que conhecer, logicamente, mas a coragem dentro de mim é produzida ininterruptamente para vencer esse imenso desafio de transformar a vida em algo útil, em conhecimento, em interação com o meio ambiente. Não almejo que todos se inspirem ou que sejam como eu. Auguro apenas que, ao escancarar o Brasil, as pessoas desfaçam aquele senso comum de que o mundo se baseia unicamente nas relações interpessoais com as pessoas da própria cidade em que vivem, sempre nos mesmos cenários. Há diferentes formas de vida e de interação lá fora, e nem precisamos ir para outros planetas para comprovar tal teoria.